Bárbara Querino de Oliveira, a Babiy, teve a vida transformada pelo preconceito. Aos 21 anos, esta jovem mulher negra apaixonada pela arte foi acusada e presa por um crime que não cometeu.
Ao Hypeness, Babiy revelou a sensação angustiante de não apenas ser acusada, mas ter a liberdade interrompida pela criminalização constante de pessoas pretas. Pior, ela foi apontada como pivô de um assalto por uma característica que tanto ama, os cabelos cacheados.
“Ser presa por ser uma mulher negra é revoltante. Se você não tem a cabeça, o psicológico bom, pessoas para te ajudar, você fica desgostosa de tudo. Você passa a se odiar”, diz ela.
‘Cor parda. Cabelos longos encaracolados’
O sistema é f*da e agiu direitinho para incriminar Babiy. Ela, o irmão Wesley Victor Querino de Souza, de 19 anos, e um primo, William Wagner de Paula Silva, de 24, foram presos pelo suposto roubo de um automóvel na zona sul de São Paulo.
Eles não tinham nada a ver com a história e talvez nunca fossem apontados como suspeitos se não tivessem a pele escura. Se você não sabe, caro leitor, ser negro implica na perda do seu direito de ir e vir. Dúvida? Converse então com o jovem fotógrafo de Jundiaí tratado como bandido em potencial por moradores de um bairro de classe média da cidade do interior de São Paulo. Ah, o racismo…
Babiy foi levada pelos policiais até a delegacia, lá fotografada e as imagens, sabe-se lá como, foram parar em grupos do Facebook e WhatsApp. O bastante para cidadãos de bem julgarem e condenarem a dançarina. A brecha que o sistema queria, Babiy estava pintada como ladra e membra de uma quadrilha de assaltantes de carro.
O casal vítima do roubo de um Honda Civic era membro de um desses grupos de WhatsApp. Os dois foram até o 99º DP do Campo Grande, viram as imagens e não tiveram dúvidas da participação da jovem no crime.
Baseados em? Para eles, o fato de Babiy ser uma jovem negra de cabelo encaracolado era suficiente para colocá-la atrás das grades. Babiy era uma jovem “da cor parda, cabelos longos encaracolados da cor preta, olhos escuros, magra, altura aproximadamente de 1,68m, aparentando ter a idade entre 18 a 20 anos”, diz o termo de declarações da delegacia.
Babiy revela a angústia de ser taxada de criminosa por uma característica tão bonita, seus cabelos.
Foi duro. Foi difícil pra caramba, porque eu fui reconhecida pelo meu cabelo cacheado e eu amo meu cabelo, sabe? Fora que assim, nós mulheres negras nascemos fortes, sabe? Sem perceber, a gente vê que tudo que passamos na nossa vida a cada dia é uma superação.
Bárbara acabou condenada pelo roubo do veículo em 10 de setembro de 2017. Seu irmão e primo também foram acusados pelo crime. A jovem acabou presa em 15 de janeiro de 2018 e sentenciada a cinco anos e quatro meses de prisão e encaminhada ao Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira no Butantã, onde passou quase dois anos de sua vida.
A rotina do cárcere é das piores possíveis. O ambiente é ainda mais delicado para uma pessoa negra. A sensação de ver dezenas de semelhantes encarcerados pode ser insuportável. Em comparação com uma pessoa branca, nascer preto no Brasil significa ter o dobro de chances de parar atrás das grades. Afro-brasileiros representam dois terços da população carcerária do país, cerca de 64% dos detentos. Babiy fala com apreensão sobre este período. Ela, no entanto, reforça a importância e o apoio de outras mulheres negras no percurso.
“Tem gente com sentimento sim”, inicia ela que chama a atenção para as armadilhas deixadas pela modernização de métodos escravocratas típicos do Brasil.
“Se você não é uma mina que entende seu empoderamento, não se ama por completo, você acaba tendo que lidar com questões sociais que refletem na sua vida. Você vai passar a ser odiar por ser uma mulher negra e ter sido presa por isso”, acrescenta.
De onde vem tanto ódio?
Perto de completar 520 anos, o Brasil não tem muito o que celebrar. O último país das Américas a abolir a escravidão (será que aboliu?) reluta em encarar seu passado e ainda acredita na violência como maior resposta para os desafios sociais.
Democracia?
