Por Gilberto Alexandre Sobrinho, professor do Instituto de Artes da Unicamp e cineasta.
Raquel Trindade (1936 – 2018) é um dos grandes símbolos da cultura brasileira. Artista de várias frentes, foi coreógrafa, artista plástica, escritora, ensaísta e tornou-se uma griot, sábia dos ensinamentos da diáspora afro-brasileira. Nascida no Recife, com passagem pelo Rio de Janeiro e, posteriormente, estabelecendo-se em Embu, na Grande São Paulo, foi continuadora da obra de seu pai, o poeta Solano Trindade. Escritor que defendeu uma literatura negra de grande estilo, também fundou o Teatro Popular Brasileiro, nos anos 1950, juntamente com sua esposa, a coreógrafa e terapeuta ocupacional Maria Margarida da Trindade, colaboradora do trabalho inaugural da psiquiatra Nise da Silveira, além de contarem com a participação do sociólogo e historiador Edson Carneiro, quando moravam, ainda, no Rio de janeiro. Foi a partir desse legado, que Raquel Trindade, a Kambinda, fundou no Embu das Artes, o Teatro Popular Solano Trindade, nos anos 1970. São experiências marcantes do teatro negro do Brasil, que se somam ao trabalho do pensador e também artista Abdias Nascimento, um parceiro da família Trindade, e compõem, com o Teatro Experimental do Negro – TEN, um denso capítulo na história do teatro brasileiro, na defesa da cultura e expressão artística ligadas aos negros.
O vocabulário artístico que Raquel Trindade constituiu-se a partir de várias frentes, como ela costumava partilhar em conversas e palestras. Trata-se, em primeiro lugar, de constatar algo estabelecido nas vivências familiares e comunitárias de Pernambuco, estado brasileiro marcado profundamente pela presença de negros e indígenas que, juntamente, com o colonizador português e outras heranças europeias elaborou uma rica cultura popular atualizada em várias manifestações tais como maracatu, bumba-meu-boi, cirandas etc. São esses extratos culturais, produzidos às margens do poder econômico e que representavam a resistência cultural e política do povo que interessava à artista. Os seus deslocamentos e as outras vivências trouxeram outros códigos que foram sendo assimilados e reinventados, como o jongo e o samba lenço, já frutos de sua influente e intensa vida na região sudeste. Leitora assídua e também herdeira de um repertório erudito, Raquel era uma intelectual completa. E a isso, somava-se, o candomblé. Era filha de Obaluaiyê, conhecedora dos fundamentos e, como artista, disseminava as danças dos orixás.
As histórias de “Dona Raquel” atravessam décadas de investimentos profundos na criação e contribuição com a arte e a cultura, onde defendeu os ritos, ritmos, danças e imagens ligados às heranças e presenças negras, além de ter sido uma ativista reconhecida do Movimento Negro. E foi justamente no final dos anos 1980, num momento conturbado e representativo do Brasil que buscava reorganizar sua democracia, de onde emergia a chamada Constituição Cidadã e num contexto marcado pelos 100 anos da Abolição, em que menos se celebrava a liberdade e mais se buscava uma reflexão nos espaços públicos sobre as condições de vida da população negra brasileira que ela veio dar aulas no Instituto de Artes, da Unicamp, em Campinas.
Um dos fatos mais marcantes da passagem de Raquel pela instituição foi o gesto político, educativo e artístico que, ao mesmo tempo que revelava o racismo estrutural em uma universidade pública e gratuita, tornou-se emblemático para uma geração de negros e negras que redescobriram códigos da cultura popular campineira, ligados à matriz africana, inscritos em memórias e tempos passados e que estavam, digamos, adormecidos. Ao deparar-se com apenas um negro, num contingente de estudantes de graduação, num curso sobre danças de matrizes africanas, Raquel Trindade não teve dúvidas e criou um curso de extensão universitária, onde negros funcionários e da comunidade misturavam-se a brancos e orientais, num grande acontecimento multicultural. Foi dessa experiência que nasceu o Grupo de Teatro e Danças Populares Urucungos, Puítas e Quijengues, que completa 30 anos em 2018. Trata-se de um grupo continuador das práticas estéticas ligadas ao teatro negro brasileiro, com forte presença do samba de bumbo, o samba campineiro, que outrora estava nas memórias familiares de Ana Miranda e Alceu Estevam, entre outros, dois pioneiros do Urucungos que reativaram esse passado e levaram adiante o projeto estético da família Trindade, imprimindo novas tintas, com grande influência local e regional. Pude vivenciar um pouco dessa história no documentário que produzi e dirigi chamado A Dança da Amizade, Histórias de Urucungos, Puítas e Quijengues (2016), um entre tantos registros e reflexões possíveis de uma história tão rica e que deve ser estudada e aprofundada continuamente.
