“NÃO FOI A OPERAÇÃO MEDUSA, FOI A OPERAÇÃO MEDONHA”

A cena da humilhação, divulgada pela polícia, serviu para dar uma satisfação para a opinião pública - Foto: Divulgação

Especial para os Jornalistas Livres 

Tanto Pique Novo, quanto Swing & Simpatia não são grupos de pagode quaisquer. São conhecidos em muitos cantos do Rio após três décadas de estrada. Por isso, um show das duas bandas “pela primeira vez juntas no palco”, como dizia a chamada do rádio, era um evento e tanto para a noite de sexta-feira, 6 de abril, no bairro de Santa Cruz, extremo oeste do Rio de Janeiro, colado na Baixada Fluminense – uma imensa região, bastante pobre e povoada, que sofre com a falta de opções de lazer, de serviços públicos e de segurança, em meio a disputa de policiais, traficantes e milicianos. Pique Novo e Swing & Simpatia valiam cada um dos 10 reais do ingresso individual e mesmo, para quem podia, os 250 reais do camarote, que ficava no entorno da piscina da propriedade (o Sítio 3 Irmãos) que recebia a festa, na rua Fernanda, uma das mais conhecidas do bairro.

A promoção da festa, nas semanas anteriores, foi toda normal: contou com a arte do convite rodando no whatsapp, chamadas em rádios e páginas do Facebook. Tudo normal: horário, local, atrações e locais de venda, em diversas lojas da região. A festa também ocorria normalmente: seguranças desarmados revistaram o público na chegada, o público recebia pulseiras, cerveja no bar, pagode no palco! No auge da noite, no momento em que, segundo uma testemunha, “a festa estava mais lotada”, surgiu o terror pela única entrada do sítio. Eram os policiais civis, que chegaram atirando!

“Eu vou falar com propriedade porque eu estava lá no sítio nessa operação Medusa! Medusa não! Medonha! Eles chegaram atirando SIM! Não esperaram o sítio esvaziar, como falaram por aí. Eu convido quem não estava lá, quem não tem nenhum parente que estava lá dentro, a usar somente o bom senso: se foi uma investigação de dois anos como diz o delegado, eles tinham que chegar lá sabendo quem eles iam pegar! É o mínimo que eles tinham que saber. Não prender 159 pessoas indiscriminadamente. Se foi uma operação de dois anos, como eles deixaram fugir aqueles que eles deveriam pegar? Por que não cercaram o sítio?”, diz a jovem Camila, muito emocionada, com microfone na mão, em um protesto que reuniu 100 familiares em frente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro esta semana! Ela queria comemorar o início de suas férias e, no fim da tarde daquela sexta, mandou uma mensagem no celular convidando seu marido que saía do trabalho para os shows. Mesmo sem qualquer antecedente, sem qualquer investigação em curso, ele está preso há duas semanas em Bangu 9.

Camila resume a operação. Dita como a maior ação para desarticular a milícia que domina Santa Cruz e alguns municípios da Baixada, a Operação Medusa não conseguiu capturar os cabeça da quadrilha, Danilo Dias Lima, vulgo Tandera, e Wellington da Silva Braga, o Ecko ou Didi, que fugiram, assim como comparsas e seguranças, pelos muros de trás do sítio. No tiroteio, a polícia diz que matou 4 seguranças da milícia, mas já informou que desses, apenas três tinham mandados de prisão. Sobreviventes denunciam mais mortes.

Mesmo depois da entrada dos agentes atirando, da fuga do bando, da morte dos “seguranças”, o inferno da operação não havia terminado. Os policiais, sempre muito truculentos e desrespeitosos, dividiram homens e mulheres, levaram os homens para um imenso gramado, tiraram suas camisas e deitaram todos de rosto para a grama, na foto icônica que tomou as redes sociais nas últimas semanas. Pronto! Missão cumprida! A opinião pública bateria palmas para a intervenção. As bandas foram liberadas, mas era tanta gente que foram necessários dois ônibus para transportar os presos. Ao amanhecer, chegaram mais policiais, que começaram a arrombar os carros que estavam estacionados do lado de fora do sítio. Pelo que revela as testemunhas, foi aí que eles encontraram praticamente todas as armas apresentadas, com todo o louvor, para a imprensa na manhã seguinte.

Veja só como começa a reportagem do jornal “O Globo” sobre a operação.

