Quatro anos após o rompimento da barragem de rejeitos da Vale/Samarco, em Mariana, entidades e movimentos ingressaram com um caso perante a Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA) pedindo a condenação do Estado Brasileiro pelas violações de direitos humanos cometidas ao longo da Bacia do Rio Doce.
O caso foi apresentado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos (OEA), e pede a condenação do Brasil por falha sistemática na fiscalização e reparação aos atingidos. Entidades pedem que o Brasil seja condenado pelas violações ao direito à vida, às garantias processuais e à proteção judicial, à liberdade de associação, ao direito à propriedade privada e coletiva, à igualdade perante a lei e ao direito a uma vida digna, segundo o disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
A iniciativa inédita foi uma articulação do Centro de Direitos Humanos e Empresas (HOMA-UFJF), FIAN Brasil, Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (GEPSA), Justiça Global, Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB), e Núcleo de Direitos Humanos da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
As entidades pedem a condenação do Estado Brasileiro em medidas de não repetição, em medidas reparatórias direcionadas à população atingida pelo rompimento da barragem de Fundão e também ao meio ambiente. Passados quatro anos desde o desastre, poucas medidas de reparação foram efetivamente tomadas para reparar os direitos violados da população que habita a bacia do Rio Doce. O rompimento de uma nova barragem de rejeitos da Vale, em Brumadinho, também demonstra de maneira evidente que o Estado Brasileiro tem falhado no seu dever de fiscalização.
Raphaela Lopes, advogada da Justiça Global, aponta que o Estado Brasileiro tem responsabilidade direta no rompimento da barragem da Samarco, controlada pelas mineradoras Vale e BHP. “A responsabilização do Estado em relação ao rompimento da barragem de Fundão surge a partir de dois fundamentos. O primeiro diz respeito às medidas que não foram tomadas devidamente para prevenir que o desastre acontecesse. Isso tem a ver com o próprio licenciamento da barragem de rejeitos, que não foi feito de modo diligente, e também com o processo de monitoramento do funcionamento dessa barragem. O segundo fundamento decorre da falha sistemática do Estado em reparar os danos oriundo do rompimento da barragem de Fundão”, afirmou Raphaela.
A petição apresenta uma série de violações que ainda hoje persistem ao longo da Bacia do Rio Doce. Famílias atingidas ainda não foram reassentadas, relatos de tratamento diferenciado entre atingidos – em especial em relação às mulheres, que sofrem discriminação nos processos decisórios e no acesso à reparação -, grande incerteza com relação à qualidade da agua, o que prejudica tanto o consumo da água em cidades ao longo da Bacia do Rio Doce, quanto a pesca e as lavouras que dependem do abastecimento do rio, são algumas das violações citadas no documento.
“O Estado Brasileiro tem sido negligente com suas obrigações tanto de assegurar a proteção social como ambiental no caso das barragens de rejeitos, e frente a isso estamos vivendo tristes cenários. Passados quatro anos, vivenciamos a completa falência do sistema judicial na reparação aos danos causados pelo rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, sem a efetivação de garantias de acesso à justiça das famílias atingidas. Esperamos que a Corte possa analisar essa caso, tão emblemático para a história brasileira, mas também para toda a realidade da mineração na América Latina. As comunidades atingidas depositam muita esperança no sistema interamericano para acessar seus direitos, na data de hoje”, disse Tchenna Maso, da Coordenação Nacional do MAB.
As entidades pedem que o Brasil seja condenado pelas violações ao direito à vida, às garantias processuais e à proteção judicial, à liberdade de associação, ao direito à propriedade privada e coletiva, à igualdade perante a lei e ao direito a uma vida digna, segundo o disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
“Esperamos que venha a condenação do Brasil ao final desse processo, e que a Corte imponha sanções ao Estado. Além das medidas de reparação, há as chamadas medidas de não repetição, que podem incluir inclusive alterações legislativas, além da necessidade de o país avançar em uma política de reparação a atingidos por grandes desastres socioambientais, como foi o caso de Fundão”, destacou Raphaela.
Para as entidades, o ingresso deste caso perante o Sistema Interamericano também se relaciona com o desmonte da política ambiental brasileira e seus órgãos de proteção. “O óleo que se alastra pelas praias do Nordeste, as queimadas na Amazônia e no Pantanal, o rompimento da barragem de rejeitos da Vale em Brumadinho, todos esses episódios não são acidentais, são produto de uma escolha política deliberada que inclui a flexibilização da legislação e a fragilização orçamentária e institucional dos órgãos ambientais”, salientou Melisanda Trentin, coordenadora da Justiça Global. “Esperamos que esse caso possa fortalecer os movimentos sociais, os povos e populações atingidas que lutam contra esses retrocessos na seara ambiental”, concluiu Raphaela.
