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Professor de SC denuncia perseguição e demissão ideológica ao MP

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Escola Municipal Oswaldo dos Reis, em Itapema, de onde professor foi demitido por discutir texto sobre tortura, classificado como crime hediondo e inafiançável. (Foto: Arquivo da Prefeitura de Itapema)

Era a Semana do 55° aniversário da Ditadura Militar brasileira. A quadra de Educação Física da Escola Municipal de Educação Básica Oswaldo dos Reis estava perigosa com as reformas inacabadas. O professor da disciplina, Willian Meister, se viu levado a desenvolver um conteúdo pedagógico em sala com os alunos do sétimo ano. Decidiu apresentar um texto poético sobre a ditadura para discussão dentro do projeto de incentivo à leitura que integra todas as disciplinas. O texto escolhido foi o do poeta paraibano Alex Polari, preso e torturado pelos militares aos 20 anos, suplício que inspirou um conjunto de poemas sobre os porões da ditadura. Polari tornou-se célebre também pelas cartas que escreveu à estilista Zuzu Angel, revelando-lhe ter testemunhado o assassinato, sob violenta tortura, do filho Stuart Angel Jones, desaparecido político que ela procurava obstinadamente há quatro anos. Na carta, Polari descreve os requintes de crueldade sofridos pelo jovem até o último suspiro, calvário de horror que ele conseguiu espiar por um buraco na parede do cárcere.

As cartas e poemas sobre a tortura na obra de Polari, hoje seguidor do Santo Daime, fazem parte indelével da literatura memorial sobre o Golpe de 64. Já foram inclusive objeto de encenação em especial da rede Globo sobre Zuzu Angel. Embora esses fatos sejam de amplo conhecimento público, a aula provocou a ira de um pai de aluno, o radialista e ex-militar do Exército, Marcelo Fidêncio, que compareceu ao gabinete da prefeita Nilza Simas (PSL) para prestar queixa contra o conteúdo da leitura. Foi o pretexto para Willian Diógenes Meister receber uma advertência por conduta inadequada da direção da escola pública, localizada no bairro Várzea, no município de Itapema, Litoral Norte de Santa Catarina. Na terça-feira, véspera do Dia do Trabalhador, quando deveria renovar o seu contrato como professor Admitido em Caráter Temporário (ACT), a secretária municipal de Educação, Alessandra Simas Ghiotto, irmã da prefeita e ambas aliadas do Governo Bolsonaro, comunicou-o da dispensa do posto que ocupava de forma intermitente desde 2012 através de concurso público. O último contrato se referia ao seletivo do final de 2017, quando ficou em segundo lugar na sua área para escolha de vagas nos dois anos seguintes.

Professor Willian Meister, ao lada da esposa, também professora: livros em vez de armas. (Foto: arquivo pessoal)

Em linguagem de ACT, não renovar o contrato significa demissão. Casado com a também professora Alessandra Silva, dois filhos e desempregado, o professor não pensou um momento sequer em se curvar à arbitrariedade. No mesmo dia, entrou com representação no Ministério Público de Santa Catarina – MPSC denunciando a direção da EMEB Oswaldo dos Reis e a Secretaria de Educação da prefeitura por improbidade administrativa, assédio moral e violação da liberdade de cátedra.

DESEMPREGADO NO PRIMEIRO DE MAIO

Formado em Educação Física e dedicado à pedagogia, Willian Meister declarou em entrevista aos Jornalistas Livres que o caso dos poemas sobre tortura, classificado como crime hediondo, foi o ápice de um longo processo de perseguição político-ideológica. Assessorado pelo advogado Luiz Fernando Ozawa, ele explica o teor do documento jurídico: “Nossa representação ao MP contra a minha demissão denuncia vários indícios de assédio moral, com farta documentação, ocorridos desde o início do ano, que levaram a gestão da escola a cometer crime de improbidade administrativa”, afirma ele, que atua como militante social nas áreas de direitos humanos, políticas públicas e meio ambiente, hoje não mais filiado a nenhum partido.

Marcelo Fidêncio, ex-militar do Exército que denunciou professor por abordar tema da tortura. (Foto do perfil do Facebook)

A representação argumenta que a demissão fere o princípio da legalidade porque está baseada em uma advertência irregular, amparada unicamente na queixa do pai contra a discussão de um texto sobre a ditadura. No dia 14/04 último, coincidentemente data do 43° assassinato de Zuzu Angel, a reprimenda foi formalizada pelo diretor da escola sem direito à defesa, como pressupõe a lei, segundo afirma o professor: “Não fui ouvido, ninguém mais foi ouvido, não houve direito ao contraditório”, afirma, lembrando que os textos foram contextualizados e discutidos com os alunos para que levassem a uma compreensão histórica do período da ditadura. Acusado pelo pai de ministrar um conteúdo inapropriado para a disciplina, afirmou que o incentivo à leitura está previsto no projeto pedagógico interdisciplinar da escola.

