RAFAEL BRAGA: QUANDO A JUSTIÇA MATA A JUSTIÇA!

Rafael Braga, o emblema do racismo da justiça

  O Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, na pessoa do magistrado Ricardo Coronha Pinheiro, condenou Rafael Braga a 11 anos e três meses de reclusão e ao pagamento de R$ 1.687 (mil seiscentos e oitenta e sete reais) por tráfico de drogas e associação para o tráfico. A sentença foi publicada no dia 20 de Abril de 2017, mas ainda não transitou em julgado (ainda está no prazo para apresentação de recurso contra a sentença condenatória), ou seja, não vamos tratar Rafael como culpado, conforme nos garante a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LVII (cinquenta e sete), que afirma que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória“. As circunstâncias e algum senso de “justiça” nos permitirão manter esta postura, ainda que a condenação seja confirmada, conforme se pretende afirmar neste texto.

  A leitura da sentença penal fornece os elementos de sua própria contradição. Por isso, citaremos aqui alguns trechos da decisão do juiz. A análise será feita em três partes (a Terra, o Homem e a Luta), em franca alusão ao livro “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Mais uma vez leremos sobre o conflito entre forças de repressão e gente que só deseja viver a vida sem fazer ou sofrer mal.

A TERRA

  Brasil. Estado do Rio de Janeiro. Cidade do Rio de Janeiro. Bairro da Penha. Comunidade da Vila Cruzeiro. Rua 29. Local conhecido como “Sem Terra”. Vai ficando menos turístico conforme se aprofunda na geografia do local: o país é menos “tropical” e a “cidade é menos maravilhosa” naquele canto em que Rafael Braga foi torturado e preso por policiais militares.

  “Sem Terra” é uma denominação que não conhecemos a origem, mas representa dois fatos de máxima importância para compreender a relevância da condenação de Braga.

            – O direito interno é inerente ao território. A isto chamamos jurisdição. Não se pode falar em Estado e aplicação de leis estatais sem a delimitação de um território. Não se pode aplicar (via de regra) leis brasileiras fora do Brasil. Um hipotético lugar “sem terra” é um lugar “sem lei” que possa ser aplicada.

            – Ser “sem terra” é ser desprovido de propriedade privada. A opressão de classe se dá sobre aqueles que são despossuídos. O capitalismo impôs a confusão entre propriedade e riqueza.

  Em suma, não é de se estranhar que este lugar – SEM TERRA – seja cenário de [I] aplicação de medidas de exceção como as que ocorreram com Braga (tortura; acusação falsa; racismo institucionalizado) que, assim como os moradores da região [II], é um pobre sem propriedade que lhe garanta alguma riqueza. Ali, no “Sem Terra”, o direito se revela tão somente como instrumento de opressão de classe [e raça].

  Na sentença, a questão do local foi levantada mais de uma vez como “fundamento” para que o juiz pudesse condenar Rafael Braga, conforme se pode ler:

 

Registre-se que a localidade em que se deu a apreensão do material entorpecente de fls. 12 e 13 (vide laudo de exame de entorpecente às fls. 99/100), mais precisamente na região conhecida como “sem terra”, no interior da Comunidade Vila Cruzeiro, no Bairro da Penha, nesta cidade, é dominada pela facção criminosa “Comando Vermelho”, conhecida organização criminosa voltada a narcotraficância.

(…) segundo relato dos policiais que efetuaram a prisão do réu e a apreensão do material entorpecente, o local é conhecido como ponto de venda de drogas. (grifo nosso).

           

 

   

 

  Em outras palavras, o que o juiz diz é: se não estivesse na região “sem terra”, não teria sofrido a condenação por tráfico de drogas. Rafael Braga não foi acusado por ter sido flagrado comercializando maconha ou cocaína, mas por estar no local – vizinhança de sua casa – que se atribui à traficância, e não à existência de homens e mulheres que por ali transitam no caminho de casa, trabalho, estudo ou lazer.

  Não se aceita que o acusado estivesse lá para comprar pães na padaria (conforme versão de Rafael) e não para vender drogas (conforme versão dos PMs e do MP). Nenhuma outra forma de comércio poderia ser reconhecida pelo juíz. Todo mundo “sabe” da suposta existência do Comando Vermelho na região, mas ninguém fez nada contra a organização em si. Melhor ir para cima de pequenos traficantes do que tentar desmantelar um esquema que corrompe desde policiais a políticos.

O HOMEM

  Um juiz: Ricardo Coronha Pinheiro. Quatro testemunhas de acusação: Policiais Militares Pablo Vinicius Cabral, Victor Hugo Lago, Farley Alves de Figueiredo e Fernando de Souza Pimentel. Um morador sem nome ou existência comprovada. Um réu: Rafael Braga.

  Dentre tantos casos de injustiças cometidas pelo aparato penal brasileiro, vale lembrar o porquê do nome de Braga se destacar: ele foi o único condenado por supostos crimes cometidos por manifestantes durante os atos de 2013. À época foi acusado de portar explosivos, que na verdade eram produtos de limpeza. Uma acusação tão absurda quanto a afirmação que você pode explodir sua casa enquanto limpa a privada do seu banheiro.

  O homem em questão (velho conhecido da repressão política e social do Rio de Janeiro) é negro e também pobre, e sofre como negro e pobre. É muito mais que experimentar a opressão cotidiana do racismo e a desigualdade de classe. Ele sofre algo que eu e a maior parte daqueles que nunca foram acusados de crimes que não cometeram jamais sofremos. O sentimento de injustiça é acompanhado de consequências objetivas: perda da liberdade e condenação a pagamento de multa.

