Reformar a previdência pelas despesas ou pelas receitas?
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6 anos atrásem

Antônio Rosevaldo F. da Silva
Economista, professor da UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana e
da Faculdade Anísio Teixeira.
Membro da ABED – Associação Brasileira de Economistas Pela Democracia
Para um doente com anemia profunda o que ele menos precisa é que se retire
mais sangue sem reposição e é exatamente é isso o que ocorre com a
previdência. Sofrendo de uma sangria desatada, os profissionais que deveriam
cuidar de sua saúde vivem alardeando que a anemia está profunda e que se
não parar de tomar transfusão vai secar o sangue dos doadores e o paciente
pode vir a morrer. Entretanto, silenciam sobre o fato de que retiram mais
sangue do que colocam no paciente.
Este artigo tem a pretensão de abordar as perdas de receitas da Previdência
Social que se revestem de transferência da grana dos mais pobres para os
mais ricos. Incrível como o pulso ainda pulsa.
Nos últimos dias o país se depara com uma dúvida cruel: Aceitar ou não aceitar
a reforma da previdência como preconizada na PEC 06/2019? Os jornais, as
redes de televisão, os portais da internet da mídia tradicional são unânimes em
afirmar que precisamos fazer uma reforma, pois os gastos com a nossa
previdência estão a cada dia se tornando insustentáveis. Pronto, pense numa
palavra mágica: insustentáveis.
Começo o dia pensando que realmente precisamos reformar, então releio toda
PEC supracitada. E o que vejo no corpo do texto? Vejo dor, vejo muita dor; vejo
gente humilde (que vontade de chorar) buscando dinheiro para comprar o
remédio; vejo filas e mais filas em hospitais sucateados; vejo suicídios; vejo
dor. Esse é o futuro que percebo se for aprovada esta reforma. Aí a
consciência bate. E os gastos insustentáveis? Preciso dialogar.
A previdência tem como gastos as aposentadorias e o auxílio doença entre
outros auxílios, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e é
justamente isso que o governo denomina de insustentável. Manter a vida se
torna insustentável (?); o Brasil vai quebrar se não aprovar a reforma? Com
base nestas mentiras que em todo o texto da PEC se busca inibir (ou até
mesmo postergar) as despesas, fazendo garantir que a morte chegará primeiro
que a aposentadoria, os homens do governo e a mídia têm dito que isso servirá
para acabar com os privilégios. Outra palavra chave: privilégios.
O primeiro privilégio a ser combatido, segundo os arautos da PEC 06/19, é
aquele que permite que pobre viva muito, afinal de contas pobre e velho só
gera despesas para o Estado, a exemplo de saúde pública e aposentadoria.
Ainda por cima o idoso pobre é isento de imposto de renda, assim pensam os
burocratas que imaginam que serão ricos na sua velhice. Como a PEC
pretende resolver isto?
Atualmente, existe uma geração de jovens que não estão contribuindo para a
previdência; praticamente metade da força de trabalho ou está desempregada
ou trabalha na informalidade, portanto sem renda disponível suficiente para
contribuir com a previdência. Isso vai ter um peso maior lá na frente, pois ao se
exigir 40 anos de contribuição, estes jovens, no futuro, mesmo que consigam
um emprego com carteira azul, dificilmente conseguirão atingir a meta.
Afinal de contas, mal alimentados não terão forças e nem qualificação para competir
num mercado de trabalho cada vez mais excludente e exigente. A sociedade
está produzindo uma futura geração de zumbis no melhor estilo Walking Dead.
Aqui, por enquanto, se faz referência apenas ao trabalhador urbano. Ao se
tratar do trabalhador rural, a situação se torna ainda mais complicada,
principalmente sem que este tenha como comprovar o tempo de trabalho, pois
os sindicatos rurais estarão afastados e, ao bater na porteira da fazenda, serão
os trabalhadores recebidos por gente armada e, com taxa anual de 5.000
cartuchos, melhor será morrer de fome? O tempo dirá.
Àquele trabalhador ligado a Agricultura Familiar com certeza será quase
impossível comprovar um tempo de 20 anos de contribuição. Produzindo em
pequenas propriedades e lutando contra a falta de crédito, crises hídricas e
etc., com certeza terão enormes dificuldades, para não dizer que será
impossível. Já existe grande dificuldade com 15 anos, imaginem com a
exigência de 20 anos de contribuição. A morte aqui, certamente chegará na
frente.
