De repente senti a pancada. Me abaixei, coloquei a mão no olho e o sangue jorrou. Fiquei meio atordoado nessa hora. Pedi ajuda e saímos correndo. Nós, professores deste país, devemos lutar pelos nossos direitos. Eu não dei a cara para bater, dei o olho. Mas prefiro perder o olho lutando do que ficar em casa vendo meus amigos de profissão apanhando, levando tiro e sofrendo da polícia, que também é explorada pelo governo.
Saí do hospital muito revoltado. Eu não estava atacando pedras, só tinha uma câmera na mão. Se não tivessem maldade, deviam ter atirado nas pernas. Por que mirar na direção da cabeça? Quando voltei a encontrá-los, disse para os policiais: se eles são covardes e não têm capacidade de lutar pelo que é direito deles, nós lutamos e era só por isso que estávamos lá hoje. Foi uma guerra. O efetivo policial era muito grande e o uso da força, desproporcional.
Esse 29 de abril não era para ser normal. Era o dia da votação do projeto de confiscar R$ 8 bilhões e dissolver esse dinheiro para cobrir os rombos do Estado. A nossa intenção foi fazer a mobilização, mas de maneira pacífica. Somos professores. Estávamos acampados na Praça Nossa Senhora de Salete. Desde anteontem, a polícia já vinha causando desconforto. Eles mexiam nas barracas e guincharam um carro de som. Na noite antes da votação, foi uma guerra psicológica. Eles faziam muito barulho. Estavam tocando o terror com a Tropa de Choque.
Dormi no acampamento. Os professores fazem isso com frequência, nas greves do Paraná. Eles acampam na praça que fica entre os Três Poderes, o Palácio Iguaçu, a Assembleia Legislativa e o Judiciário, um pouco mais para baixo. Quando acordamos de manhã, já havia muita movimentação da Tropa de Choque. Percebi também que havia policiais ainda em fase de formação, despreparados. O efetivo muito grande impressionava. O governador mobilizou policiais do Estado todo para estarem na capital. Tem muitas cidades do interior que estão com a segurança comprometida por esse deslocamento do contingente policial.
Eu estava junto do pessoal, ali na multidão, próximo à grade, de frente para os policiais. Vi um pessoal provocando, mas eu estava só filmando e fotografando. Quem me conhece, sabe que fico fazendo isso. De repente, o caminhão de som anunciou que a reunião estava em andamento, mas que o governador Beto Richa estava irredutível. O pessoal se exaltou, alguns puxaram a grade. Logo começaram as pancadas com cassetetes, as bombas de efeito moral, o gás lacrimogênio.
O povo foi recuando, recuando e os policiais foram chegando e fechando o cerco. Aí entrou a Tropa de Choque. E aquele caminhão, o Caveirão, foi descendo. A intensidade das bombas e do gás foram aumentando. Os professores se dispersaram. Eu fiquei um pouco desorientado, mas continuei filmando. No fim, desci em um estacionamento, na lateral próxima do carro de som. Acho que me tornei um alvo fácil, porque parei para tirar fotos naquele local.
Não sei de onde partiu o tiro que me atingiu. Fui pego de surpresa. O tiro acertou também a mão que usava para filmar. Não sei se o tiro veio primeiro na minha mão e acertou o meu rosto depois. Foi tudo muito rápido. Se não tivesse de óculos, aqueles de construção que uso para me proteger, talvez tivesse perdido a visão. O pessoal que me socorreu levou lá para baixo, na Prefeitura. Fizeram um pronto-socorro improvisado. Depois me levaram numa viatura da Guarda Municipal para o Hospital Cajuru. Havia outros feridos por lá.
Minha preocupação é que não enxergava nada. O sangue só escorria. Fiz os exames, e com muito sacrifício consegui abrir os olhos e voltar a enxergar.
Só com a quantidade de gás lacrimogêneo que jogaram, e foi muito, não há Cristo que fique por perto. Nós éramos professores, alguns de nossos colegas são de mais idade. Esse grupo se afastou, uns poucos ficaram revidando e outros aproveitam para tirar fotos e filmar.
Sou professor de Geografia em Londrina, temporário, os chamados PSS. Mas com essa política do Beto Richa de cortar um monte de coisas das escolas, neste ano não consegui pegar aula, assim como muitos colegas. Ele amontoou de 40 a 50 alunos nas salas, simplesmente para dar uma enxugada. A maior parte dos colégios está com salas lotadas.
O governador tomou medidas contra a educação, como o corte de postos de escola. Está faltando merenda, não tem funcionário para limpar a escola, estão demitindo professores, banindo cursos de línguas, e reduzindo o porte das escolas — as que restaram estão saturadas. A categoria estava lutando para não ser aprovado o projeto de mudanças na Paraná Previdência. Infelizmente, a sociedade não está atenta ou a par do que realmente acontece. Tem gente que vê professores se manifestando e acha que é só por salário. Nossa luta envolve muitas outras questões, a começar pela nossa dignidade.
Quando a gente vê essas questões que envolvem os professores, acabamos nos sentindo como se fôssemos inimigos da sociedade. Há uma hipocrisia muito grande. Muitos dizem que se não valorizar a educação, o país não vai para frente. É um discurso muito bonito. Mas na prática isso não existe por parte da sociedade. Se queremos melhorar o Brasil, então temos que lutar por algo. Não é só simplesmente ficar falando. Temos que tentar reverter algumas mazelas que alguns governantes nos impõem devido aos seus projetos de poder.
O Estado do Paraná está falido. Nos quatro anos em que governou, Richa jogava a culpa no Roberto Requião ou no governo federal. Agora não tem mais como jogar a culpa no governador anterior, porque ele foi o último. Mas esse governo fez uma grande amarração política, com o Legislativo e o Judiciário. Você não consegue lutar contra. Se faz greve, a Justiça decreta a paralisação como ilegal. Não é possível ter um projeto decente para a educação, porque os deputados já estão visando o acordo político com o governador.
A gente se sente humilhado. Como pode um Estado rico, de uma gestão para outra, que envolve o mesmo gestor, se encontrar numa situação calamitosa? É revoltante ver como está a nossa educação. Por isso vamos continuar lutando.
Perdemos uma batalha, mas não a guerra.
* Márcio Henrique dos Santos, 34 anos, é professor temporário desempregado de Geografia em Londrina. A Associação de Professores do Paraná levou os feridos para um hotel a fim de protegê-los. Ele deu esse depoimento a Eduardo Nunomura.