Quando o Grande Irmão encontra o Supremo

Por André Jorgetto de Almeida e Pedro Martinez

O Supremo Tribunal Federal julgará nesta quarta o RE nº 1.055.941, referente a troca de informações entre órgãos de fiscalização e controle e o Ministério Público.

O caso ganhou a atenção da mídia porque, no dia 16/07/2019, o Presidente do STF, Min. Dias Toffoli, após reconhecimento da repercussão geral do caso pelo plenário, com base no art. 1.035, §3º, do Código de Processo Civil, suspendeu todos os processos judiciais com dados compartilhados sem autorização judicial pelos órgãos de fiscalização e controle – dentre os quais se encontra o senador Flávio Bolsonaro (Sem partido-RJ), filho do Presidente da República.

A decisão liminar foi acertada e o mérito deve ser decidido no mesmo sentido, pois resguarda a função jurisdicional e também direitos de personalidade e privacidade – estes presentes no art. 5º, incisos X e XII da Constituição Federal.

Apesar da repercussão controversa, forçoso reconhecer que o sigilo de dados é constitucionalmente protegido e não se trata de novidade em texto constitucional brasileiro. Esta garantia encontra-se presente desde a Constituição do Império, de 1824. Seu art. 179, inciso XXVII, já trazia a inviolabilidade das cartas, responsabilizando a administração dos Correios por eventuais infrações.

Em que pesem as variantes históricas, o mesmo se seguiu com as constituições seguintes: Constituição de 1891, art. 72, § 18º; Constituição de 1924, art. 113, 8); Constituição de 1937, art. 122, 6º); Constituição de 1946, art. 141, §6º; Constituição de 1967, art. 150, §9º; e Constituição de 1969, art. 153, §9º. [1]

Na teoria contemporânea dos direitos fundamentais, tem-se, de um lado, a proteção ao sigilo de dados e comunicações e, de outro lado, a exceção, bem fundamentada, que autoriza o Estado a invadir a esfera privada dos seus cidadãos, acessando estes mesmos dados constitucionalmente protegidos.

A importância do julgamento do RE nº 1.055.941 é que ele determinará as balizas do direito à inviolabilidade de dados e a circulação dessas informações entre os órgãos de Estado.

Em julgados anteriores (notadamente: ADI nºs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.939 e RE 601.314), o STF entendeu pela legalidade da troca de informações bancárias, sem autorização judicial, entre instituições financeiras e o Fisco e outros órgãos de fiscalização e controle da Administração Pública.

O RE nº 1.055.941 difere destes casos na medida em que o destinatário das informações retiradas do então COAF – o Ministério Público – não é um ente da Administração Pública. No atual desenho constitucional, o Ministério Público desempenha função essencial à justiça, sendo uma instituição integrante da função jurisdicional do Estado (art. 127 da Constituição Federal), representando, sobretudo, o Estado Acusador.

Portanto, o ponto sensível deste caso é que há troca de informações privadas protegidas constitucionalmente entre diferentes poderes do Estado, com diferentes funções e graus de interferência na vida de um cidadão, sem autorização do Poder Judiciário. Ora, por ser o sigilo de dados uma garantia individual e fundamental, apenas o Poder Judiciário pode autorizar, caso a caso, diante de fortes justificativas, qualquer flexibilização deste direito.

Permitir o acesso irrestrito e compartilhamento direto de dados entre órgãos administrativos de fiscalização e controle e o Ministério Público seria criar uma rede constante de vigilância que afronta a Constituição Federal e os direitos dos cidadãos brasileiros. Além disso, abre-se caminho para a utilização dessas informações para fins políticos e contingenciais, tornando letra morta a garantia fundamental inscrita na Constituição.

À semelhança da clássica distopia narrada por George Orwell em “1984”, daríamos um passo adiante em direção a um regime de vigilância constante do indivíduo, no qual o cidadão corre o risco de ser escrutinado pelo mesmo Estado que, no começo deste ano, tentou restringir o alcance da Lei de Acesso à Informação, na tentativa de aumentar ainda mais a assimetria Estado-sociedade civil.

É balela o argumento de que a necessidade de autorização judicial para acesso a dados individuais sigilosos prejudique o combate à corrupção. Não podemos cair no discurso fácil de que “vale tudo contra a corrupção” – uma cantilena punitivista, simplista e redutora de direitos e garantias, que a pretexto de atingir o “andar de cima”, reforça o estado de calamidade no sistema de justiça criminal brasileiro, com danos ainda maiores aos que estão no “andar de baixo”.

Existe um caminho processual e judicial que as autoridades devem percorrer para que seja autorizada a quebra deste sigilo e a circulação das informações dela constantes. Inclusive, este caminho é salutar para o próprio Estado, na medida em que seu percurso adequado evita a declaração de nulidades no futuro, legimitando o sistema processual e protegendo os cidadãos contra abusos.

É preciso que o Supremo estabeleça claramente os critérios objetivos que os órgãos administrativos de fiscalização e controle, como Receita, UIF, BACEN, devem respeitar ao transferir informações sem controle judicial para o Ministério Público – observando os direitos fundamentais e garantias individuais.

Do contrário, qual seria o próximo passo? A instalação de câmeras de vigilância em todas as ruas e dentro de nossas residências para maior “proteção”?

ANDRÉ JORGETTO DE ALMEIDA é advogado, formado pela Faculdade de Direito da USP e professor-assistente na PUC/SP. Sócio-fundador do escritório Mantoan Martinez Almeida.

PEDRO MARTINEZ é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Sócio-fundador do escritório Mantoan Martinez Almeida.

Referências bibliográficas

[1] GOMES CANOTILHO et al. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2018 (Série IDP), p. 312.

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