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crônica

O berço esplêndido e o ponto cego

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Aldeia Paranapuã, em São Vicente, no litoral de São Paulo.

As três questões conjugam-se enfim: a primeira diz respeito ao relacionamento do direito com as ciências sociais; a segunda, à relação entre o direito internacional e o nacional; a terceira, enfim, à justiça de transição e às continuidades da ditadura.

A ignorância antropológica, o ilícito internacional e a injustiça de transição são aspectos do mesmo colapso ético do Judiciário brasileiro ao tratar das questões indígenas, alerta Pádua Fernandes, membro do GT Justiça de Transição do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais e da Rede Índio é Nós.

Na ditadura militar, a espoliação das terras indígenas ocorreu com a prática de remoções forçadas e genocídio. Com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, o Estado assumiu em 2014 a prática dessas graves violações de direitos humanos, o que, segundo os parâmetros internacionais de justiça de transição, deveria levar à reparação das vítimas com a demarcação, a desintrusão e recuperação ambiental de suas terras.

http://www.academia.edu/37729190/Colapso_%C3%A9tico_do_Judici%C3%A1rio_brasileiro_e_os_povos_ind%C3%ADgenas

O novo mundo trouxe um choque étnico cultural entre o mundo ocidental e o ameríndio. Em todas as Américas as armas de fogo impuseram-se e, tacapes, bordunas, flechas, machadinhas de pedra ou lanças, nada puderam fazer diante da violência dos conquistadores. A religião e o mercado fizeram o resto.

Arquivos históricos das etnias da América do Norte.

No Norte eram os índios Sioux, Navajo, Cheynne, Comanche ou Blackfeet. Na América Central, complexas culturas com avançadas técnicas, declinaram. Na América do Sul, no Brasil, ainda revelam-se etnias isoladas, povos de contato recente. Corre sangue entre a cobiça e o apetite do ocidente não cessa.

 

Eduardo Viveiros de Castro observa que, em sentido particular, (uma) sociedade é uma designação aplicável a um grupo ou coletivo humano dotado de combinação mais ou menos densa de algumas das seguintes propriedades: territorialidade; recrutamento principalmente por reprodução sexual de seus membros; organização institucional relativamente auto-suficiente e capaz de persistir para além do período de vida de um indivíduo; distintividade cultural.

Indígena Huni Kuin, Kaxinawá, persiste entre as floresta do Acre.

Ninguém saiu campeão nesse jogo dos séculos, tão pouco podemos comemorar prosperidade na produtividade alarmante do agronegócio e na mineração de jazidas. Temos sim terrenos contaminados, rios estéreis e o anúncio de desertos verdes de soja entre a floresta dizimada. Encurralam povos que fogem ao contato, desarticulam a assistência diferenciada na saúde, desfiguram a Fundação Nacional do Índio, impõem novas condutas.

 

Há uma ebulição indígena em 2019, que apenas na Constituição Federal de 1988 tiveram reconhecidos os direitos básicos dos povos originários. Jovens lideranças se apresentam com brilhantismo nos argumentos, outros tantos se fizeram candidatos no último pleito. Não arrefecem ou sucumbem aos despropósitos dos governos e seus partidos. As novas gerações indígenas negam conceder qualquer gota de sangue a mais para nosso modelo de desenvolvimento. Produzem sim documentários próprios  e se organizam em associações autônomas do comando dos órgãos oficiais.

O jovem e brilhante líder David Karai Popygua, entre índios Guarani M’byá, que há séculos resistem na metrópole de São Paulo.

Há um ponto cego na visão dos incautos mandatários, ministros e seus vassalos. O Supremo Tribunal Federal pede explicações ao presidente da república sobre as novas invenções administrativas. Há uma criatividade negativa na resolução de seculares questões indígenas, evidencia-se.

Bom conselho cantam os índios na via, quem não pode com a formiga, não assanha o formigueiro.

 

Indígenas Karajá e Javaé em competições de força e resistência.

 

https://www.facebook.com/jornalistaslivres/videos/575188726295833/

 

*Ilustração de capa por Jean-Baptiste Debret, fotografias por Helio Carlos Mello©

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crônica

Provocação acerca do egoísmo

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Após feridos e mortos, e em dia de eleição do presidente americano, estamos próximos ao final do ano de 2020. Adquiri novos livros, reviro outros antigos, sei que de tudo fica um pouco, tudo vira história. 

Na pandemia encontrei desenhos belíssimos de Noemia Mourão, artista plástica e esposa de Di Cavalcanti. Mistura-se, enlaça papéis, pensamentos atuais sobre desenhos antigos.

Recorte no texto de Ailton Krenak e desenho de Noemia Mourão* 

  “Outro dia fiz um comentário público de que a ideia de sustentabilidade era uma vaidade pessoal, e isso irritou muitas pessoas. Disseram que eu estava fazendo uma afirmação que desorganiza uma série de iniciativas que tinham como propósito educar as pessoas sobre o gasto excessivo de tudo. Eu concordo que precisamos nos educar sobre isso, mas não é inventando o mito da sustentabilidade que nós vamos avançar. Vamos apenas enganar, mais uma vez, quando quando inventamos as religiões. Tem gente que se sente muito confortável se contorcendo no ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto morto.

 Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma compreensão sobre a vida na Terra. Se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é herdeiro disso, não precisa resgatá-la, mas se você passou por essa experiência urbana intensa, de virar um consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior. Por isso acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que, se nós economizarmos água, ou só comermos orgânico e andarmos de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que estamos comendo o mundo – isso é uma mentira bem embalada.