O advogado alega também quebra do princípio da impessoalidade, sustentado no fato de que a dispensa se caracteriza como punição a adversário político. Explica-se: em 2012, Willian Meister se candidatou a prefeito de Itapema pelo PSoL e, novamente em 2016, quando fez oposição à chapa vencedora do PSD, encabeçada por Nílza Simas. Eleita, a prefeita nomeou sua irmã Alessandra, também do PSD, ao cargo de secretária municipal de Educação e ambas se engajaram na campanha pela eleição de Bolsonaro (PSL), alinhadas com o diretor da escola, Emílio César da Silva (também presidente do Conselho Municipal de Educação de Itapema).

Dois dias antes de receber a advertência, Meister soube pelo diretor que havia uma denúncia anônima de um pai “youtuber” à prefeita Nilza Simas por questões político-partidárias. Por conta disso, a secretária de Educação, irmã da prefeita, solicitou ao diretor e à supervisora que gerassem um relatório para apresentar ao “pai-denunciante”, mas não houve consulta ao denunciado. Desde a sua chegada à escola, em 2018, começaram os desentendimentos com Emílio que, segundo a representação, começou a deixar claro que a sua presença era indesejável na instituição. “No início, com divergências de ideias, metodologias e práticas, em discussões dentro dos limites do processo educacional. Porém, a partir do início do ano letivo de 2019, o diretor passou a intensificar suas ações no sentido de expulsar Meister de ‘sua’ escola, usando da burocracia para constranger o professor, seus alunos e suas práticas de ensino”.

O professor demitido garante que não vai se submeter à sanção sem recorrer à justiça porque tem muito respeito e afeto pelos alunos e pela instituição, tanto é que escolheu a mesma escola onde trabalhou no período da seleção anterior, em 2016. “Quero levantar a cabeça e retornar à sala de aula. Acho importante passar essa mensagem à comunidade escolar de que o poder político cometeu excessos contra o professor, mas isso depende da interpretação do judiciário. Vou aguardar confiante”. Ainda que o tema seja forte, considera necessário conscientizar adolescentes e jovens sobre a tortura como crime contra a humanidade, considerado hediondo, inafiançável, imprescritível e não suscetível à anistia pelo Art. 5º, inciso XLIII da Constituição Federal.

ESCOLA SEM TORTURA

Governada por um militar reformado, o comandante Carlos Moisés, Santa Catarina tem sido cenário de assédios constantes de partidários do Projeto Escola Sem Partido a escolas e professores, como ressalta também a representação ao MP/SC. Deputada Ana Caroline Campagnolo (PSL), que se declara antifeminista e uma das baluartes desse projeto, embora sua inconstitucionalidade já tenha sido atestada pelo STF por violar a liberdade de ensino, estabeleceu sua base na região do Litoral Norte, à qual pertence o município de Itapema.

Foto de Otávio Magalhães (O Globo), que comprova o assassinato de Zuzu Angel pelo coronel Perdigão (de branco, encostado no poste)

Há 43 anos, fortemente impactada pela carta do poeta Alex Polari, Zuzu Angel deslanchou sua campanha nacional e internacional contra as atrocidades da ditadura militar e o assassinato do seu filho, cujo corpo nunca foi devolvido pelos militares. Só se calou ao morrer no dia 14 de abril de 1976, num sinistro acidente na Estrada da Gávea (Rio de Janeiro), na saída do túnel que hoje leva seu nome. O acidente é atribuído a uma sabotagem criminosa no seu Karmann Ghia executada pelo coronel do Exército Freddie Perdigão, identificado como torturador por vários presos políticos no governo Geisel. Além de vários outros indícios, ele foi flagrado numa foto jornalística ao lado do carro capotado, revelada somente em 2014, pelo ex-agente de repressão Cláudio Guerra.

Em depoimento para a Comissão Nacional da Verdade, o advogado José Bezerra da Silva, outra testemunha da morte de Stuart, relatou que assistiu, no dia 14 de junho de 1971, à sessão de suplício final em que o jovem foi amarrado pela boca ao cano de descarga do jipe de um oficial militar e arrastado. Bezerra, que era soldado da Aeronáutica na época, reclamou da covardia e em resposta foi levado para a guarda e torturado. Por conta do espancamento, sofreu uma hemorragia no tórax e passou por uma cirurgia e ainda em recuperação foi arrancado da cama pelo tenente, seu chefe, para nova sessão de tortura. Parece que a prática de eliminar do cenário mães, poetas, militantes, jornalistas, professores e até militares que insistem em dar o testemunho das crueldades indecorosas do regime autoritário às futuras gerações voltou à cena nessa marcha-ré da história brasileira.

Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)

 

Por Alex Polari

Poesia de Alex Polari denuncia a própria tortura e a de outros jovens nos porões da ditadura. (Foto: Socialista Morena)

Eles costuraram tua boca
com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gases,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.
Um vento gelado soprava lá fora
e os gemidos tinham a cadência
dos passos dos sentinelas no pátio.
Nele, os sentimentos não tinham eco
nele, as baionetas eram de aço
nele, os sentimentos e as baionetas
se calaram.
Um sentido totalmente diferente de existir
se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.
Eles queimaram nossa carne com os fios
e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.
Então houve o percurso sem volta
houve a chuva que não molhou
a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.
Entregue a perplexidades como estas,
meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.

 

Abaixo, cenas do especial da Globo sobre Zuzu Angel, no qual sua filha, Hildegard, fala do impacto da mãe ao receber a carta de Alex Polari, em maio de 1975, dando detalhes sobre a tortura e a morte de seu filho Stuart:

 

 

Leia a matéria publicada pelo DIARINHO, de Itajaí, sob o título “Professor denuncia perseguição”, assinada por Sandro Silva

Professor denuncia perseguição ideológica

O professor Willian Meister, de Itapema, apresentou ontem no MP uma denúncia de perseguição político-ideológica praticada, segundo ele, pela direção da escola onde trabalhava e pela secretária de Educação da prefeitura de Itapema. Na terça-feira, Willian não teve o contrato de trabalho temporário renovado porque, segundo a secretaria, aplicou conteúdos inadequados. O professor havia lido com os alunos um texto-poema sobre tortura na ditadura militar.

Willian dava aulas de educação Física na escola Básica Municipal Oswaldo Reis, na Várzea. Há cerca de 10 dias, como estava chovendo, a quadra estava em reforma e a última aula integrava um projeto de incentivo à leitura dos alunos, ele apresentou a uma turma da sétima série a coletânea de textos “A Tortura na Poesia de Alex Polari”.

O poeta paraibano Alex Polari foi um dos muitos presos políticos do Brasil e foi quem, por exemplo, alertou a socialite e estilista Zuzu Angel que o filho Stuart havia sido preso, torturado e assassinado pela ditadura. Zuzu, na busca pelo filho, também foi assassinada pela ditadura. O professor diz que recebeu uma advertência sobre isso, mas sequer lhe apontaram detalhes de uma suposta denúncia de pai e que não teve direito à defesa.

A Secretaria de Educação confirmou que a não renovação do contrato de trabalho de Willian tem a ver com o caso. “As denúncias foram realizadas por pais dos alunos referentes a prática e conteúdos abordados que não estavam de acordo com o planejamento pedagógico da disciplina de educação física”, informou a nota.

Na representação contra a prefeitura e a direção da escola, Willian pede à promotoria que saia em defesa ao chamado direito de cátedra, que permite ao professor conduzir as aulas sob seu ponto de vista. Também pede a abertura de um inquérito civil para apurar crime de improbidade administrativa. “Esses ataques à educação, à liberdade de cátedra e à atuação do professor não são normais e não podem ser aceitos dentro de um estado democrático de direito”, argumenta.

A coletânea de texto de Alex Polari, usada pelo professor, pode ser lida no link: encurtador.com.br/vKQY3

 

Pai que denunciou professor é ex-militar

O trabalho em sala de aula despertou a ira do ex-militar Marcelo Fidêncio, pai de um aluno de 12 anos. Foi ele quem, por duas vezes, procurou a escola e a secretaria de Educação para reclamar do professor.

Marcelo sabe do programa de incentivo à leitura. Mas não concorda com o conteúdo do texto apresentado por Willian. “O texto dizia palavrões, que as crianças que ficavam enfileiradas para cantar o hino nacional eram retardadas e endemonhados”, diz o pai, que também não gostou do fato do professor ter citado que um prefeito de Balneário Camboriú (Higino Pio) chegou a ser torturado pela ditadura.

“Ele é professor de educação e poderia ter dado texto sobre o Pelé ou sobre qualquer coisa”, entende o pai, que ainda acusa o professor de ter feito uma pressão generalizada nos alunos quando descobriu a denúncia e mesmo sem saber quem era o autor o chamou de “covarde” em sala de aula.

Fidêncio esteve no Exército durante três anos.

Tem 31 anos de jornalismo, formado em pedagogia pela Udesc e com MBA em Gestão Editorial. geral@diarinho.com.br

 

https://diarinho.com.br/noticias/geral/professor-denuncia-perseguicao-ideologica/

 

 

 

 

Geral

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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Geral

O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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