Um relato do desmonte da escola pública durante a Ditadura e da esperança nos jovens que tomaram posse dos rumos de seus destinos
Por Gastão Guedes, especial para os Jornalistas Livres
Em 1976, Gal. Geisel comandava o país! Naquele ano nós, alunos da 5ª série, percorríamos as salas de aula angariando votos para nosso grupo que pretendia que a diretoria, entre outras coisas, programasse mais excursões pela cidade. Pregávamos cartazes desenhados por nós mesmos, com o nome do nosso “partido”, pelas paredes do belíssimo prédio da escola, disputando espaço com dezenas de outros grupos que propunham coisas distintas das nossas… Discutíamos com alguns professores nossas propostas e tínhamos de visitar outras classes para dizer sobre elas aos outros alunos. Eram conteúdos pré-adolescentes, é bom lembrar, mas que não teria a menor importância: um corpo docente corajoso despejava exercícios de democracia, ainda que às escondidas, nos alunos do Grupo Escolar Barão de Souza Queiroz através do micro exercício do parlamento e do voto!
Ao deixar a Penha, meus pais colocaram-me na escola particular mais conhecida do bairro do Campo Belo. À época uma escola reconhecidamente “puxada”, termo usado para quantificar o nível de esforço que o aluno teria que ter para passar de ano. Escolas particulares já eram consideradas, nos anos 80, superiores na qualidade de ensino em comparação com as do Estado.
Por volta de 1982, minha segunda passagem pela escola pública, no mesmo bairro, foi escolhida por mim no intuito de terminar os dois anos colegiais restantes. Nem seria preciso dizer que já eram escolas destruídas, com uma quantidade enorme de equipamento quebrado e abandonado nos pátios, cozinha desativada, pintura velha, portas rachadas e sem trinco, quadra sem pintura… E professores cada vez menos capacitados para ministrar aulas com seus salários baixos e pouco estimulantes, embora ainda fossem pessoas bem formadas e com sonhos de carreira! Mas o diferencial aprendido por mim, no retorno à escola pública, é que eu voltava a um mundo real depois de ter experimentado conviver com garotos de classe média alta por três anos naquela escola particular do Campo Belo.
Amanda, Cauã e Vitoria na cozinha, cuidando das doações de alimentos e transformando-as em comida para os alunos do movimento
Nesse retorno ao ensino público, eu começava a me inteirar com alguns meninos que se interessavam por política, preocupados com o momento de redemocratização do país, que liam jornais e defendiam a independência do Brasil junto ao FMI entre tantas outras coisas que eu, até então, nunca tinha ouvido falar! Alguns vinham de ônibus pra escola, pois moravam mais à periferia da cidade; outros até trabalhavam…
Daqueles tempos até o presente, profundas e constantes transformações econômicas; uma revolução tecnológica brutal remodelando todo o comportamento social e uma recodificação sexual em curso que busca reequilibrar as condições de gênero… Não, não é pouca coisa! A velocidade de transformação de códigos e valores nessa passagem de séculos talvez não tenha similar na história humana!
Pintura de camisetas: feminismo e resistência
E são transformações que parecem evocar uma necessidade de sentido da vida que ainda não demos conta, gerado entre tudo que tem se modificado rapidamente, lançando-nos em dificuldades de adaptação natural do espírito versus tudo aquilo outro que, como um monólito, resiste a qualquer mudança ainda que pese no atual cenário das coisas líquidas.
Muito se tem escrito sobre a ocupação dos alunos da escola pública nesse final de ano de 2015. E de tudo que se lê, uma impressão fica: no fundo, não sabemos ao certo que experiência é essa e nem no que isso tudo vai nos levar! E foi isso que motivou minha terceira passagem pela escola pública nesse domingo, 6 de dezembro, na EE Professor Emygdio de Barros na região do Butantã. Uma ocasião especial, quando definitivamente parece haver um choque entre as demandas sociais de um país em ascensão, que angariou algumas conquistas sociais na última década, contra um governo local que exerce política de forma pouco afeita ao diálogo com seu eleitor.