 A própria ideia de certificação, dos teste que são feitos com materiais que consumimos, desde a embalagem até o conteúdo, deveria ser posta em questão antes de a gente abrir a boca para dizer que existe qualquer coisa sustentável neste mundo de mercadoria e consumo. Estamos transformando oceanos em depósitos de lixo impossíveis de tratar, mas vocês, certamente, vão escutar um bioquímico  ou um engenheiro espertalhão dizendo que tem uma startup que que vai jogar um negócio na água, derreter o plástico e resolver tudo. Essa pilantragem orienta, inclusive, a escolha de jovens que vão fazer especialização na Alemanha, na Inglaterra, ou em qualquer lugar,e voltam ainda mais convencidos do erro. Voltam, assim, transbordantes de competência para persuadir os outros de que comer o mundo é uma ótima ideia.

 Enquanto as bases materiais da nossa vida cotidiana estão funcionando, operantes, a gente não se pergunta de onde vem as coisas que consumimos. Na maioria de tempo, as pessoas mal respiram ou têm consciência do que põem na boca para comer. Apenas quando há um desastre, os indivíduos, desplugados das fontes de suprimentos, começam a sofrer e a se questionar. Quem sobrevive a uma grande catástrofe costuma pensar em mudar de vida porque teve uma breve experiência do que é, de fato, estar vivo. Existem muitos povos vivendo situação de perdas, de catástrofe, de guerra. Ouvir sobre como essas pessoas agem para sair de um trauma profundo, olhar ao redor de si e recomeçar sua jornada nisso que chamamos “seguir vivendo”, pode ser instrutivo, mas não substitui a experiência.

 Estou há dois anos vivendo na margem esquerda de um rio junto com outras famílias do meu povo que, do ponto de vista prático, tinham que ter sido removidas daqui, como o que aconteceu com o pessoal de Brumadinho, de Bento Rodrigues e outros lugares. Os Krenak não aceitaram ser retirados, quisemos ficar no local do flagelo. “Ah, mas vocês não tem água!” E daí? “Ah, mas vocês podem morrer aí!” E daí? Sabemos que esse lugar foi profundamente afetado, virou um abismo, mas estamos dentro dele e não vamo sair. É uma questão que incomoda, mas é preciso estar nessa condição para poder produzir uma resposta em plena consciência. Consciência do corpo, da mente, consciência de ser o que se é e escolher ir além da experiência da sobrevivência.”

in A vida não é útil – Companhia das Letras

*  Ailton Krenak, líder indígena, pensador, ambientalista e escritor,66 anos, escolhido intelectual do ano, ganhador do prêmio Juca Pato, premiação realizada pela União Brasileira de Escritores, que reconhece autores que contribuem para o desenvolvimento da democracia brasileira.

 *Noemia Mourão(1912/1992), pintora, cenógrafa e desenhista. Estudou e casou-se com Di Cavalcanti.

*imagens por Helio Carlos Mello

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Boi bombeiro, boi de piranha na terceira margem

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Baixo Xingu, Kawaiweté

Cantou o poeta Gilberto Gil, certa feita, que sentir é questão de pele e amor é movimento. Sempre, aqui e agora, estanca-se amor.

coração e pele de uma gente de origem

A pele da terra é sua floresta, sua caatinga ou cerrado, mangue, restinga. Nada disso sabem no ringue, imbecis apostadores. Como tu és ou não, eu já não santo ou saberei. Sei de mim, filho da terra, Terra, como ti.

Querem fazer do boi um ser que combate o fogo. Tadinho do boi, na Índia ser tão respeitado, as vacas da maternidade, tolerância, mansidão, sustento do humano. 

Aqui, profana vaca muge heresias. Novos ventos, leitos banais na ocupação de nossa equação? Estranha aritmética no fogo da razão.

Baixo Xingu, Kawaiweté
Crianças Kawaiweté, em
feliz pedagógica canoa e exercício de equilíbrio, prumo e rumo.

Resta-nos apenas a terceira margem do rio, penso como Guimarães Rosa, mandar fazer uma canoa. Aprendi que coisa séria em canoa é o remo, seu rumo.

Sem fim seguem absurdas afirmações da função dos animais. Atribuem qualidades ao gado de corte. De fato é o boi nosso churrasco, mas fogo não é seu apreço.

Preço da carne são outros 500. Índio pensa no desequilíbrio da água e seu brilho.

Aldeia Capivara
À margem do Xingu, na pesca diária da vida e educação indígena.

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crônica

Raoni, da paz de origem, do guerreiro à ciência da vida

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Fico pensando na paz, ausência de excitação, estado de calma. Não o Buda e seu prêmio de afastamento do mal e a eliminação dos demônios, mas o largar as armas, entender a palavra. É prêmio da paz a serenidade? Creio que sim, tal lavar a roupa da noite à beira de rio, tão puro, na alvorada de cada dia.

Alto Xingu
Alvorada entre os povos tradicionais e seus asseios e gratidão, ciência de quem sabe.

Quando nasci havia um pedido de paz, recordo bem nas igrejas da época. Vivi dia assim de paz apenas entre indígenas, homens fortes de luta, luto e senha. Há uma paz entre grandes guerreiros, por mais que ameacem. Descobrimos quando velhos que as armas apenas entristecem, vingam, atiçam a sanha.

Cacique Raoni em sua juventude
Raoni e sua juventude

https://www.facebook.com/watch/live/?v=251647662554241&ref=watch_permalink

Ropni, o cacique Raoni, o mestre das palavras e seus calibres no alvo de nosso peito, representa 5 séculos do brado dos povos nativos daqui, de um planeta Terra. Raoni sempre disse aos kuben, nós mesmos, os homens brancos, que os espíritos lhe dizem sobre a destruição das florestas e suas consequências.

A paz do cacique é a saúde da Terra. Sempre voltamos ao começo na esperança da paz.

live

http://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html

*imagens por helio carlos mello

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