“Nosso Natal não é de luzes, não tem cor. Será cinza, em meio às cinzas”

Foto: Gibran Mendes

Centenas de casas foram destruídas por incêndio, no mesmo local onde um policial foi morto. Moradores culpam a PM, enquanto corporação atribui o incêndio ao “crime organizado”

Esse clássico do RAP nacional retrata a situação de milhares de pessoas que moram em periferias, nas favelas, que lutam por moradia em um país marcado pela desigualdade e onde há tanta gente sem casa e tanta casa sem gente. Se assemelha a muitos relatos e depoimentos que colhemos neste sábado (8), na Vila Corbélia, Cidade Industrial de Curitiba (CIC), em meio aos escombros do que já foram moradias populares do complexo de quatro ocupações na região. Comunidades que entre a madrugada de quinta-feira (6) e a madrugada do sábado (8) passaram momentos de tensão e terror.Um barraco equilibrados em barranco, com cômodos mal acabados, porém, um lar, um bem, um refúgio. Essa é uma descrição de uma moradia exposta na música “Homem na Estrada”, uma das maiores composições do grupo Racionais MCs. A letra segue com a chegada da noite e um clima estranho no ar, onde sem desconfiar de nada, o trabalhador vai dormir tranquilamente. De repente ele desperta, pressentindo o mal, com cachorros latindo, ele acorda ouvindo barulhos de carros, passos no quintal.

Em uma dessas ocupações, a 29 de Março, um incêndio na noite de sexta-feira (7)  destruiu centenas de lares. Segundo o relato dos moradores da comunidade, o incêndio criminoso foi provocado por PMs em represália a morte do policial Erick Nório, assassinado na madrugada de sexta-feira (7) ao ser atraído para uma emboscada na entrada de uma das ocupações ao atender uma ocorrência de “perturbação de sossego”.

Antes do incêndio, segundo integrantes do Movimento Popular de Moradia (MPM), policiais militares estiveram durante a madrugada e ao longo do dia realizando abordagens na comunidade, entrando em casas sem mandado, revirando barracos em ações truculentas. Conforme os moradores, houve um cerco à comunidade durante toda a sexta-feira e até mesmo relatos sobre uma execução sumária.

Foto: Gibran Mendes

 

“Foi uma barbaridade o que aconteceu aqui, passei dia e noite trabalhando, pois trabalho como cuidadora e fiz plantão na madrugada. Quando foi meio dia meu filho me ligou gritando, desesperado, dizendo que a polícia estava destruindo tudo. Chegamos em casa tava tudo quebrado, parede, porta, tudo no chão”, diz uma moradora que terá o nome preservado. Ela reside na ocupação Nova Primavera, que fica ao lado da ocupação 29 de Março. Sua casa não esteve entre as atingidas pelo incêndio.

Há cinco anos na ocupação, a trabalhadora diz que nunca viveu momentos de tanto terror. “Dá muito medo, meu filho nem está aqui hoje [sábado]. Deixei ele desde ontem no meu trabalho. Meu patrão falou: trás eles aqui, deixa ele aqui. Muita gente apanhou, pessoas gritando por socorro, um cenário de desespero e eles [policiais] falando: sua casa foi arrebentada, mas nós perdemos um dos nossos”, disse a moradora, destacando que “sente pela família do policial assassinado, mas que inocentes não podem pagar por um crime que não cometeram”.

“QUE FOSSEM ATRÁS DO CULPADO, NÃO DA GENTE QUE NÃO TEM NADA A VER. NOS CHAMARAM DE VAGABUNDAS, DERAM TAPA NA CARA. QUERENDO QUE A GENTE FALASSE QUEM MATOU O POLICIAL. A GENTE MORA AQUI, SÃO QUATRO OCUPAÇÕES, NÃO CONHECEMOS TODO MUNDO QUE MORA AQUI”, ACRESCENTA.

O trabalhador Juarez Francisco Ferreira não teve tanta “sorte”. O senhor que completou 60 anos no último dia 3 ficou somente com a roupa do corpo. “Vieram me acordar quando o fogo já chegando na minha casa. Não teve tempo de nada, de pegar nada. A vizinha veio me acordar, só vi aquele clarão de luz do fogo por cima das casas. Nessa hora não tem como juntar nada, só sair vazado. Se não fosse a mulher vir me chamar eu tinha ido também”, disse o homem em meio a escombros que anteriormente era seu refúgio. “Ganho pouco, mas ainda aguento trabalhar, agora é reconstruir né”, lamenta.