“Milicianos faziam uma festa na madrugada deste sábado, para cerca de 400 convidados num sítio em Santa Cruz, quando uma operação da Polícia Civil acabou com a diversão e impôs um duro revés à quadrilha, apontada como a maior do estado, com atuação na Zona Oeste e na Baixada Fluminense. Na chegada dos agentes, houve intenso tiroteio, e quatro suspeitos foram mortos. Foram presos ainda 142 adultos, e sete jovens, detidos. Com o grupo, os policiais encontraram 13 fuzis, 15 pistolas, quatro revólveres, carregadores, coletes à prova de bala, granadas e dez veículos roubados”.

É claro que não demoraria para as autoridades também se regozijarem. Afinal, a intervenção não havia feito nenhuma operação espetaculosa como essa. A investida era ainda mais certeira porque teria acertado as milícias, justamente num momento de aumento de pressão sobre o assunto, com a morte de Marielle, a guerra de milicianos na Praça Seca e ainda com diversas reportagens – em sites como “The Intercept” e no próprio “O Globo” – mostrando o estrondoso crescimento deste tipo de organização criminosa nos últimos anos. Logo na manhã de sábado, dia 7, o secretário de segurança do Rio, o general do Exército Richard Nunes concedeu entrevista coletiva na Cidade da Polícia, para onde foram levados “os suspeitos”:

“O crime não compensa, e a sociedade do Rio vai cada vez mais se convencer disso. Tivemos diversas operações bem-sucedidas esta semana, e esta, sem sombra de dúvida, foi a mais exitosa”. A operação “mais exitosa” foi elogiada até mesmo pelo presidente da República Michel Temer que, dois dias depois da ação, disse: “Essa parceria está dando certo aqui. Esses últimos atos do fenômeno interventivo, na semana passada, foram preciosos para o Rio de Janeiro, mas também para o país, porque dão o exemplo”.

No entanto, o “exemplo” que a operação dá não é o da punição aos criminosos, mas do uso político de centenas de inocentes para legitimar uma intervenção. As histórias dos familiares e testemunhas ouvidas são as mesmas: um dia normal – ou um dia especial de festa e alegria – que virou um inferno de uma hora para outra. São centenas de trabalhadores inocentes, sem qualquer vínculo com a milícia, que estão presos há duas semanas sem qualquer acusação individualizada, apontados como parte de uma milícia.

Uma mãe de um jovem preso pergunta: “Que milícia é essa que tem gari, servente, chaveiro, ladrilheiro, artista de circo, estudante, metalúrgico, siderúrgico, técnico em radiologia, garçon?” A maioria consegue provar que trabalhara naquela sexta-feira. Mesmo assim, não está fácil mostrar as gigantescas contradições da operação. A “Globo”, que costuma adorar um caso de repercussão como esse, até agora não mudou o discurso; continua tratando os inocentes como suspeitos, para revolta dos familiares, como Claudecir, pai de um jovem, servente de pedreiro, de 19 anos, preso: “Tem muita gente aí que agora verá a Rede Globo e julgará as pessoas. Não julguem ninguém pelo o que a Globo fala”.

Nesta quinta-feira, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que vem lutando para soltar todos aqueles que não tem qualquer indício de atitudes criminosas, revelou um documento enviado à 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, pelo delegado Alexandre Herdy, titular da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado: “Apesar de diversos não possuírem quaisquer anotações, não significa que não possuam envolvimento na organização criminosa que exerce fortíssima influência em uma extensa região, que incluiu alguns municípios como Nova Iguaçu, Seropédica e Itaguaí”. Outro documento do Núcleo de Inteligência da delegacia diz que 139 nomes não detêm, “até a presente data, registros de anotações policiais que denotem participação em grupo criminoso, especialmente em milícias ou correlatas”. Mesmo com essas informações disponíveis, a audiência de custódia manteve uma prisão preventiva para os 159. A desembargadora Giselda Leitão apreciou diversos pedidos de Habeas Corpus essa semana, mas eles também foram negados. O primeiro e único até agora a receber um mandado de liberdade foi o artista de circo Pablo Dias Bessa Martins, de 23 anos. Seu caso é o mais conhecido na imprensa, por ter uma viagem de trabalho marcada para a Suécia dia 24 e por receber apoios importantes na internet, como do ator Wagner Moura.

A maioria dos casos de inocentes presos segue completamente anônimo, vivos apenas na boca de amigos e parentes. É o caso de Larissa. A adolescente estava na festa para comemorar os 60 anos de sua avó. Sua família, com muito esforço, gastou R$500 para reservar dois camarotes. O relato dela denuncia, além da truculência da operação, uma chacina ainda não esclarecida.

