A Negação como Política de Estado, suas heranças e possíveis diálogos

Reprodução do filme "My Nazi Legacy", (da BBC).
A X Conversa Pública promovida pela Clínica do Testemunho do Instituto Sedes Sapientiae recebeu os parceiros do Departamento de Estudos Psicossociais de Birkbeck College, dando início a expansão dos projeto de construção de politicas públicas de combate a violência, desenvolvidos pela Clinica do Testemunho.

Dia 16 junho de 2016, no auditório do Instituto Sedes Sapientiae, ocorreu a X Conversa Pública Violência Psicanálise e Estudos Psicossociais. O evento, com coordenação de Maria Cristina Ocariz da Clínica do Testemunho, apresentou o curta metragem O Oco da Fala, dirigido por Míriam Chnaiderman.

Estavam presentes na mesa os professores Stephen Frosh e Bruna Seu, do Departamento de Estudos Psicossociais de Birkbeck College da Universidade de Londres; Belinda Mandelbaum do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Departamento de Psicologia Social da USP; e Augusto Stiel Neto, Terapeuta-pesquisador da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae e Coordenador do Projeto Fundo Newton.

O Projeto Clínica do Testemunho formou núcleos de profissionais capacitados para desenvolver o trabalho clínico e de pesquisa teórica relacionada a traumas de violência causados por Estados autoritários. Essa iniciativa tornou possível que uma série de formas de atendimento e apoio psicológico fossem oferecidas aos perseguidos pela ditadura militar, tanto de âmbito coletivo como individual.

As Conversas Públicas são uma parte das ações de um espaço coletivo do projeto, desenvolvido junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça para produzir insumos para elaboração de políticas públicas e para democratização das instituições para que o horror não se repita.

Diante desta conquista, em termos de ação pública, e com o auditório lotado, o Instituto Sedes Sapientiae, é um lugar de referência em termos de resistência política e comprometimento com a defesa dos Direitos Humanos, sentei-me ao lado de uma ex-companheira de minha mãe, para assistir meu próprio depoimento em o O Oco da Fala.

Ver-me e ouvir-me, rendeu “uma pausa de mil compassos”, pois prendi a respiração pensando em como descrever e definir meu lugar neste contexto. E por um momento, me senti neste espaço tenso entre o inspirar e expirar, que pode ser o vazio, o oco e o silêncio. Sou filha de presa política, fui separada de minha mãe aos 3 meses de idade, e só pude voltar a ficar com ela com 1 ano, quando ela saiu da cadeia.

A companheira de minha mãe, com um suspiro profundo me pergunta:
– Mas e agora, com esse cara ai? (Michel Temer)

Como vai ser? Ele está implodindo tudo? Saúde, Educação, Cultura…

A Conversa Pública marca o encontro dos parceiros do Programa de Desenvolvimento Profissional para Recuperação Psíquica e Combate a Violência, financiado pelo Fundo Newton do British Council do Reino Unido. O convênio assinado em março de 2016 entre o Fundo Newton e a Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae, tem como objetivo expandir o escopo de experiências dos 3 anos de trabalho do  “Programa das Clínicas do Testemunho” da Comissão de Anistia, usando a experiência adquirida para o treinamento e construção de capacidade para profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS), envolvidos em tratamento de reparo psíquico de vitimas da violência estatal na democracia.

Vítimas de graves violações dos Direitos Humanos estão sujeitas a sequelas traumáticas que exigem reparação através de cuidado médico e tratamento psicossocial contínuo. Estes precisam ser implementados como uma rede articulada, envolvendo diferentes setores, e exigem treinamento de profissionais de saúde para esse propósito específico, com a garantia pelo governo, da eficiência de serviço.  Com isso, uma experiência que começou dentro de um programa de reparação da memória se expande para a conquista de um espaço de política pública e abriga o Centro de Estudos em Reparação Psíquica (CERP).

Leia mais sobre o Clínica do Testemunho pelo site.

As falas dos professores Bruna Seu e Stephen Frosh do Departamento de Estudos Psicossociais de Birkbeck College da Universidade de Londres, reverberaram dentro de mim, e me motivaram a aprofundar uma reflexão que se estende a uma percepção geral sobre as políticas de reparação e justiça, e também a minha trajetória pessoal.

Uma das reflexões tem a ver com perceber como se dá o processo de elaboração dos conflitos históricos, vividos direta ou indiretamente, ou por herança, interna ou coletivamente. Sejam no silêncio das verdades que não são ditas às crianças, ou nos acordos conciliatórios de políticas de Estado.

Nos acordos, como no nosso caso, a lei de anistia de 1978, que permitiu a volta dos exilados políticos, pressupõe-se que houve um “acerto de contas” entre as partes, sem que tivesse havido o reconhecimento dos fatos. O longo processo de lá para cá é chamado de Justiça de Transição, e elabora uma série de ações de reconhecimento e pedidos de perdão por parte do Estado como forma de reconhecimento dos crimes cometidos e a construção de políticas de reparação.