Marielle Franco, assassinada a tiros no centro do Rio de Janeiro, não deixa mentir. Nem o feito de assumir o posto de quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro livrou a mulher preta da favela da Maré da morte.
No caso de Babiy, os sonhos quase foram interrompidos pela impiedade do sistema judiciário brasileiro. Ela explica que durante 1 ano e 8 meses no cárcere repetiu diversas vezes que deveria se amar, mas que mesmo assim sentiu na carne as artimanhas do Estado.
“Graças a Deus, sempre tive consciência. Amo minha cor, me amo de verdade. Não tem isso. Então, digamos que é uma forma do sistema judiciário tentar nos exterminar. Fazer com que odiemos nossa cor, nosso povo. Muito bizarro. É um puta de um genocídio, essa é a real”.
Mas o ódio não se cria só com o ódio do promotor. Ele, na verdade, cresce com o auxílio da mídia. Os programas policialescos que dividem espaço com o império de igrejas capitalistas assumem o papel de desumanização. Apresentadores, quase todos brancos, não disfarçam sua sede por sangue. Quer dizer, Justiça.
“Não é que a raiva faz parte da minha rotina, mas tem momentos que ela está em presente. Há momentos em que olho pra tudo, me sinto bem perdida e acho que não consigo me encaixar, que sou um lixo de pessoa. Aí me bate uma raiva por ter passado por tudo que passei. Essa é a real”, destaca.
O roteiro parece se inspirar no cinema e cria rótulos de vilão e mocinho. O palco está armado para passar ao espectador a ideia de que o crime acontece por pura maldade. Não existe vontade alguma de contextualizar e ressaltar a concentração de renda na mão de poucos enquanto pobres e pretos – tratados como podres – como já cantaram Gilberto Gil e Caetano Veloso, se estapeiam pelas migalhas. Brasil acima de todos!
Diferente do que é dito por aí, Babiy encontrou muita humanidade dentro do centro de detenção.
O acolhimento das mulheres, ainda mais negras, era muito grande. A gente se ajudou muito lá dentro. 90% das mulheres do sistema carcerário são negras. Todas nós estávamos ali fortes e ajudando umas as outras. Mantendo sempre o convívio em paz. Umas são empoderadas, outras não. Tinha momentos lá dentro que a gente fazia assim, ‘ah, hoje vou ser sua psicóloga, vamos conversar’. Uma era psicóloga da outra, porque uma entendia as dores da outra, sabe? Então, uma sofreu na pele o que a outra tava sofrendo e sofreu.
Pela arte
Babiy precisou se desafiar psicologicamente para segurar a onda do encarceramento injusto. Assim como Preta Ferreira, que também foi presa por defender o acesso à moradia em São Paulo, a jovem de 21 anos canalizou a indignação na arte.
“Olha, lá dentro pra não chapar eu escrevia, conversava, fazia a unha, a sobrancelha das meninas. Eu chorei bastante no começo, mas depois pensei, ‘ah não, se eu to aqui na merda, vamo aprender a lidar com essa merda’. E, basicamente eu pegava e escrevia, conversava bastante com as meninas. Isso me aliviou bastante. Eu passava horas escrevendo para as pessoas que me escreviam. Escrevia textos”, recorda.
A tática se mostrou eficaz para Babiy, mas a verdade é que o desafio psicológico de estar atrás das grades é inimaginável. Para se ter ideia da falta de Justiça no Brasil, dos 812 mil presos, 337 mil estão presos sem condenação.
O caso é grave e aumenta os desafios de quem senta no banco dos réus. Os já citados programas policiais exercem papel decisivo neste cenário. Supostos criminosos são julgados e condenados antes de mesmo do parecer do juiz.
“Teria sido afetada radicalmente se as pessoas não soubessem da minha inocência. Mas a maioria sabe que sou inocente, pois acompanharam o caso. Então, apareceram alguns trabalhos”, explica Babiy.
Ela, no entanto, reforça a existência do preconceito velado. Olhares desconfiados surgem vez ou outra.
“Ainda tem a questão das pessoas olharem diferente, sabe? A galera sabe que eu sou inocente, mas também sabem que fiquei 1 ano e 8 meses da minha vida dentro da cadeia. Que conheci pessoas lá dentro, conheci o crime. Mas isso não interfere nada em quem eu sou. Isso não reflete na minha vida. Eu não gosto nem de ficar lembrando dessas partes. O que eu conheci lá de ruim tento esquecer. Pego aquilo que foi aprendizado mesmo. Mas tem uma galeria hipócrita. Essa é a palavra”, conclui.