“Deu umas 3h30, 3h35 da manhã e chegou os polícia civil atirando contra todos sem saber quem era envolvido quem não era. Começou a gritar ‘todos no chão’, esculachando a gente de lixo para baixo. Para a gente foi horrível. Foi pior ainda quando eles começaram a separar os homens das mulheres. Foi difícil para a gente! Foi horrível! A cena assim… foi uma chacina, foi um desastre. Na TV tá passando que foram 4 mortos, mas e os outros corpos, que eles tavam puxando pelos braços e pelas pernas, onde é que estão? Uma mãe chegou para um policial e perguntou: ‘E o corpo do meu filho?’E ele disse: ‘Vou deixar lá na avenida Brasil. Vamos ver se você encontra ele’. Onde que um policial vai falar isso para uma mãe de família? Dói! Dói muito! Porque é muita injustiça o que estão fazendo com os nossos inocentes! Como ser preso por algo que nem começaram a fazer? Nem pensaram! É difícil!”.

Pelo menos três familiares de Larissa, incluindo um tio-avô de quase 60 anos, estão entre os presos.

Sobreviventes falam que até 18 pessoas podem ter sido mortas na operação. São relatos cortantes, quase sempre interrompidos por choros e soluços, muita revolta. Fabiana está inconsolável, seu marido, pai de um filho de 6 anos, está preso.

“Os policiais entraram atirando. Se meu marido não me joga no chão, eu não estaria aqui viva contando isso! (Muito choro) Eu sou uma sobrevivente e meu marido é uma pessoa inocente, trabalhador! Ele trabalha! Ele é inocente e está preso como se fosse bandido na penitenciária! Sem direito a visita, sem direito a nada! Eles chegaram às 3h30 e chegaram a-ti-ran-do! Aquilo lá não era uma festa particular! Era um evento pago! Pagamos por tudo, cada bebida! Não era uma comemoração, como estão dizendo. Não eram todos milicianos! Eu estava lá! Eu sou testemunha viva! Eles não merecem o que estão passando!”

Naquela sexta-feira, Euclides tinha deixado seu filho Felipe, de 18 anos, sair pela primeira vez para uma festa.

“Meu filho trabalhou até as 10 horas da noite; chegou para mim e perguntou: Pai, posso ir na festa lá? Aonde cara? Ali no sítio, vão uns cantor lá, uns colegas vão comprar ingresso lá. Vai quem? Vai só uns colegas aqui da rua. Tá bem, vai lá, filho. Mas ó, toma cuidado, cara. Vê lá, hein? O garoto saiu e o que aconteceu? Essa desastrada operação da Polícia Civil. Poderíamos estar chorando a morte de nossos filhos aqui. Graças a Deus, não deixou levar nossos filhos. Eles falam que milicianos que são isso, são aquilo. Não fizeram investigação nenhuma, essa que é a verdade, até porque que investigação é essa que espera chegar três grupos de pagode num festão aberto ao público, com venda de ingresso, numa operação maluca aí? Que operação é essa? Não tem lógica! Quiseram se amostrar! Tão dando mídia a eles! E nós estamos só observando! Sem saber de nada, porque não deixaram nós termos acesso a eles também”.

A cada relato, uma embrulho no estômago. São pais que estão se culpando por deixarem seus filhos sair para se divertir. É o caso do Nílton, pai do Jeferson.

“Eles prenderam inocentes! Meu filho tem 19 anos, pegou o quartel agora. Não tava com carteira assinada porque trabalho tá difícil. Trabalhava em obra, de servente. Nesse dia, ele chegou 11 horas em casa e pediu para ir para o baile. Eu ainda disse para ele: “Não vai para esses bailes”. Eu tô cansado de dar conselhos para eles não saírem. Eles não escutam os pais. Porque eles têm 19 anos e acham que mandam. Mas a vida não é assim. O pai tem que dar a orientação pros filhos. E eu sempre dei para o meu. E todos aqui também deram. Eu dei conselho, eu avisei, eles foram e deu no que deu”.

Famílias desesperadas, já não sabem mais a quem recorrer. Jorge Paulo é um homem enorme, que nesta semana parecia uma criança desenhando um cartaz no chão do centro do Rio. Quer a liberdade para o seu filho! Pede ajuda da ONU e do Vaticano!