Esta PEC, quando vemos sua composição, se pode verificar que é machista,
pois as mulheres são as que mais perdem direitos, logo elas que cuidam de
nossos filhos. A reforma é racista, pois a população negra é a que mais pratica
a informalidade, a que mais tempo fica desempregada, então não vai
comprovar nem os vinte anos de contribuição. Mulheres negras terão
dificuldades maiores em se aposentar. Podemos afirmar que a reforma também
será homofóbica, afinal de contas olhemos ao nosso redor, existem poucos
gays aposentados. Eu não conheço nenhum travesti aposentado, talvez
existam e sejam exceções à regra, pois ninguém gosta de empregar travestis.
A essa altura você deve estar pensando nos servidores públicos, eleitos como
privilegiados que contribuem para a insustentabilidade do sistema. Vamos lá
então: desde 2003 que novos servidores se aposentam pelo teto do regime
geral de previdência; se quiserem receber pela integralidade do seu salário são obrigados a recolher pelo que excede do teto do RGPS, o que já foi bastante explorado pela mídia, mas tem um detalhe que escapa e até agora ninguém mencionou. Servidores públicos com salários acima do teto pagam imposto de
renda e tem seu valor retido no contracheque. Por exemplo, um servidor que
ganhe R$ 15.000 reais por mês deixa nos cofres estatais a totalidade do
imposto de renda na fonte. A regra está prevista nos artigos 157 e 158 da
Constituição Federal e, com aumento da alíquota previdenciária para 14%, no
caso do servidor público da Bahia, o servidor deixa cerca de 30% de seu
salário em mãos do patrão.
O governo e todo o séquito de defensores da reforma alegam que a PEC 06
veio para combater privilégios. Todavia, a própria PEC desmente logo essa
assertiva ao afirmar que 84% da economia a ser gerada virá do Regime Próprio
onde existe um teto para aposentadorias de R$ 5.830,00. Mais de 70% destes
beneficiários ganha o piso do salário mínimo, e a perversidade está justamente
em economizar essa dinheirama toda em cima de 35 milhões de brasileiros que
ganham em média pouco mais de um salário mínimo.
Enfim, se poderia alongar este texto discorrendo e desconstruindo este
argumento, mas a literatura vigente já existe em demasia e apenas com um
pouco de esforço mental pode-se verificar que a economia de 1,2 trilhão virá da
dificuldade criada para que o trabalhador e a trabalhadora do setor privado
obtenham a mínima segurança para seus últimos anos de vida. Não adianta
manter a integralidade do salário se a pessoa não vai adquirir o direito à
aposentadoria.
Ora, se os privilegiados não estão nos servidores públicos, não estão entre os
trabalhadores do setor privado, onde se encontram os verdadeiros
privilegiados? Para onde vai o dinheiro arrecadado pelas contribuições
previdenciárias?
Para responder a essas perguntas é preciso conhecer as fontes de receitas
que compõem a Previdência.
Não se sabe por que cargas d’água os defensores da PEC 06/19 jogam para
debaixo do tapete a interpretação do artigo 195 da Constituição Federal, onde
se aponta a responsabilidade pelo financiamento da seguridade social para
toda a sociedade. Mas na aplicação, parece que os mais ricos, os que têm
capacidade contributiva, se sentem a margem do ônus e apenas são parte dos
bônus. Na hora de pagar a conta, os que podem pagar levantam da mesa,
levam a comida e deixam os restos e a conta para os menos favorecidos.
Para o financiamento da Seguridade Social existem fontes diretas e indiretas.
As primeiras são formadas pelas contribuições do trabalho e dos
empregadores, aí inclusos o PIS/PASEP, A CSLL e a COFINS. Quase não se
toca na contribuição patronal, e observe que desde 1996, ano de criação do
regime fiscal do Simples Nacional, os empregadores deixaram de arcar com o pagamento das contribuições previdenciárias e os demais tributos para
financiamento da Seguridade Social.