Em Abril de 2016, Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia, escreveu em sua pagina pessoal do facebook:

“As Clínicas do Testemunho complementam o Programa Brasileiro de Reparações e Memória da Comissão de Anistia construído em cinco eixos: reparações restitutivas (rematrículas em cursos superiores interrompidos, contagem de tempo para aposentadoria, reintegração de postos de trabalho, correção de informações documentais etc.); reparações econômicas (indenizações e compensações financeiras); reparações simbólicas e morais (pedidos de desculpas, atos de homenagens públicas, atos de reconhecimento, declaração de anistiado político, Caravanas da Anistia etc.); reparações coletivas e transindividuais (projetos Marcas da Memória, construção do memorial da Anistia, ações educativas etc.) e reparações psicológicas (Clínicas do Testemunho). A Rede Nacional das Clínicas do Testemunho são ainda um trabalho com pouca visibilidade pública, mas que simboliza parte desta nova agenda da Justiça de Transição no Brasil, criando um serviço inédito de atenção psicológica às vítimas, a quaisquer de seus familiares e também aos postulantes por reparação que se preparam psicologicamente para seus testemunhos perante a Comissão de Anistia e as Comissões da Verdade”.

Não fosse o momento atual, uma faca a balançar novamente sobre nossas cabeças, e a luta de um século, ao menos na história do Brasil e do planeta por liberdade e justiça, talvez fosse impossível que eu encontra-se meu lugar, meu espaço histórico-emocional, nisso tudo.

Na fala de Bruna Seu, a visão acadêmica, psicanalítica e psico-social sobre o conceito da negação, e sua variadas tonalidades e consequências,  muito bem colocadas em relação a negação do Estado, sobre a memória da sociedade reflete aspectos importantes do processo. Um processo que nunca acabou de fato, que permanece entalado, por exemplo, na decisão de um Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São que insiste em NEGAR a responsabilidade já comprovada por um processo jurídico completo, aos 74 PMs condenados pela morte dos 111 presos no conhecido Massacre do Carandiru.

Uma parte das análises que nos presenteou Stephen Frosh foi sobre a importância e responsabilidade da testemunha, no processo jurídico, e que se não valorizada, ou negada como instrumento legal, descaracterizando todo esforço daquela fala, e levando-a ao fracasso, retoma a lógica cruel da negação histórica e institucional. Tão presente no nosso cotidiano, nos casos que chegam a ir a julgamento, como aquele do único PM, que chegou a ser julgado, em primeira instância, responsabilizado por uma das 594 mortes, de jovens, pretos e pobres, em maio de 2006, em São Paulo.

Frosh, abordou também a questão da conciliação, da responsabilidade e o impacto sobre as gerações futuras transpondo a questão para o ponto de vista dos filhos de opressores. Ele apresentou um trecho do documentário do Diretor David Evans, “My Nazi Legacy”, (da BBC), veja link disponível no You Tube:

https://youtu.be/LSpnZ7kQDAA

O documentário escrito e apresentado por Phillippe Sands, advogado de uma família judia, com apenas um sobrevivente do nazismo, acompanha dois filhos de comandantes nazistas para as cenas dos crimes de seus pais. Horst von Wächter e Niklas Frank, neste processo enfrentam, reconhecimento, negação e culpa, diante das atrocidades cometidas por seus pais. Frank, no trecho apresentado por Frosh, enfrenta a resistência de Wächter, em admitir os crimes de seu pai na Galícia, apesar das provas documentais irrefutáveis. Niklas Frank percorre o mundo fazendo palestras sobre as atrocidades do nazismo e pedindo perdão aos judeus pelos crimes de seu pai.
É possivel ver mais sobre os depoimentos dos filhos de nazistas no filme “Hitler’s Children” As Crianças de Hitler, do diretor Chanoch Zeevi. Disponível também no You Tube nesta PLAYLIST.

Neste contexto Frosh fez um questionamento sobre as dimensões profundas do perdão, com base no reconhecimento. Como se o perdão, instituido da maneira que é pela nossa cultura judaico-cristã, pudesse varrer da história as verdades, e por tanto silenciá-las.

O reconhecimento, memória, verdade e justiça são a base de um processo, que como disseram Bruna Seu e Stephen Frosh podem “evitar que uma tragédia se repita”.

E neste momento, em que minha pausa de mil compassos ainda reverbera, que construo as diversas narrativas, lógicas e cruzamentos dessa tão importante Conversa Pública, e vislumbro que o diálogo entre psicanálise, jornalismo e sociedade, se configuram como uma ação de extrema urgência.

Olho para amiga de minha mãe e digo:
–Calma companheira, vamos resistir…

Veja o convite para a XII Conversa Pública com o Jornalistas Livres AQUI.

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