O montador de estande Sergio Leandro, que mora há quatro anos na ocupação Nova Primavera, ajudava os vizinhos que perderam tudo. Seu barraco fica há poucos metros dos demais que foram consumidos pelas chamas. “Minha casa fica duas casas pra baixo. Na hora só vimos o clarão e como estava um vento forte, foi tudo consumido muito rápido”. Esperançoso, ele já fala do recomeço à comunidade. “Se a gente começou do zero na terra não é porque está cheio de cinza que a gente não pode se reconstruir de novo. Limpar e lutar de novo, nem que seja de novo embaixo da lona como muitos aqui começaram”.

Sergio, que está na fila da Companhia de Habitação de Curitiba (Cohab), comenta que sobre a situação das pessoas que estão nas ocupações. “Todo mundo que está aqui é porque precisa, não consegue pagar aluguel”.

O trabalhador aproveitou para fazer uma cobrança e uma crítica à Prefeitura de Curitiba:

“A PREFEITURA PODERIA SE ESFORÇAR PARA REGULARIZAR ISSO AQUI. SE GASTA MILHÕES NO NATAL DE LUZ, TODO COLORIDO NO CENTRO DA CIDADE. MAS NOSSO NATAL NÃO TEM COR, SERÁ CINZA, EM MEIO AS CINZAS”.

Buscamos mais relatos, mas o temor imperava. Aqueles que prestavam depoimentos, pediam para resguardar a identidade. Entre esses depoimentos informações que policiais teriam impedido bombeiros de chegar até o local do incêndio antes que ele se alastrasse para todos os barracos da ocupação 29 de Março. “O pessoal que mora ali na entrada falou que os bombeiros estavam na trincheira e não podiam subir pra cá. Se não foi eles [policiais] que meteram fogo, porque não deixaram os bombeiros chegar aqui? Que morador aqui que iria meter fogo na própria casa por causa de um bandido?”, questionou um pai ao lado de seus dois filhos. A família teve a casa destruída pelo fogo.

“NA MADRUGADA DA FAVELA NÃO EXISTEM LEIS,
TALVEZ A LEI DO SILÊNCIO, A LEI DO CÃO TALVEZ…”
* HOMEM NA ESTRADA

Foto: Gibran Mendes
Foto: Gibran Mendes
Foto: Gibran Mendes

Versão da PM

A informação de que o incêndio foi provocado por próprios moradores da comunidade foi divulgada em coletiva de imprensa da PM, que atribuiu o ocorrido ao “crime organizado que atua no complexo das ocupações”. Conforme a versão da corporação, o incêndio foi para retaliar moradores que ajudaram nas investigações sobre a morte do policial Erick Nório. “Seria uma retaliação do tráfico ou do crime organizado contra a ação policial que estava sendo feita. Toda a ação desenvolvida pelas forças de segurança foram pautadas dentro da legalidade”, afirmou o tenente-coronel Nivaldo Marcelos da Silva.

Durante todo o sábado (8), o Corpo de Bombeiros, a Defesa Civil e Assistência Social do município ainda faziam o rescaldo do local e coletam informações. Autoridades políticas, como o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, deputado Tadeu Veneri (PT), os vereadores Goura (PDT) e Professora Josete (PT), além de defensores públicos e integrantes de movimentos sociais ligados aos direitos humanos, estiveram no local.

Personalidades nacionais, como o líder do MTST e ex-candidato a presidente pelo PSOL Guilherme Boulos também se pronunciaram. “É preciso investigar imediatamente o incêndio criminoso, após ação policial, na comunidade 29 de março em Curitiba. Toda solidariedade aos moradores”, postou Boulos em suas redes sociais.

A senadora e presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, prestou sua solidariedade ao policial morto e cobrou uma investigação rigorosa. “Infelizmente as famílias de trabalhadores, que perderam o pouco que tinham no incêndio ainda por esclarecer, tiveram direitos violados e se viram criminalizadas pela operação policial. (…) é preciso que as autoridades políticas do Estado e o comando da PM esclareçam o crime que vitimou um profissional da segurança pública e a morte até então confirmada de um morador da ocupação, além do incêndio que vitimou as centenas de famílias, evitando, com isso, que situações semelhantes venham a se repetir”, afirmou em nota.

A ONG Instituto Democracia Popular também acompanha de perto a situação. A praça da Ocupação Dona Cida, ao lado, está funcionando como ponto de coleta de doações e distribuição de comida para as famílias. Diversos moradores que não foram atingidos pelo incêndio carregavam doações para compartilhar com quem perdeu tudo e outros carregavam restos de cobre para vender como sucata e comprar alimentos.

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