Solidariedade, resistência e as doações têm sido fundamentais para reerguer a comunidade
Um incêndio que iniciou na madrugada de segunda-feira (28) desalojou 24 famílias na Comunidade Vila Paula na região da CDHU do bairro San Martin, em Campinas .
Segundo informações da Prefeitura de Campinas, entre as pessoas atingidas estão 36 adultos, 27 crianças, dois adolescentes e dois idosos. Essas pessoas foram acolhidas na Escola Estadual Maria de Lourdes Bordini e em duas instituições religiosas nas proximidades.
A maioria dos moradores deixou suas casas só com a roupa do corpo. Todos os seus pertences foram destruídos pelo fogo.
Na terça-feira, a reconstrução dos barracos foi iniciada no mesmo local em que as habitações de madeiras foram destruídas pelas chamas. Paulo César Santos, uma das lideranças da comunidade, relembra o drama desastre que consumiu os barracos e as dificuldades das famílias.
“ Foi uma tragédia muito grande na nossa vila. Foi duro para construir, foi duro para assentar as famílias . Foi difícil construir os barracos de madeira, estamos aqui faz um bom tempo. No início era só lona e o incêndio devorador acabou com tudo.”
Paulo Cesar é uma das lideranças da Comunidade Vila Paula e trabalha na reconstrução da vila
A comunidade existe há cerca de cinco anos e abriga aproximadamente 176 famílias que moram no local e outras 70 suplentes, que não moram ali. No total, segundo Paulo, são ao menos 700 pessoas, entre crianças, idosos e adultos.
Elas perderam tudo
As 24 famílias perderam tudo e ficaram apenas com a roupa do corpo.
Lourrane , mãe de Abdias e grávida de sete meses conta que ficou muita assustada. A vizinha tentou alertá-la sobre o incêndio mas o fogo estava intenso.
“ Foi desesperador. Eu tenho um sono pesado e não ouvi as batidas em minha porta. Quando eu me atentei e abri a porta, um calor intenso e fumaça invadiram minha casa. Eu peguei meu filho e minha bolsa com documentos e saí correndo. Assim que eu saí algo que me pareceu como um botijão de gás estourou e a chama do fogo começou a incendiar o meu barraco. Perdi tudo. Tinha acabado de chegar cesta básica e verduras. Estava tudo abastecido.”
Mãe e filho tem a esperança de reconstruir o barraco
“ É desanimador olhar para tudo aquilo que a gente construiu com tanto sacrifício e ver tudo em cinzas , mas eu também agradeço por estar viva com meu filho e bem.”
Do mesmo modo, Isadora também relembra com pesar . Casada, mãe de dois filhos morava com eles e seu marido no barraco que também foi destruído.
A família de Isadora perdeu tudo e ficou apenas com a roupa que estava no corpo
“ Ficamos só com a roupa do corpo. Tentamos até tirar algo da nossa casa mas não deu certo. Não deu tempo. Salvamos os nossos filhos.”
O casal trabalha e tiveram que faltar esses dias no trabalho mas pretendem retornar o mais breve possível.
Paulo Cesar segurando uma cavadeira fala de peito aberto esperançoso
“ Estamos começando a fase de reconstrução. A nossa casa está sendo reconstruída. Nosso povo está aí trabalhando para isso. A prefeitura está com equipes no trabalho de reconstrução. Os barracos serão de madeira. Recebemos muitas doações Campinas se mobilizou e algumas cidades da região também como Paulínia e Valinhos. Temos que agradecer muito a solidariedade”
As doações vindas de Campinas e algumas cidades da região
A futura mamãe também se sente esperançosa.
