À noite, às avessas

Fotografia: Leandro Barbosa / Jornalistas Livres

Texto e fotos por Leandro Barbosa, especial para os Jornalistas Livres

“A única coisa de que tenho saudade é da minha inocência”, diz Fernando, 29 anos, enquanto enrola seu cigarro de maconha. Segundo ele, é somente dela que sente saudades e nada mais. Uma pureza perdida em alguma rua durante os 20 anos que caminha pelas cidades do Brasil, morando em praças, debaixo de marquises e viadutos. Conversar com o Fernando e outros personagens que surgirão no decorrer dessa história foi uma maneira de conhecer esse enclave de 1.827 pessoas que moram nas ruas de Belo Horizonte, número divulgado no último Censo, feito em 2014, pela Prefeitura da cidade em parceria com a UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais.

 

Fotografia: Leandro Barbosa / Jornalistas Livres

A cidade, conhecida como a capital dos botecos, sempre teve em sua fama noites badaladas, boas comidas e bebidas. A diversão é inegável, mas, além disso, a noite do hipercentro da capital mineira nos confronta com histórias de abandono, vícios, saudades, enganos, alegrias e tristezas. Estar na rua para enxergar o que não se vê foi um ato que me exigiu coragem. Uma atitude que me assaltou as escamas dos olhos – está tudo muito perto, como dizem os mineiros: logo ali…

Seu nome completo é Fernando Pogliesi, nascido em Januária, cidade do Norte Minas, um jovem sonhador. Dentre seus muitos sonhos, somente um define tudo: ter uma boa velhice num lugar a 45 km de sua cidade natal. “Eu gostaria de ser igual a um sonho que não envelhece. Não tenho medo da velhice, mas de envelhecer mal. Não vou mentir, eu tenho um sonho massa: construir um chalé perto de uma cachoeira, uma companheira massa e uns ‘muleques’. Tem um lugar no extremo norte de Minas chamado Vale do Peruaçu, lá dava pra fazer um chalé muito doido. Envelhecer num lugar assim seria uma coisa boa!”, conta Fernando cheio de esperança.

Com Ensino Médio incompleto, ele conta que aprendeu muito mais na rua, mesmo não se orgulhando disso. Embora seja viciado em drogas, o motivo de sair de casa foi o desapego. “Aqui eu posso ser qualquer pessoa. Eu quero ser uma metamorfose. Posso mudar meus pensamentos amanhã”. Seu vício o faz trocar a noite pelo dia, mas ressabiado no início da conversa, me confronta: “nenhuma noite é igual à outra, tudo pode acontecer. Pega uma noite e dorme aí!”. Mas logo cede e conta, ao som da música ao vivo que tocava num bar da Praça 7 de Setembro, histórias da noite que não vemos.

“Aqui é palco de tudo: manifestações, alegria, choro e morte. Tudo acontece nesse quadrado (se referindo à praça). Tem dia na madrugada que não tem ninguém, de repente você abre os olhos e têm milhões”, conta apontando ao redor na expectativa de que eu visualizasse o que ele estava me dizendo. Mas existe um público fixo que aparece depois da meia noite, conta Fernando que se refere a eles como os “The Walking Dead” (seriado americano de zumbis). “Depois da meia noite aparece bicho de todo modelo. Tudo derretendo!”, diz, fazendo referência aos viciados em crack que vagam pelo centro em busca de uma pedra. Mas isso, “só quem não dorme pode ver”, afirma.

Se o viaduto falasse, nossa percepção seria outra?

 

Marcão, 38 anos, é amigo de Fernando e quem me apresenta a madrugada no hipercentro, a pior favela de uma cidade, segundo um traficante que conheci durante as entrevistas, porque é nele que se concentram pessoas de todas as comunidades.

Nosso destino é o Viaduto Santa Teresa, patrimônio cultural de Belo Horizonte, lugar que liga os bairros Floresta e Santa Tereza ao centro da cidade. Palco de diversos eventos culturais e ao mesmo tempo casa de muitas pessoas, o viaduto guarda segredos, conflitos, lamentos e cenas históricas como a de Carlos Drummond de Andrade caminhando pelos seus arcos em meados de 1920.

No caminho, Marcos me fala sobre a noite entre uma pitada e outra no cachimbo que fuma suas pedras de crack. “Uso droga pra caralho. Convivo com todo tipo de pessoas: puta, playboys, santos e assassinos”, conta apalpando o bolso procurando seu cachimbo. Fuma e continua: “A noite é doidera, curtição, bebida, paquera, trepar. Babilônia, sexo, drogas e rock’ n ‘roll. A noite é gente roubando. Eu ando com você, mas olho pra frente e olho pra trás”.

Chegamos ao nosso destino e, debaixo do viaduto, sou apresentado a um adolescente de 17 anos, conhecido como Lápide. É ele quem me apresenta uma noite traiçoeira, sutil e gananciosa. Ali, existe uma lei criada por ele e seu grupo enquanto a poucos passos vigora outra criada por outro grupo. “A lei é a rua, e a lei dos meninos é a lábia. Aqui não é casa de ninguém!”, explica o garoto enquanto negocia sua droga com um dos zumbis da madrugada.

