A reforma da previdência some do noticiário e, quando menos se espera, lá está ela, impávida, nas mãos mais inesperadas. Mas creio que é pequena a chance de você ter ouvido falar em superávit da previdência. Nos meios de comunicação mais tradicionais você, certamente, nunca ouviu. Para tudo há uma primeira vez.
A professora Denise Lobato Gentil, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, defendeu em 2006 a tese: A Política Fiscal e a Falsa Crise da Seguridade Social Brasileira. Podemos imaginar o que ela queria dizer com falsa crise, não é mesmo? Em uma entrevista para a revista do Sindifisco, em 2010, ela sentencia: “o déficit da Previdência é um falso argumento. É uma construção ideológica, uma arma de luta política dos conservadores.”
Em minha dissertação de mestrado: Economia política no Brasil: o primeiro governo Lula, de 2009, pontuo que, embora os economistas liberais-conservadores não se cansem de apontar para “o gigantesco e descontrolado déficit da previdência”, nem todos concordam. Continuo: “ao observar mais atentamente a Constituição de 1988, tanto os keynesianos, como os socialistas, concluem que foram lá criadas as fontes de financiamento que hoje não são consideradas para se alardear o pretenso déficit”.
No Fórum Social Mundial, ocorrido em janeiro passado, em Porto Alegre, o professor Emerson Lemes, professor de Direito Previdenciário e Trabalhista, desenvolveu uma apresentação chamada O Financiamento da Seguridade Social e seu Alegado Déficit e afirmou: “a convite do Sindicato dos Aposentados, falei sobre a inexistência de déficit na Previdência – e mais que isso, demonstrei o superávit da Seguridade Social”.
Estaríamos a professora Denise, o professor Emerson e eu, fora de nossas faculdades mentais? Qual seria a explicação desses economistas para afirmar que há superávit, e não déficit, na Previdência Social?
Vamos isolar, primeiro, empregados do setor privado e suas empresas. O total das receitas da Previdência Social desse setor é a soma das contribuições do conjunto dos empregados das empresas privadas mais a contribuição das empresas. Do lado das despesas, temos as pensões. Ninguém discute que o resultado é positivo: sobram recursos. Esse é o chamado Regime Próprio da Previdência Social – RPPS, que é sabidamente superavitário. Até aqui não há discussão.
Agora, isolemos os servidores públicos dos Municípios, Estados e União. O total de receitas é somente a soma das contribuições dos trabalhadores. Não há contribuições do “empregador” público. O resultado não poderia ser diferente: déficit. O Regime Próprio da Previdência Social – RPPS, que congrega os servidores públicos é deficitário porque não há contribuições da União, Estados e Municípios para ele.
A soma dos dois – RGPS e RPPS – será deficitária. E é esse déficit que é alardeado o tempo todo.
Ocorre que a Constituição de 1988 previu a solução para esse problema: uniu a Previdência Social com a Saúde e a Assistência Social, chamou esse conjunto de Seguridade Social. Estabeleceu, para financiar o conjunto, a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – Cofins – , a Contribuição sobre o Lucro Líquido – CSLL, o PIS-PASEP e parte da receita das loterias.
Vamos então somar todas as receitas a essas novas contribuições determinada na Constituição de 1988? Bem, temos de agregar as contribuições de todos os empregados (de empresas privadas e servidores públicos) e das empresas privadas. A contribuição do “empregador” governo se dará pela Cofins, CSLL, PIS-PASEP e loterias. E, como num passe de mágica, a conta fica superavitária.
Veja a tabela mostrada pelo professor Emerson Lemes em sua apresentação no Fórum Social Mundial em janeiro de 2016.
Vamos olhar para 2014? As contribuições de empregados dos setores público e privado, a contribuição das empresas privadas, a Confins, a CSLL, o PIS-PASEP e parte das loterias somaram R$ 686 bilhões. As despesas com a saúde, assistência social e previdência social somaram R$ 632 bilhões. Isso quer dizer que a seguridade social foi superavitária em R$ 53 bilhões no ano de 2014. Assim como nos outros anos.
Mas como fazer se sobra dinheiro e falta para outras despesas? Bem, em 1994 foi tirada da cartola a Desvinculação das Receitas da União – DRU, que permitia que a arrecadação destinada à seguridade social fosse “desvinculada”, transferida para cobrir outros gastos.. Essa prática vem acontecendo há mais de 20 anos. E como disse a professora Denise: “Se não sobrassem recursos dessas fontes, ninguém iria propor DRU, certo? Não se tira de onde há escassez”.
Talvez, agora, você esteja se perguntando: qual seria o objetivo de fazer todo mundo acreditar que a Previdência tem déficit? Minha impressão é que, disseminar a crença de que a Previdência representa uma despesa insustentável para o Estado, é parte da estratégia, que vem desde a década de 1970, de diminuir os já parcos direitos trabalhistas. É incrível que seja o PT e a presidenta Dilma a desferir um arrojado ataque à previdência… fazendo corar o neoliberal Fernando Henrique Cardoso.
Para ver a íntegra dos documentos citados:
1 Entrevista de Denise Lobato Gentil para a edição no. 57 da Tributação em Revista do Sindifisco
https://www.sindifisconacional.org.br/
2 Tese de doutorado de Denise Lobato Gentil
3 Apresentação de Emerson Lemes no Fórum Social Mundial
http://issuu.com/emersonlemes/docs/fsm15.pptx?e=3391662/32936125
4 Dissertação de mestrado de César Locatelli
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=140525