“Eu venho aqui pedir para os Direitos Humanos, eu venho aqui pedir à ONU, eu venho aqui pedir à OAB! Eu venho aqui pedir a todos que possam intervir neste caso, porque essas prisões foram ilegais. Adulteraram o local de crime! Liberaram os grupos de pagode! Liberaram as mulheres! Liberaram os garçons! Não cabia mais! Foram pegos dois ônibus pelos policiais! Não coube mais gente! Eles liberaram outros homens porque não cabia mais nos ônibus! O direito de ir e vir é livre para qualquer um! Eu posso ir na igreja, mas posso ir no pagode, a hora que eu quero! Nós vivemos numa democracia! Onde está a democracia? Que democracia é essa? Onde está a democracia deste país? Isso que aconteceu com os nossos filhos é o que está acontecendo na Baixada: mortos, sem defesa, sumariamente. Isso tem que acabar! Onde está a democracia? Onde está a democracia?”

Elza estava destruída. Pegou o microfone, em frente ao Tribunal de Justiça, para pedir uma reunião com a desembargadora.

“Eu, como mãe, venho pedir que nossos filhos sejam postos como inocentes. 150 milicianos, mas só apareceram 40 armas! Matemática! Cadê as outras? As mulheres foram xingadas de prostitutas! Só por que somos pobres? Só por que moramos em comunidade? Por que não temos dinheiro para pagar um show na Barra da Tijuca, em Copacabana? NÃO! O meu filho tá lá preso inocentemente! A filha dele tá lá chorando! Eu tô passando mal desde sábado! A gente não tem mais almoçado! A gente não tá jantando! A gente não tem feito nada! Eu tô perdida sem chão! Esse delegado diz que o Sítio 3 irmãos fica em Campo Grande! Mentira! O Sítio 3 irmãos fica em Santa Cruz, na rua Fernanda! Contradição, senhor juiz! O delegado disse que passou dois anos em investigação! Para prender quem? Cadê seus investigadores? Cadê aqueles que deveriam ser presos? Mas agora os nossos filhos inocentes? Tinha cadeirante! Tinha mulher grávida, que abortou! É isso que é justiça? Pelo amor de Deus, senhor juiz! Desembargadora! Por favor, não temos nossos filhos desde o dia 6. O coração de mãe tá pedindo pela amor de Deus! Resolva esse processo, essa solução! Eu não tô aguentando mais! Vocês vão ser responsáveis pela morte de um pai ou uma mãe, que estão desesperados! Atenda nosso pedido, desça! Converse conosco, ponha a cara aqui! Nossos filhos são inocentes!!”

Andreia carregava consigo o histórico escolar de seu filho, para mostrar que o menino era bom aluno. Está preocupado com a revolta que o menino sairá de Bangu 9.

“Eu venho dizer que têm estudantes lá dentro! Ele estava dentro de uma aula, aprendendo, e agora está jogado numa cela. O que a justiça está ensinando para os nossos filhos? O que eles estão aprendendo depois dessa prisão arbitrária e desumana? Eu fico preocupada porque eles são jovens! Como é que eles vão sair de lá? Qual a credibilidade que eles vão dar para a Justiça? Eu vi aqui. [Sou] um pai arrependido de deixar o filho ir na festa! Mas, meu irmão, eles têm que sair, têm que se divertir. A questão do desemprego: isso é notório. Nossos filhos, nossos parentes, não foram numa festa de miliciano não! Eles foram atraídos porque eles eram fãs de um grupo de pagode! Eles foram atraídos para uma festividade que eles têm direito, porque eles pagaram ingresso e pagaram tudo que consumiram. Eu não chamo de Operação Medusa! Eu chamo Operação Destruidora de Famílias! Nossos filhos estão privados dos lares! Privados da mãe! Meus amigos, vocês sabem o amor de mãe! Até a mãe de um traficante, de um bandido, ela tá na porta do presídio e visita o seu filho. Imagine, mães, nós, com filhos inocenteeeeees! Eu queria pedir a essa doutora, desembargadora, a doutora juíza Ruth, por favor, somos seres humanos, olhe para nós! Olhe para nós, porque nós tentamos educar nossos filhos, tentando ensinar o que é certo, e agora eles tão passando por um processo todo errado! São jovens de 18, 19, 20, 25 anos, que, passando pelo que tá passando agora, eu não sei mais o que vai ser desses meninos! Eu não sei se eles vão ter a capacidade de estudar de novo! Muitos estão estudando para ser advogados, para serem juízes, mas acho que eles não vão querer mais! A decepção está sendo grande. Em nome de Jesus, eu vou pedir: compadeça dessas mães e liberte os inocentes!”

Leila é irmã de Alex. No protesto, carregava um cartaz com fotos do jovem sorrindo e trabalhando.