Fotografia: Leandro Barbosa / Jornalistas Livres

 

Lápide faz um comparativo da noite de quem vende e de quem usa drogas. Pra ele a noite dos playboys, termo utilizado para classificar os usuários ricos, é uma Cinderela. O adolescente faz alusão à personagem da Disney para explicar que uma hora a carruagem vira abóbora e se perde o sapato de cristal e a festa deixa de ser tão bonita. Enquanto a noite dele é a ganância: “a rua me chama pra fazer a nota. Money!”. Além disso, o pôr do sol reserva a ele o ser persuasivo. Sua lábia garante quem estará ao seu lado, e isso não diz respeito apenas à sua gangue, mas também às mulheres com quem passará a noite. “A patricinha vem e meu pensamento é: vou usar ela! Homem nenhum nega droga pra mulher”, explica. Interrompe a conversa pra vender e continua: “eu falo pra ela: você vai passar a noite comigo, porque com os caras você não vai ter as drogas que eu tenho”, conta se gabando pelo sexo garantido.

Marcão me apressa. A fissura bate, o crack acabou. A impaciência aperta os seus passos, a necessidade de fumar mais uma pedra o perturba no trajeto ao novo personagem, Renato. O homem de 35 anos vende sua droga na Praça Rui Barbosa, conhecida como Praça da Estação, por estar localizada em frente ao prédio da antiga estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, hoje Museu de Artes e Ofícios (MAO). Desde o movimento das Diretas Já até os dias de hoje, a praça é palco para manifestações populares de todas as camadas sociais. Mas à noite, as ruas que a cortam escondem histórias e pessoas que vão ali para apenas um fim: usar e comprar drogas.

Renato resume a vida noturna na praça em uma frase: “a noite aqui é droga!”. E explica: “todos frequentam aqui. A droga abrange qualquer situação social”. Nascido em Pitangui, interior de Minas Gerais, ele saiu de casa na adolescência e vive nas ruas de BH, há 12 anos. Ao contrário de Lápide, ele me apresenta uma noite covarde em que medos são expressos em meio à violência. “Já vi muita gente morrer aqui a facãozada. A noite é covarde, cada um sabe o seu lugar”, conta antes de ser interrompido por Marcão, que se despede pedindo desculpas. O desejo pela pedra era tão forte que aos poucos, durante as poucas horas que estive com ele, entendi com clareza o porquê do comparativo aos zumbis: vi um se transformando ao meu lado.

Renato também é usuário, mas faz questão de frisar que não é como o Marcos, antes de continuar contando suas histórias. Ele fala dos seus medos e o maior deles é o de errar. “Meu medo é errar. Eu não posso errar, porque não sei como serei cobrado”, diz. Por esse motivo, a lei geral na praça, que também se estende ao Viaduto Santa Teresa, é não roubar, explica o traficante: “não aceitamos!”.

Ele leva consigo um lema: “o coração do homem é terra que ninguém pisa” – acredito que seja nesse ponto em que a “noite invisível” se cruza com a visível e se fundem encarnando a necessidade expressada por todo ser humano: ser amado, escutado.

Um amor marginal

 

Sidney Santos e Paloma Camburão estão juntos há 12 anos. A história de amor do casal começou num albergue, de forma bem particular: “quando eu conheci ele, ele era usuário de drogas. Eu era casada com outro homem. Um dia ele olhou dentro do meu olho e me pediu um vidro de pimenta”, neste momento Paloma ri, deixando claro o desfecho da história. Sidney aproveita a deixa, e diz: “se não fosse esse viado, hoje eu não estaria vivo!”.

Fotografia: Leandro Barbosa / Jornalistas Livres

 

 Sidney saiu de casa aos 9 anos de idade, filho de mãe de alcoólatra, partiu porque havia começado a usar drogas e “não queria dar desgosto a ela. Desde então, rodou as marquises Brasil afora, até encontrar a Paloma. “Antes de me conhecer ele não sabia o que era morar numa casa. Eu disse: vem aqui que eu vou te fazer homem. Agora ele sabe”, conta Paloma. Segundo ela, eles moram no bairro Camargos, em BH, mas vão para a rua para espairecer: “rola muito pressão, aí deixo ela em casa e saio. Mas adianta? Olha aí, ele vem atrás! Me ama!”, mais uma vez sorri, e complementa: “um não larga o outro”.

Paloma é soro positivo, mas ele não, embora quisesse. Os últimos exames de Sidney deram negativo para o HIV. “Eu queria muito pegar, seria uma prova amor”, conta o homem, de 33 anos, convencido de que tal ato é a maior prova de afeto que ele poderia dar a quem mudou sua vida. Paloma se isenta de falar sobre o assunto, mas se encanta com a coragem dele. “Ele é desse jeito! Eu mudo meu nome se derem um pão seco pra ele, e ele comer sem dividir comigo. Se derem um copo d’água pra ele, e ele não deixar metade pra mim, eu mudo meu nome…”.

 

Na rua, a história é outra

Sobre seus amigos, Sidney conta: “dos moradores de rua, 80% quer emprego, carteira assinada, família”. A respeito da humanidade, ele é enfático: “a sociedade olha pra nós igual olha um saco de lixo. Dá a mão pra levantar? Não… vai me matar, esse aí vai me assaltar: cadê a sociedade?”. Quanto a rua, a história é outra: “aqui uma mata a fome do outro, uma mata a sede do outro. Todo mundo aqui é família! Já cheguei a ficar pelado, só de cueca, aqui. Um coroa se cagou todo, tirei pra ele. A polícia nem perguntou, me deu um coro. A gente aprendi assim, mano, dividir o pão, mas a sociedade quer matar ‘nóis’!”.

Quanto a vida, o que fica é a saudade da mãe, que mora em Teixeira de Freitas (BA), e a oração que ele faz constantemente: “…quero morrer dentro de um barraco, pode ser em um colchão no chão, mas na rua não!”.

 

Fotografia: Leandro Barbosa / Jornalistas Livres

 

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