“ Sei que posso ter meu bebê e voltar para a casa e terei uma casa”
Ela havia sido presenteada com um berço e uma cômoda para o bebê, os móveis foram consumidos pelas chamas durante incêndio.
Abdias, um garoto esperto de cinco anos, vivenciou a experiência da tragédia.
Abdias perdeu todas as suas roupas e brinquedos no incêndio.
“ Todos os meus brinquedos foram queimados. Perdi todos os meus brinquedos e roupas. Quero voltar para a minha casa”.
A mãe do garoto agradece as pessoas que se solidarizaram com as famílias da Vila Paula e fizeram doações.
Isadora diz se sentir aliviada pelas doações e também pela reconstrução.
“ As doações dão um ânimo da gente. Também já vai começar a reconstruir. Isso também já ajuda muito. Porque tudo que passamos é muito triste”
Crianças brincam entre as madeiras “kits barracos” – como está sendo chamado – providenciados pela Secretaria de Habitação , em um total de 35 , para a construção de moradias de 20 metros quadrados com banheiro
“As doações são importantes para a Comunidade da Vila Paula sobretudo quando os barracos estiverem prontos novamente. Vamos precisar montar morada. Móveis. geladeiras. Comida.” segundo Paulo Cesar
Onde entregar as doações :
1-Comunidade Frei Galvão da Paróquia São Marcos, O Evangelista – Rua Valentino Biff, s/n – em frente ao CDHU San Martin
2- Escola Maria de Lourdes Bondine no CDHU San Martin, entre as quadras R e U.
As famílias não querem auxílio aluguel que não contempla todas as famílias. A Comunidade Mandela luta por Moradia para todas as famílias Foto: Fabiana Ribeiro | Jornalistas Livres
Negociação entre o proprietário do terreno e a municipalidade
A área de 300 mil metros quadrados é de propriedade de Celso Aparecido Fidélis. A propriedade não cumpre função social e possui diversas irregularidades com a municipalidade.
As famílias da Comunidade Mandela já demonstraram interesse em negociar a área, com o proprietário para adquirir em forma de cooperativa popular ou programa habitacional. Fidélis ora manifesta desejo de negociação, ora rejeita qualquer acordo de negócio.
Mas o proprietário e a municipalidade – por intermédio da COAB (Cia de Habitação Popular de Campinas) – estão negociando diretamente, sem a participação das famílias da Comunidade Mandela que ficam na incerteza do destino.
As mulheres são a grande maioria da Comunidade e também são elas que estão nos atos lutando por direitos. Foto: Fabiana Ribeiro | Jornalistas Livres
As famílias querem ser ouvidas
Durante o ato, uma comissão de moradores da Ocupação conseguiu ser liberada pelo contingente de Guardas Municipais que fazia pressão sobre os manifestantes , em sua grande maioria formada pelas mulheres da Comunidade com seus filhos e filhas. Uma das características da ocupação é a liderança da Comunidade ser ocupada por mulheres, são as mães que lideram a luta por moradia.
A reunião com o presidente da COAB de Campinas e Secretário de Habitação – Vinícius Riverete foi marcada para o dia 28 de setembro.
A luta e a esperança de igualdade social Foto: Fabiana Ribeiro | Jornalistas Livres
As mulheres da Comunidade Mandela, em sua maioria são trabalhadoras informais, se organizam para lutar por moradia.
Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam, o juiz despacha no processo de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo. No despacho proferido , o juiz do processo – Cássio Modenesi Barbosa – diz que aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário. A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017, lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação em relação ao despacho do juiz em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.
Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:
“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”
Hoje também foi realizada uma atividade on-line de Lançamento da Campanha Despejo Zero em Campinas -SP (
Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.
A Comunidade Mandela e as ocupações
A Comunidade Mandela luta desde 2016 por moradia e desde então tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas públicas habitacionais. Em 2017, cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam. Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde. O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade. As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura. Leia mais sobre: https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/