  Outro homem, o Juiz, fundamenta quase toda a sua decisão apenas em testemunho de policiais militares. Desconsidera o que foi dito pela testemunha da defesa, como se fosse mentira:

 

Embora a testemunha Evelyn Barbara (fl. 194) tenha afirmado em seu depoimento que o réu RAFAEL BRAGA foi vítima de agressão por parte dos policiais militares que o abordaram, fato este também sustentado pelo acusado quando interrogado neste Juízo (fl. 250), o exame de integridade física a que se submeteu o réu RAFAEL BRAGA VIEIRA não constatou “vestígios de lesões filiáveis ao evento alegado”, consoante laudo de fl. 136.

   

 

 

 

  Talvez, o senhor Coronha, que hoje é juiz, quando universitário deva ter faltado às aulas de criminalística para saber que a tortura nem sempre deixa vestígios. Evelyn, por ser quem é (moradora do “Sem terra”), talvez não tenha a abstrata investidura de “verdade” conferida ficcionalmente a agentes estatais, como se estes não tivessem ideologias, preconceitos e interesses materiais.

  Devemos nos perguntar sobre mais um homem, que talvez não seja um homem, mas tão somente o deus ex machina de um teatro de mentiras montado para incriminar um sujeito: o “morador“. Sem nome, é aquele que supostamente indicou os policiais até o ponto de traficância que, por sua vez, era conhecido pelos policiais.

 

Narrou a testemunha policial militar Pablo Vinicius Cabral (fl. 195) que estavam em patrulhamento de rotina, com intuito de garantir a segurança de trabalhadores que implantavam blindagem no posto policial, na Comunidade da Vila Cruzeiro, quando um “morador” foi até a guarnição policial informar que havia um grupo de pessoas comercializando drogas nas proximidades.

           

 

  E já que falamos da imputação de crime de associação para o tráfico, onde estão os associados? Quais indícios de autoria para a associação com este fim? Segundo o juiz, o conteúdo da embalagem supostamente encontrada com o acusado e as pessoas que teriam corrido quando os policiais chegaram dão conta desta acusação… Nada mais vago!

 

No caso presente a posse do material entorpecente (maconha e cocaína) embalado em saco plástico (vide laudo de exame de entorpecente de fls. 99/100), fracionado, inclusive, contendo inscrições “CV”, que sabidamente destinava-se à venda, evidencia a estabilidade do vínculo associativo com a facção criminosa “COMANDO VERMELHO” que controla a venda de drogas no local dos fatos.

    Ademais, com o réu houve a apreensão de um rojão (fl. 17), sendo certo que no momento da prisão em flagrante do réu RAFAEL BRAGA, conforme relato dos próprios policiais neste Juízo, havia inúmeros elementos que se evadiram.

    Dessa forma, restou inequívoca a estabilidade do vínculo associativo para a prática do nefasto comércio de drogas, sendo certo que a facção criminosa “Comando Vermelho” é quem domina a prática do tráfico na localidade conhecida como “sem terra”, em que o réu foi preso, situada no interior da Vila Cruzeiro.

    Por outro lado, a regra de experiência comum permite concluir que a ninguém é oportunizado traficar em comunidade sem integrar a facção criminosa que ali pratica o nefasto comércio de drogas, sob pena de pagar com a própria vida.

    Portanto, não poderia o réu atuar como traficante no interior da Comunidade Vila Cruzeiro, sem que estivesse vinculado à facção criminosa “Comando Vermelho” daquela localidade.

                       

 

 

 

  Pelo visto, o juiz tem perícia nas “leis anti-estatais de regulação de comércio de drogas”.

A LUTA

  “O problema é antigo”.

  Assim começa a terceira parte d’Os Sertões, de Euclides da Cunha. A guerra às drogas e o encarceramento em massa de negros é um problema antigo no Brasil!

  Aqui não pretendo fazer mais nenhuma análise dos vícios de um processo que visa “coibir” o venda de entorpecentes para viciados. A “guerra às drogas”, que é a paz de grandes empresários do ramo de drogas e “segurança”, e uma afronta a direitos fundamentais neste país é absurda por si mesma. Enquanto se atribuir à questão das drogas à questão da segurança e não da saúde pública, milhões continuarão sendo acusados e mortos. Mas quem tem poder para mudar, simplesmente não se importa.

  Mais injusto que o processo é a legislação que lhe dá base no direito material: vender drogas enquanto conduta criminosa. Ainda que o juiz fosse exímio cumpridor da lei, uma injustiça teria sido cometida. Ainda que Rafael fosse o traficante que disseram que ele é, uma injustiça ainda assim teria sido feita.  Em 1842, o governo da Renânia, aprovou a “Lei da Repressão ao Roubo de Lenha” que impedia trabalhadores pobres, sujeitos ao frio extremo, de recolherem lenhas e gravetos caídos no chão, uma tradição nunca antes contestada. Supomos que Rafael Braga tivesse vivido naquela época e local, e tivesse sido acusado de apanhar lenha. Não importa se acusação era verdadeira ou não, ou se o juiz aplicou direito o Direito: a injustiça existia pela própria criminalização da conduta. Ou seja, o crime muda, mas o criminoso tem sempre a mesma cara: a de quem a justiça tem — interesse  —  em prender.

  Por hoje defendemos Rafael Braga, mas mantenhamos nossa posição pelo fim da, genocida e repressiva, Guerra às Drogas.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

4 respostas

  1. INFELIZMENTE OS PARRELAS DA VIDA ESTÃO AI TOMANDO CHAMPANHE ENQUANTO OS RAFAEIS ESTÃO SENDO ENCARCERADOS POIS ISTO É LUCRO PARA ESTA JUSTIÇA PODRE

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