A fina flor do elenco em cena, no Teatro Oficina, em montagem de Roda Viva, traz uma sensação curiosa de alma lavada quando finda o espetáculo. É noite de chuva na metrópole e os atores exalam um aroma da legítima balbúrdia, uma poética de tons, dicções e enredo do caos. A origem, apogeu e decadência do mito.
As portas de ferro do teatro fecham-se entre os andaimes do bunker da razão, uma ópera de Villa-Lobos inicia o espetáculo entre cenas trágicas do assassinato da mãe terra, projetadas nas paredes encantadas de Lina Bo Bardi, um grito da nação que exaspera.
Zé Celso ordena:
– Levantem, o anjo irá descer!
E desce dos céus, negro como a noite, tocando sua trombeta, dando fluxo aos fatos, uma digestão de público , atores inquietos e músicos viscerais, uma epopeia da perfídia do poder. É uma oficina de seres, o confronto e acordos entre o anjo e o chifrudo, o astro presidente da nação que ilude a todos, e sucumbi ao ter o fígado devorado.
Os artifícios de Deus e o diabo. A ascensão e queda de Benedito Silva, lampião, convertido num astro pop, Ben Silver, após negociar sua alma com o capitalismo.
Damares, a tresloucada, Tereza Cristina, a menina veneno, e a insana Ysani Kalapalo, nenhuma mulher nesse desgoverno cênico escapa incólume. A televisão, o WhatsApp, as fake news, o caráter; tudo corrompe o mito.
As máscaras caem. O tirano e seu ministério estão condenados ao fracasso, há insurreição, o rei está nu. O povo tem fome de fígado, repartido cru, em forte e silenciosa cena, ao fim do espetáculo.
José Celso Martinez Corrêa e o Teatro Oficina Uzyna Uzona promovem um êxtase das emoções inconformadas, em tempos de barbáries contra a cultura e meio ambiente.
Se distribuem flores ao final do espetáculo e conduzem o público à saída, convidando e acolhendo todos a uma retirada e recomeço, é resistência o rumo que indicam.
Oficina, tecelagem, borracharia, olaria de ideias, usina. A árvore vistosa, a cisalpina plantada por Lina Bo, visão que invade o teatro, a grande subversão indica.
*imagens por Helio Carlos de Mello©