‘Liberdade para Babiy’
Nesta terça-feira (29), Babiy terá uma audiência de reavaliação, que pode absolvê-la ou manter a condenação. “É tudo ou nada. Penso positivo sempre, mas tenho meus pés no chão”, explica.
A dançarina afirma que encara o momento decisivo com otimismo. Ela salienta que a audiência pode ser uma oportunidade para a Justiça se redimir. “O judiciário brasileiro vai ter a chance de tentar…tentar reconhecer seu erro. Tentar reconhecer e mostrar para as pessoas que reconheceu seu erro. Reparar não tem como”.
A forma com que Babiy se refere ao sistema judiciário revela a inabilidade do setor em contemplar as demandas da população negra, que além de estigmatizada, sofre na pele as consequências do racismo institucionalizado. Portanto, para a dançarina é muito mais do que provar a inocência diante do júri. É um compromisso com sua história, com sua caminhada pelo certo e amparada em expressões artísticas.
“A absolvição vai ser uma chama reacendendo, sabe? Contra o sistema judiciário, os erros que ele comete todos os dias no país. Eu creio que vai ajudar muitas pessoas. Esse é o intuito, de ajudar. O que eu passei não tem como apagar da memória, então o foco é ajudar para que as pessoas não passem pelo que eu passei”.
Vida nova
A verdade é que Babiy Querino só quer viver sua vida. Talvez seja o sonho de todo o negro brasileiro. Liberdade é o que todo o preto tenta.
“As pessoas estão conhecendo a Babiy de verdade. Essa sou eu. Sou uma menina mulher. Sou nova. Sou objetiva, firme quando quero e tenho que ser. Sou uma pessoa que não desiste fácil. Não guardo nada de ninguém e ajudo no que puder”.
A transformação passa pela mudança de endereço. Babiy não quer dar de cara todos os dias com o passado traumático. A dançarina abriu uma vaquinha para ajudá-la a mudar de casa.
“Os policiais vivem no bairro onde eu moro. Eu não sou uma pessoa de muitos medos, mas temo pela minha segurança e a segurança da minha família. Então, é melhor me manter um pouco longe porque eles sabem que eu vou estar por aqui. Agora nem tanto porque, digamos, que aos olhos deles eu estou sentenciada. Saindo a absolvição, com fé em Deus…é um processo contra o Estado e os policiais. A gente vai dar uma cutucada bem grande neles. Eu preciso sair daqui. Aconteceu tudo aqui, na rua da minha casa. Fora a situação do meu irmão ser preso, algemado. O primeiro contato com a questão do encarceramento. Eu lembro do meu irmão, sinto saudades deles. Lembro do dia e fico triste. São questões de segurança e psicológicas”.
Ouviram? Não se engane, pode acontecer com você se for preto e pobre. Que Babiy fique marcada não como a menina negra presa injustamente, mas como estímulo para a luta por um sistema que seja justo.
“Comigo não tem tempo ruim. É isso. Quero contar a minha história e mostrar para as pessoas que nós devemos semear o amor. O amor me salvou, a arte, minha família e os amigos. O amor das pessoas por mim e pela minha história. O amor salva. A arte salva”.
Não acredite em promessas vazias e que desconsideram a cultura e educação como caminhos indissociáveis da igualdade social. A própria Babiy tem uma opinião muito bem fundamentada sobre cultura. “É praticamente o ar que eu respiro. Eu vivo pra dançar e danço pra viver. Minha válvula de escape. Se estou triste, vou dançar. Se estou feliz ou com raiva, danço. Se estou com raiva também danço. Digamos que a dança é uma lavagem para alma”.
“Eu quero que as pessoas se sintam com eu, sabe? Quero que as pessoas lavem suas almas dançando ou fazendo qualquer tipo de arte. Quero que as pessoas sejam felizes, se mantenham equilibradas por dentro e com o espírito leve. A dança e a cultura fazem isso comigo. Me deixam leve e me fazem querer lutar pelos meus. Me faz querer ensinar. Querer amar”
Mais de um anos depois de serem mandados para a prisão, terem a liberdade provisória concedida e aguardarem a decisão final, jovens foram considerados inocentes. Na decisão a juíza declarou que “JULGO IMPROCEDENTE a denúncia, para o fim de absolver” os quatro jovens. A história dos quatro jovens do Jd São Jorge é exemplar e a decisão de sua inocência sair em meio explosões de manifestações contra o racismo e violência policial no mundo, por conta do assassinato de George Floyd pela polícia dos Estados Unidos, torna a situação exemplar.