Aluna Kathleen, sua mãe e primo, já promovendo a festa de natal com ceia e rojões. Luta até que o governo desista do fechamento de sua escola
De cima prá baixo implantam constantemente políticas com vistas a reduzir o Estado ao mínimo possível, transformando todas as relações em valores de mercado a serem resolvidas pelo próprio mercado conforme suas demandas de lucros… “A reorganização escolar do governo Alckmin é pura redução de custos”, criticam alguns; mas o secretário de educação de São Paulo, Herman Woorvald, afirma não ter na reorganização um objetivo financeiro, mas estrutural: “Eu tenho vergonha, enquanto Secretário de Estado da Educação, dos resultados (…) que o Estado de São Paulo apresenta. Não é possível que a sociedade se conforme com isso.” Porém, com essa afirmação, o próprio secretário comete um quase requintado suicídio político, já que essa educação vergonhosa está sob o comando do mesmo partido, do qual ele tem feito parte ultimamente, há 20 anos!
Pergunto a alguns alunos: “porque essa ocupação nunca aconteceu antes? Porque precisaram tomar “porrada” da polícia militar para virem dar conta que a escola pertence à comunidade?” Não obtive respostas politizadas e objetivas, não escondo. Mas numa conversa com dois professores que apoiam o movimento dos alunos, pudemos elucubrar a possibilidade de eles terem passado, em última instância, por um sentimento de perda de suas rotinas, seus amigos, e uma profunda vontade de manter e aprimorar algo de suas vidas que estão sendo negligenciadas, talvez nessa confusão moderna entre o que se modifica e o que se quer preservar.
E eu ainda perguntaria: “mas porque a escola?” Será que a escola, num súbito lufar de memória cívica veio remexer um DNA social, trazendo de volta a importância dessa instituição como símbolo de reunião de pessoas em torno de um bem comum, qual seja a educação? Educação que precisaria ser revalorizada no sentido de aprimoramento das possíveis linguagens dos alunos, ao invés desse desmonte paulatino abreviado numa reestruturação financeira… É, pode ser que a destituição da tão maltratada rede escolar espalhada pelos bairros, sob essa linha política do atual governo do estado de São Paulo, tenha provocado nos alunos essa memória genética da importância que é se desenvolver no âmbito da cidadania, tendo como referência a boa e velha sala de aula daquele velho e depredado colégio…!
É bom lembrar que na história de alguns países, escolas e universidades formaram as cidades ao seu redor, tornando-se até hoje centros de referência no mundo. E nesse nosso tempo de ausência de significados e coisas incertas, algo latente ainda representado pela escola pode ter reacendido nesse aluno que perdê-la seria, talvez, a última e grande coisa a perder…
Outra dúvida, que dividi com os adolescentes, foi: “vocês acham que conseguem permanecer ocupando as escolas até o ano que vem?” Resposta unânime: “até que o governo revogue por completo a reforma, já que até agora ele apenas adiou”. Acredito que a permanência dos alunos vai depender do quanto essas comunidades no entorno das escolas ocupadas irão participar e se comprometer com o movimento, já que até hoje nem mesmo a presença nas aulas tem, dos alunos, tanto compromisso.
Porém, em tempos de redes sociais, as informações conseguiram suplantar a grande mídia, de interesses monolíticos, fazendo um estrago na relação do governo Geraldo Alckmin com o eleitor, rebaixando para 28% seu índice de aprovação. Para quem pretende se lançar na disputa à presidência do país em 2018, foi a ação de governo mais desastrosa que ele poderia cometer; e será um trabalho hercúleo, se não impossível, desfazer-se das imagens de policiais militares em suas centenas de ações violentas, transbordando nas redes sociais, agora “salvas” por partidos de oposição que certamente as usarão nas próximas campanhas políticas. Ou seja, teremos campanhas de baixo nível por um tempo, ainda. Dessa vez, embora por um caminho torto, talvez para o bem dos alunos das escolas públicas.