Anexo: Perguntas e Respostas sobre o ingresso de um caso contra o Estado Brasileiro pelas violações decorrentes do rompimento da Barragem de Fundão.
– Como funciona o ingresso de um caso no Sistema Interamericano?
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), possui dois órgãos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte é o órgão que pode efetivamente julgar, condenar e impor sanções aos Estados que aceitam a sua jurisdição, como é o caso do Brasil. Somente a Comissão Interamericana pode enviar os casos para serem julgados na Corte.
No caso ingressado neste dia 05, em que se pede a condenação do Estado Brasileiro pelas violações decorrentes do rompimento da Barragem de Rejeitos do Fundão, as entidades peticionárias pediram à Comissão o envio imediato do caso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
– Quais os fundamentos do pedido de responsabilização do Estado Brasileiro?
Mesmo sendo a Samarco, empresa controlada pela Vale e pela BHP, uma entidade privada, há evidente responsabilidade do Estado Brasileiro neste caso. Primeiramente, o Brasil falhou no dever de realizar a devida e diligente fiscalização e monitoramento da barragem de rejeitos. É dever do Estado zelar para que empreendimentos que imponham riscos de danos ambientais, humanos e sociais cumpram critérios específicos de segurança e mitigação de impactos. O Estado falhou durante o processo de licenciamento ambiental, no âmago do empreendimento, e também durante a fiscalização de sua operação. A evidência maior da gravidade das falhas do Estado no cumprimento do seu dever de fiscalização e monitoramento se dá na repetição do desastre: pouco mais de 3 anos após o rompimento da barragem de rejeitos em Mariana, outra barragem da Vale se rompeu em Brumadinho, deixando centenas de vítimas fatais.
O Estado Brasileiro também é responsável por falhar continuamente no processo de reparação aos atingidos pelo desastre. Isto se dá principalmente através da celebração dos Termos de Ajustamento de Conduta – até o momento, foram 4 TACs celebrados, e a população atingida esteve ausente da concepção e discussão destes quatro acordos. Por meio da luta de atingidos, de movimentos e organizações, conseguiu-se que houvesse representação dos atingidos em algumas instâncias, como na governança da fundação Renova, por exemplo. Mas resta demonstrado que esses avanços conquistados ao longo da celebração desses acordos foram insuficientes para de fato garantir uma participação efetiva da população atingida no processo de reparação. A fórmula dos termos de ajustamento de conduta tem sido justificada pela celeridade, mas essa celeridade se dá ao custo do sacrifício de garantias e direitos da população atingida.
– O que é possível esperar a partir do ingresso deste caso contra o Estado Brasileiro perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos?
Os peticionários esperam que a Corte condene o Estado Brasileiro pelo conjunto de violações apresentadas. O Brasil foi denunciado pela violação do direito à vida, do direito às garantias processuais e proteção judicial, da liberdade de associação, do direito à propriedade privada e à propriedade coletiva, à igualdade perante a lei e pela violação ao direito a uma vida digna.
A Corte poderá impor sanções ao Estado Brasileiro. Elas podem ser as chamadas medidas de não repetição, que podem incluir inclusive alterações legislativas, ou a necessidade de se avançar em uma política de reparação a atingidos por grandes desastres socioambientais. Há também a possibilidade de as sanções incluírem medidas reparatórias para a população atingida, que podem ser medidas pecuniárias, ou medidas imateriais de satisfação.
– Qual a importância deste caso no atual contexto político?
O ingresso deste caso e a procura de uma condenação internacional do Estado Brasileiro são fundamentais neste momento de enormes tragédias ambientais no nosso país. O óleo que se alastra pelas praias do Nordeste, as queimadas na Amazônia, o rompimento da barragem de rejeitos da Vale em Brumadinho, todos esses episódios não são acidentais, são o resultado do desmonte da política ambiental brasileira e dos seus órgãos de proteção. E somado a tudo isso, o Conselho de Políticas Ambientais de Minas aprovou, há dez dias, uma licença que permite o retorno das atividades da Samarco, com a aquiescência de órgãos como a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais, o ICMBio, e o Iphan. A desproteção e as violações continuam, e o Brasil precisa ser responsabilizado por isso.