Num domingo nublado alternando chuva e bafo, dezenas de “cidadãos de bens” cobertos de lama e vendados com gaze cruzam o centro da cidade de Uberlândia a passos muito, muito lentos. Passam por uma feira, uma praça, uma agência bancária, o “Palácio da Justiça” que leva o nome de um dos signatários do AI5, uma escola pública ocupada. O povo, entre curioso, desconfiado e intrigado, pergunta aos jornalistas que cobrem o ato: de que se trata? Cada um deve responder por si mesmo. No estado que teve um de seus mais importantes rios (junto com alguns distritos, 19 vidas humanas e inúmeras animais e vegetais) arrasados por uma enxurrada de lama tóxica há exatamente um ano, muitos associam a performance imediatamente ao crime ambiental da Samarco. A empresa pertencente à Vale, privatizada nos anos FHC, e à BHP, destruiu Bento Rodrigues e todos os ecossistemas ao longo do Rio Doce até o litoral capixaba com um vazamento de rejeitos de mineração que ainda não foi estancado. Assim como ninguém foi punido.
Mas a lama que cobre os corpos dos artistas, em sua maioria estudantes da Universidade Federal de Uberlândia, professores da UFU e ativistas locais, tem muitos outros significados possíveis. Pode ser a sujeira da política, da injustiça, da corrupção de corpos e almas. Pode ser o material de que todos somos feitos, mas muitos não se dão conta (ou não aceitam), cobrindo a carne com panos caros, gravatas, relógios, joias. Sob a argila, parecem todos iguais, como de fato somos. As vendas nos olhos não impedem de todo o olhar. Na verdade, servem mais para selecionar o que se quer ver e o que é conscientemente ignorado. Separam manchetes econômicas para os ricos da realidade das gentes nas ruas. Permitem reconhecer a polícia como protetora de seus bens sem enxergar o genocídios de pobres, pretos e periféricos. E mostram que a justiça se apresenta cega apenas para alguns incautos.
Nos gestos lentos, atos de uma religião que não religa o homem ao divino e aos outros. Uma comunhão apenas com aqueles considerados seus iguais. Há também o autoritarismo: a imposição do silêncio ao outro, a negação da ação, a acusação sem provas. Mãos erguidas em conjunto como quem grita Heil! Dedos e braços em riste representando falos com os quais se ameaça violar quem não concordar. E, ainda, o digitar de senhas para máquinas cuspidoras de dinheiro cuja procedência não interessa a ninguém. Ao final, numa atitude mais explícita: o rasgar da Constituição, da Lei de Diretrizes Orçamentárias, do Estatuto da Criança e do Adolescente… Afinal, de que servem se não “nos” servem? Pois, como no final da Revolução dos Bichos, de George Orwell, os porcos que tomaram o poder redefinem as leis. “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.
E nós, todos nós, onde estamos no meio de tudo isso? Os moradores de Uberlândia que acidentalmente estavam no caminho da performance talvez estejam agora se perguntando. É o que alguns de nós sinceramente esperamos. Mas também é possível que tenham apenas achado engraçado, uma boa chance para uma selfie diferente. Pode ser que suas vendas internas já separem o que os poderosos querem que vejam. Ou pior: sejam eles quem distribui as vendas. Nesse caso, as almas estão irremediavelmente enlameadas.
CEGOS é uma apresentação aberta que muda de lugar para lugar e conforme as circunstâncias de cada dia. Em Uberlândia, por exemplo, a providencial parada numa agência bancária aconteceu num momento em que a chuva engrossou e acabou tirando o Terminal Central de ônibus do roteiro original. Desenvolvida pelo Desvio Coletivo (https://www.facebook.com/DesvioColetivo/ ), uma rede de criação artística, que atua na zona de fronteira entre teatro, performance e intervenção urbana, na cidade do Triângulo Mineiro teve apoio para sua realização dos Comandos de Greve dos Docentes, dos Técnico-administrativos e discentes da UFU. Mais informações sobre a performance de 13/11/2016 podem ser acessadas em https://www.facebook.com/events/337713349941113/ e na página da Associação dos Docentes da UFU http://www.adufu.org.br/
Abaixo, a ficha técnica da performance geral e sua versão em Uberlândia:
Concepção: Marcelo Denny e Marcos Bulhões
Direção: Marcos Bulhões e Priscilla Toscano
Direção de Produção: Leandro Brasilio e Marie Auip (Sofá Amarelo | Produção e Arte)
Comunicação: Fernanda Perez e Viny Psoa
Coordenação Técnica: Rodrigo Severo
Assessoria Jurídica: Leandro Brasilio
Direção de vídeo: Viny Psoa
Designer: Le GeekCreative Studio
FICHA TÉCNICA CEGOS UBERLÂNDIA
Realização: Desvio EColetivo em parceria com o Comando Local de Greve de Docentes, Técnicos e Estudantes da Universidade Federal de Uberlândia.
Produção local: Comissão Cultura em Ação do Comando Local de Greve
Coordenação Técnica: Rodrigo Severo
Montagem: Igor Alexandre Martins
Comunicação: Fernanda Perez, Leandro Brasilio e Marie Auip, Laíza Coelho e Tom Menegaz
Performers: Participantes na cidade de Uberlândia
Parceria: Laboratório de Práticas Performativas da USP
Apoio: Grupo Berros e Ocupa Teatro
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