Washington Almeida da Silva, os irmãos Pedro e Fabrício Batista e Leandro Alencar de Lima e Silva foram presos em dezembro de 2018, após terem sido acusados de roubar um Uber na Zona Oeste da cidade de São Paulo. Eles foram para a prisão em seguida. Enquanto estiveram na prisão suas famílias passaram a lutar para provar sua inocência. Depois se organizaram e reuniram provas que demonstraram a inocência dos quatro. Com apoio da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, organizaram atos para mobilizar as pessoas do bairro onde os jovens nascerem e crescerem, Jd São Jorge, na Zona Oeste da cidade.
As famílias reunidas Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres (Abril de 2019)
Em março do ano passado a juíza Cynthia Torres Cristofaro, da 23ª Vara Criminal, concedeu liberdade provisória para os quatro. Desde então os jovens apresentaram as provas que as famílias e o advogado Luiz Toledo Piza juntaram ao longo do processo e aguardaram a decisão da juíza. Na última quinta feira, 4, veio então a decisão.
Nela a juíza Cristofaro, depois de retomar os pontos do processo, afirma que “ao exame da prova dos autos persiste dúvida insuperável quanto à hipótese acusatória, mal esclarecida” e lembra que “em relação à identificação dos réus não foi possível tomar da vítima”, sendo que esta não compareceu nas audiências. E conclui com a absolvição dos quatro.
Para o advogado o caso se faz exemplar uma vez que a “realidade mais uma vez traz à tona, o despreparo da nossa polícia e a falta de interesse do Estado em investigar os reais fatos de uma malfadada acusação contra inocentes” e recomenda “que as autoridades tomem maiores cuidados, mais cautela e promovam investigações mais profundas, antes de atirarem pessoas inocentes nos calabouços da prisão”.
No dia 10 de dezembro de 2018, os jovens foram abordados por Policiais Militares que haviam encontrado um carro de um Uber, roubado numa rua próxima. Os quatro alegaram inocência ao serem presos pelo roubo. Mas mesmo assim foram mandados para a prisão.
Além de organizar atos pela comunidade a família juntou provas para demonstrar a inocência dos quatro, como:
Uma testemunha que afirma ter visto os rapazes ali até por volta das 23:40h, enquanto o roubo estaria acontecendo (no B.O. a ocorrência está registrada como iniciada às 23:45h).
As roupas que a vítima descreveu não combinavam com as dos quatro na noite do crime.
Nenhum dos jovens estava com os itens roubados, o reconhecimento da vítima ter sido realizado de forma avessa ao código penal.
E um roubo muito parecido ter ocorrido pouco tempo depois, próximo do local.
Respeitando as regras de distanciamento social, os manifestantes se reuniram às 13h em frente ao Palácio da Justiça e saíram em passeata até as “Torres Gêmeas”, onde Miguel morreu. De maneira pacífica, gritaram palavras de ordem e pediam a responsabilização de Sari Gaspar Corte-Real, a patroa que negligenciou Miguel.
“Esse horror que é a morte do menino Miguel é a história com mais símbolos de que eu tenho lembrança:
A empregada que trabalha durante a pandemia;
A empregada, mãe solo, que não tem com quem deixar o filho;
A empregada é negra;
A patroa é loura;
A patroa é casada com um prefeito;
O prefeito tem uma residência em outro município, que não é o que governa;
A patroa tem um cachorro, mas não leva ele pra passear, delega;
A patroa está fazendo as unhas em plena pandemia, expondo outra trabalhadora;
A patroa despacha sem remorso o menino no elevador;
O menino se chama Miguel, nome de anjo;
O sobrenome da patroa é Corte Real;
A empregada pegou Covid com o patrão;
A empregada consta como funcionária da Prefeitura de Tamandaré;
Tudo isso acontece nas torres gêmeas, ícone do processo e verticalização desenfreada, especulação imobiliária e segregação da cidade do Recife;
Tudo isso acontece em meio aos protestos Vidas Negras Importam;
Tudo isso acontece no dia em que se completaram cinco anos da sanção da lei que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil;
É muita coisa, muito símbolo.”
Texto por Joana Rozowykwiat (@joanagr) (@JoanaRozowyk)