O CANTO DO JAÓ OU O ESCONDIDO EM NÓS

Via um velho índio à margem do rio. Via, em seu olhar vago, o rio. Pela objetiva identifiquei uma tristeza de quem pensa no que vai se acabar.

Eu o desconhecia, Toboy era seu nome. Paramos ao aceno dele, em leito distante. Sorriso profundo o homem dizia em línguas, em gestos de acolhimento e recepção. Orelhas grandes, de pau leve e liso, em discos pendurados no lóbulo.

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Mais profunda é a pele da terra, sua mata que recobre a vergonha dos homens. A etnofobia que antecede esses leitos percorre todas as cidades, de Mato Grosso e Amazônia infinda, fica evidente nas conversas das acanhadas ruas e vilas envolventes, intrincado território.

Difícil à população local e ao desconhecimento nacional entender as terras indígenas quando delas procedem riquezas, como um dos maiores diamantes do mundo, encontrado aqui em Juína e de valor incalculável, exposto na Bélgica.

Daqui onde vejo a cena é o volumoso, encantado e perigoso rio Juruena, que conduz a muitos contos e causos em suas águas valentes misturadas às pedras, corredeiras que embalam em canto de água limpa possível morte ou vida. Em seu curso tudo se resume à pedra no meio do caminho, e são muitas,  uma questão de opinião a quem conduz a embarcação. Terras, matas e águas de índios canoeiros, os Rikbaktsa, povo, entre tantas etnias que  precedem em muito o Estado brasileiro, terras de posse imemorial.

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Nosso destino foi a Terra Indígena do Escondido e o Salto Augusto, local mítico para os índios Rikbaktsa, no Parque Nacional do  Juruena, em trabalho de  reconhecimento do território tradicional proposto pelo antropólogo Adelino de Lucena.

Seguimos nós e os canoeiros hábeis, como borboletas que não se confundem no vento que as levam em objetivo. Setecentos quilômetros em águas que fogem ao encontro do Tapajós navegamos na ida e volta do território.

Aqui, em sertões que insistem, artistas e intelectuais estrangeiros deram a vida, como George Heinrich von Langsdorff , ou o inventor e fotógrafo Hércule Florence, que revelou aventuras seculares.

Aqui primeiro foi a gripe e o sarampo trazido pelos seringueiros e seus pecados a dizimar, depois os jesuítas, a separar e confinar.

Tudo era uma dúvida da dignidade da tradicional cultura e humanidade dos proprietários guerreiros de antropofagia ritualística. O índio comia porque tinha raiva e tinha fome,  e tinha fome porque tinha raiva entre as guerras étnicas, como a humanidade no mundo que avançava na Amazônia no século XIX e XX. A antropofagia se fez inversamente pela bíblia e mercado. Muitos e muitos morreram, foram devorados por rápidas mudanças em seus hábitos e estilos, como a proibição de falar a própria língua e o sequestro, recolhimento, confinamento, tortura e separação de gêneros de todas as crianças menores de seus pais e família, pelos jesuítas.

As grandes violações dos direitos humanos que sofreram os indígenas em todo processo histórico, a política integracionista e assimilacionista. Apesar das ofensivas, os povos indígenas nunca representaram nenhum tipo de problema à terra e ao ambiente, ao contrário, em muitos momentos colaboraram para a conquista, integração e fiscalização do território da Nação.

Ovo de tracajá, quelônio de carne doce e gema gelatinosa, se esconde em areia fina nas praias leves das manhãs quando levantamos acampamento com lua cheia. Iguaria e alimento rico aos índios indica o início da primavera e promessa de fartura.

A  curiosidade da dor que não cala em coceiras de pium, mosquito pequeno grande defensor da floresta que enlouquece os homens, nem a guerra da cobiça que sempre ameaça a terra da amazônia em suas riquezas recônditas  nos desanimam, mas me inspiram em cada corredeira ou geografia inédita. Araras se algazarram no céu e papagaios, tucanos, quero-queros e biguás causam hora do rush no ar. Nossos barcos enfrentam e avançam, é preciso chegar.

O rio em sua força cede ao salto que queda, água bruta e poderosa a despertar respeito e devoção de todos, mesmo aos mais incrédulos, que Deus tem bom gosto. Beleza de titãs o Salto Augusto define o trânsito e isola o percurso, indicando que à frente é sagrada a vastidão e que a outros se guarda ao futuro. Surpreendente é a sensação de pisar na rocha dura da crosta, polida pela língua da água nas cachoeiras que amedrontam e resignam .

 

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Dos Rikbaktsa sei que são povo e sabem das águas e entendem o canto do Jaó (ouça abaixo) que vigia. Pinturas rupestres centenárias enfeitam grutas e comprovam o lar invadido por muitos, mas que diz não ao mundo contemporâneo, em vanguarda de gestos tão arcaicos como o círculo da persistência e tolerância da comunhão estampado na rocha,  roda que nos levou a navegar no sertão de águas perdidas e suas funções.

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Nos chora de madrugada o Urutau, ave invisível, e o Curiango, ave noturna que pia  “amanhã eu vou”, entre poucos velhos desse mundo que sobrevivem e nos contam em roda de fogo o que lembram do tempo remoto, lembranças tristes, causos e fatos.

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Se picham morte aos índios nos muros de Juína, afirmo que vivem, e muito mais se faz em vida. Juruena indolente nos afaga e mostra sua saga.

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Tocante! Assombrosamente lindo! Misto de tristeza com uma emoção de fazer verter um rio de lágrimas dos olhos. Cada dia mais enchergo “nessas gentes” a mão que poderá nos salvar de nós mesmos, da nossa mania de ser mesquinha e gananciosa. Gratidão! Gratidão! Gratidão!

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