Aliado a isso começaram a pipocar no Congresso Nacional diversas alterações
que beneficiam a classe patronal. Pelo lado das fontes indiretas, sobra a
responsabilidade do governo em suprir déficits no resultado operacional, como
por exemplo, criar instrumentos compensatórios às perdas ocasionadas com os
diversos benefícios patronais.
Afinal de contas quem sangra as contas da previdência? Falamos em
sangramento, pois a situação previdenciária brasileira equivale a um doente
anêmico, onde todos afirmam que está com uma crescente falta de sangue e a
solução que apontam é tirar o pouco sangue que lhe resta, irrigando outros
organismos. Podem-se apontar diversos tipos de sangria da previdência: DRU,
Simples, Isenções e desonerações. Todas elas sem contrapartida.
A primeira de todas é a DRU. Ora senhoras e senhores leitores, se a causa
maior do déficit público é a previdência, natural seria que fossem promovidas
ações de transferência para cobrir o propalado rombo; entretanto, ocorre o
efeito reverso, onde se retira 30% das receitas previdenciárias e isso faz falta.
Veja um exemplo hipotético: A empresa arrecada 100 e tem um gasto para tal
nível de vendas de 80; ora, temos um lucro de 20 decorrente de 100-80, mas
ao inventarem uma Desvinculação de Receitas da Empresa, se retira 30 dos
100 e a empresa passa a ter prejuízo de 10. Entendeu? 70-80= -10. E os 30
retirados vão cobrir outro buraco; depois saem alardeando que a empresa dá
prejuízo. Pois isso acontece com a previdência e a Desvinculação de Receitas
da União (DRU).
O Simples agrega a maioria das pequenas empresas brasileiras e vale
salientar que cerca de 80% dos empregos nacionais são gerados por este
tamanho de empresa. Os estados membros da federação conseguiram
amenizar a perda do ICMS com o antecipado, regime em que as empresas
pagam o diferencial de alíquota em operações interestaduais e a contribuição
previdenciária patronal foi dada como redução da carga tributária, entretanto,
sem contrapartida direta. Enfim, a União deveria arcar com este ônus e não
apenas reclamar déficit.
No que se refere às isenções, temos uma legislação amplamente complacente
com alguns dos 52 setores da economia; ampliamos ainda nosso folder de
privilégios quando nada arrecadamos sobre dividendos e outras fontes de
remuneração do capital. Com uma estrutura tributária calcada em tributos que
incidem sobre a produção e consumo, uma crise econômica faz jogar por terra
toda a possível poupança de um fundo tripartite. Sim, aqui entram o COFINS,
PIS/Pasep e CSLL.
Por outro lado, um período de elevado crescimento
econômico faria com que a arrecadação destes tributos formasse um fundo a
ser utilizado em períodos de vacas magras, mas a sanha de gastar atabalhoadamente a grana estatal não deixa pedra sobre pedra, optando pela gastança desmesurada. Pede-se especial atenção à leitura dos artigos 194 e
195 da Constituição Federal. 82 bilhões de reais foi o tamanho da sangria da
previdência para beneficiar setores produtivos. Ninguém aqui está louco de ser
contra benefícios fiscais, mas se retiram dinheiro da previdência que se
providencie a devolução ou então deixem de repetir que a Previdência é
deficitária.
No próximo dia 06 de junho se poderá discutir A Reforma da Previdência e
seus Impactos e Consequências na Faculdade de Economia da UFBA, na
cidade de Salvador, a partir das 18h30min, onde o ex-ministro da Previdência
Social Carlos Gabas, mais uma vez, certamente, desconstruirá os argumentos
em prol da PEC 06/19 na companhia de outros e outras especialistas.
Sobre desonerações da folha de pagamento existem dois dispositivos legais: a
Lei 12.546/2011 modificada pela Lei 13.670/2018. Estes dispositivos alteram a
forma de recolhimento de alguns setores, sendo permitido escolher entre a
contribuição patronal ou recolher pelo faturamento. Basta lembrar que foi no
ano de 2015 o começo do caos, onde as receitas operacionais despencaram a
píncaros, levando com ela a arrecadação previdenciária. Temos como exemplo
os setores de construção civil e transportes públicos, ambos majoritariamente
utilizadores do fator Trabalho. Uma lida nos artigos 7 e 8 da lei 13.670/2018
pode dar a real dimensão desse dispositivo para as contas previdência.