Portanto, a ocupação que vi, em particular na EE Professor Emygdio de Barros, não tem caráter de guerrilha, tampouco de teimosia juvenil, muito menos de força social contra uma fragilidade institucional do governo. Tem outra feição, outra característica, outros posicionamentos que não estavam até então visíveis na nossa sociedade. É aquilo que só a história nos fará entender…
Banda de punk rock de alunos da EE Emygdio de Barros
Nada do que dissermos por hora conseguirá construir uma análise segura e isenta. O que está se desenvolvendo é ainda uma semente em forma de manifestação, contrária à velha e, mais uma vez, monolítica forma de se fazer política, autocrática e sem visão social alguma. A despeito de tantas conquistas sociais, sejam econômicas ou cidadãs, essa reestruturação parece visar interesses de grupos, apesar de não caber aqui discutir a questão do estado mínimo do qual se vale toda a política desses específicos partidos, um dos quais o estado de São Paulo está submetido por tanto tempo! Ademais, tem sido notável como na profusão de debates via redes sociais, ainda que pueris e na maioria despolitizadas, encontra-se o completo adverso das investidas militares nas suas ações de choque com gás pimenta e cassetetes, deliberadas pelo governo Alckmin que se põe sinistro diante da sociedade brasileira, que já vem a 30 anos modernizando-se no pleno exercício da democracia. As decisões desse governo são implantadas na inexistência dos debates com a sociedade, através de uma Assembléia Legislativa silenciosa e sem representatividade com a população, tomadas por já ultrapassadas ideias neoliberais que encontram eco apenas em lugares onde, de fato, não existe o debate necessário para o consenso das vantagens e desvantagens na transformação de bens públicos em interesses privados.
Grupo de Carlinhos Antunes, que propõe concertos mensais doados por artistas e que e uma obrigação de todos a participação pela defesa da escola
É assim que se compõem, então, uma elite que se fecha numa cúpula de poder e, às cegas, tomam decisões particulares bem articuladas com o interesse econômico, asseguradas pela grande mídia que as protegerão de insatisfeitos que se proponham a debater outros caminhos possíveis… Mas, parece que agora, sem se ater a isso tudo, alunos secundaristas e do ensino fundamental de escolas de bairros de São Paulo resolveram que ter escolas fechadas, por mais que estas também não lhes assegure um futuro, na forma em que estão mantidas e preservadas, é impedir-lhes ainda mais de algo que já não está tão disponível há tempos!
Nessa minha terceira passagem pela escola pública, venho novamente aprender algo: a instituição “escola”, lugar público de ensino e aprendizagem mútua, parece ser um símbolo monolítico dos povos, e o termo aqui torna-se elogioso! Porque não se pode transformá-la em lugares ermos com o intuito de destituí-la do interesse social. O conhecimento, assim como a fé, têm seus templos e neles se reúnem toda a gente para a construção de cidadania, troca de ideias, reconhecimento espiritual e confraternização de toda sorte de sentimentos. E, junte-se a isso, é impossível tentar calar movimentos de pessoas carentes de dignidades, como é o povo brasileiro ao longo de sua história.
Inusitada visita de Supla, autografando a agenda da aluna do movimento, que veio como mero cidadão, segundo suas próprias palavras
Portanto, esquecido nas periferias da educação, o ensino público paulista vem reascender a demanda primordial das comunidades na sua formação cidadã: o reconhecimento de si mesmos como protagonistas da construção de suas próprias vidas. E, pasmemos, um grupo de jovens adolescentes, já vitoriosos diante de resquícios autoritários recompõem essa luta, embora nunca esquecida mas meio abandonada, de preservar o caráter público da instituição de ensino, mesmo numa era sem qualquer futuro prometido e repleto de certezas líquidas. Talvez, simplesmente porque quando tudo se torna muito líquido, algo iminente se faz necessário para represar todo esse conteúdo… Quiçá, descobriremos juntos que, nesse específico caso, essa represa poderá vir a se reconstituir no formato de uma boa e velha escola pública!