O rio nervoso do trânsito corre na Paulista, avenida devassada. É trágico, é fascinante ver o asfalto cheio de cantos. Em sua área mais nobre e rica, o museu de arte entre hipocrisias e vicissitudes da cidade.
Olho o horizonte no vale da avenida 9 de Julho e na muralha de prédios vejo solitário homem desenhando a cidade, pintando graças. Penso rapidamente que o pintor de paredes não crê em desesperança, tendo por ofício encantar a pedra.
Atrás de mim um museu a pairar suspenso sobre muitos indígenas e suas etnias. Protestam sobre os paralelepípedos de Lina Bo. Há um cheiro forte de fumo no ar e tantas crianças correm em grupo. As mulheres cantam enquanto os homens, em intenso movimento, fazem uma dança que também é reza. Tudo é uma mais valia às avessas.
Não sei se é charme, nobreza, delicadeza ou alegoria que atrai tantas objetivas e as selfies desse momento.
Índios param a avenida e uma multidão de fotógrafos os apoia em firme barreira contra o trânsito. Atrás deles centenas de jovens e uma gente bonita de meia idade, idosos de barbas e cabelos longos e brancos. Indigenistas, esotéricos, poetas, artistas, gente letrada; uma razão que rompe o desejo genocida desse governo. Simpatizantes da causa indígena, tão viva.
A multidão não é uma flor a romper o asfalto, a iludir a polícia. É protesto de índio que canta e dança quando grita, rompe o tédio, o nojo e o ódio, nesses dias de lama. Carlos Drummond de Andrade perguntaria agora, crimes da terra, como perdoá-los?
Os indígenas pedem a demarcação já, imediata, de seus territórios e negam qualquer gota de sangue a mais no genocídio secular de sua gente. Surpreendo-me que, em avenida globalizada e miscigenada, ainda reivindiquem direitos tão óbvios, tradicionais, originários.
A metrópole que reverencia os indígenas na via interditada é a mesma que afaga escritórios do agronegócio, mineradoras, bancos vorazes, a mão que apedreja, nossa quimera.
Nenhuma gota de sangue a mais, grita o índio na avenida.
*imagens por Helio Carlos Mello©