Com o exposto acima, se pode observar que os grandes privilegiados não
estão inclusos na PEC 06/2019. Aliás, o governo federal deveria começar o
texto propondo a retirada da DRU, usando elementos de contrapartida
compensatórios às isenções e desonerações. Observe que também ainda
existe a figura do MEI (Microempreendedor Individual) que nada mais é que a
maquiagem de uma relação de emprego para fugir à contribuição patronal
previdenciária que compõem em 2019 a grande maioria das empresas abertas
no Brasil. Basta lembrar que este enquadramento empresarial está isento do
pagamento de PIS, COFINS e CSLL, tributos que incidem sobre a conta
previdenciária, além das isenções de tributos federais como o IPI, recolhendo
para previdência valores entre R$ 49,90 (comércio e indústria) a R$55,90
(serviços, com ICMS embutido). As perdas são enormes para as contas
previdenciárias.
Aliado a isto existe hoje no Brasil cerca de 105 milhões de pessoas na
população economicamente ativa, a nossa força de trabalho. Entretanto, com
carteira de trabalho, portanto, os contribuintes obrigatórios, são apenas 37
milhões de pessoas e, com isso, temos uma baixa arrecadação. Logo, basta
religar as máquinas e retomar o crescimento econômico que essa massa
contributiva volta a contribuir.
Podemos ainda acrescentar cerca de 7 milhões de servidores públicos
estatutários e militares junto com 6 milhões de trabalhadores domésticos que,
de uma forma ou de outra, contribuem. A conta é simples e não bate, temos
mais barrigas para alimentar que gente pagando o almoço de amanhã. Então
se precisa eliminar drasticamente o desemprego e criar mecanismos de
arrecadação das pessoas que estão na informalidade. Afinal de contas, em
2016 apenas 52 milhões de pessoas contribuíam para o regime geral da
previdência social, sendo apenas 9 milhões de contribuintes individuais.
Como resolver então a crise da Previdência Social? Primeiro criar
contrapartidas às diversas isenções e desonerações, pois não se pode fazer
reverência com o chapéu dos outros. Além disso, promover uma reforma
tributária mais justa, onde a capacidade contributiva seja respeitada e os que
mais lucram e acumulam paguem os tributos devidos. Para iniciar, deveria ser
revogada a DRU sobre a Previdência e a União deveria devolver tudo o que
tirou a título de isenções e desonerações.
Também será de bom alvitre melhorar a eficiência da cobrança dos devedores
contumazes. Uma das boas normas de gestão empresarial diz que se você tem
uma cobrança frágil, a sua inadimplência aumenta. Não se trata apenas de
cobrar o possível na dívida ativa, mas fundamentalmente criar mecanismos
contínuos e perenes de cobrança para que o devedor não se sinta confortável
a esperar o próximo REFIS.
Qual a solução para que a Previdência garanta os pagamentos devidos sem
piorar a qualidade de vida? Primeiro que o governo devolva à Previdência tudo
que tira em forma de renúncias fiscais como isenções e desonerações. Que a
DRU não incida sobre a receita previdenciária e, também, será de bom alvitre
melhorar a cobrança das contribuições previdenciárias, o PIS e COFINS, assim
como melhorar o nível de crescimento da economia, reduzindo o número de
desempregados.
Não é recomendável fazer uma reforma desse calibre numa economia
fragilizada. Aliás, as seis reformas que foram feitas na Previdência sempre
jogaram a conta para que seja paga pelo trabalhador. Já passou do momento
do Capital dar a sua parcela de contribuição.
Dobrando a arrecadação do PIS/PASEP e da COFINS, aliado aos recursos de
prognósticos e tudo que acima foi exposto tornará a Previdência viável
economicamente, mas parece que se torna mais fácil novamente jogar a conta
para os mais frágeis.
Enfim, é preciso garantir aos mais necessitados uma velhice tranquila e que a
aposentadoria venha primeiro que a morte.

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
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07/11/20O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
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06/11/20por
Aloisio MoraisNos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
Feminismo
Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?
Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros
Publicadoo
5 anos atrásem
05/11/20A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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