“Meu irmão é radiologista. Pagou o curso dele cortando cabelo, como cabeleireiro. Agora tá lá, como criminoso, como miliciano. Se a gente fosse miliciano, não estaria aqui protestando, a gente já teria conseguido tirar eles de lá, com o dinheiro de roubo, de tudo. Tenho certeza que aqui não tem nenhum miliciano e nenhum parente de miliciano. Se tivesse mesmo 159 milicianos armados lá quantos policiais teriam para contar a história, gente? Tinham morrido todos. Mas nenhum levou um tiro. Quem morreu lá pode ser que seja criminoso ou inocente, não sei. Mas sei que os nooossos são inocentes, os noooossos estão pagando como criminosos, sem ser”.

Uma senhora, que não quis se identificar, disse que um dos presos trabalhava montando barracas em festas da zona oeste.

“Todo mundo ali tinha o direito de se divertir, mas o meu filho estava ali para receber o dinheiro da venda que ele montou. Ele tem uma microempresa. Eu só pude tirar a tenda uma semana depois, porque dissseram que tinha que fazer uma perícia, mas foi uma pericia fajuta, porque o salão já tinha sido limpo. Não precisa ser especialista para saber que não pode limpar. Eles tão querendo tirar a mídia de cima deles. Eles querem colocar para cima do povo pobre da zona oeste. Ficaram na delegacia e sofrendo agressões sem motivo. Eles não fizeram exame de corpo e delito. Não sai ninguém para dar uma satisfação para a gente. Nós estamos sem poder ver nossos filhos. A gente é trabalhador e paga os salários de todo esse povo da delegacia, do tribunal. A gente que coloca eles no poder e fazem isso com a gente? Nós temos como comprovar que eles eram trabalhadores. A gente vem fazer essa manifestação, querendo alguma resposta. A gente não pode nem provar que eles são inocentes. Apesar que não somos nós que temos que provar nada. Eles que têm que provar que nossos filhos são culpados!”

Ubiratan está com seu filho preso e absolutamente revoltado com o delegado e as juízas do caso.

“Dizem que a justiça é cega, mas já deu para enxergar. Juiz, desembargador: olha só quanto inocente! Delegado, o que você fez não tem desculpa, não tem perdão, delegado. Ele deve ter pensado “Ai, meu Deus, vou fazer uma operação nota 10!” A operação não foi nem nota 1. “O que eu vou fazer?”, pensou o delegado: “Eu vou prender todo mundo, eu vou prender esses inocentes tudo, não são da minha família, eu moro em Copacabana, eu não moro aqui, meus filhos não tão aqui. Um defensor público falou que, em 19 anos de profissão, nunca viu uma covardia dessas! ! Nós estamos aqui hoje e nós não vamos parar. Se a resposta não for positiva hoje, nós não vamos parar. Nós não vamos desistir, porque o que vocês estão fazendo é uma covardia!”

A festa reunia pessoas e famílias da região do Cesarão, Cambuci, Paciência, Cosmos, Campo Grande, Santa Cruz…Gente com vida normal, que nem sabe o rosto dos milicianos. É o caso da Camila!

“Me perguntaram: ‘Ah, mas vocês não sabia que tinha miliciano?’ Não sabia! Sabe por que eu não sabia? Porque eu trabalho de segunda a sexta. Eu saio de casa às 5 horas da manhã e chego às 11 horas, e meu marido também. Então eu não sei nem o rosto deles. Então, se eles estavam lá, eu sinceramente não sei dizer. Eu não tenho nenhuma obrigação de saber quem é. A rua Fernanda não fica em comunidade. É uma das principais ruas de Santa Cruz. Tem acesso pela rua do Guanabara, pela Estrada de Sepetiba e dá para a Felipe Cardoso. Se eles têm certeza que todo mundo que tava lá era miliciano, no mínimo, todos estavam com uma arma, né? Por que miliciano, se sabe, não anda sem arma. Você não precisa ter conhecimento para usar o bom senso. Eu tenho um filho de 6 anos. A amiguinha dele da escola falou para ele que o pai dele tá preso. Então, além de eu ensinar o meu filho a andar no caminho do bem, a não roubar, a não matar, eu vou ter que ensinar, infelizmente, ele a ter medo da polícia. E quem me conhece desde pequena sabe que eu sonhava em ser policial, mas é decepcionante. Meu marido é trabalhador! Mas tudo bem, carteira assinada não quer dizer nada. Então vão investigar a nossa vida! Eu e meu marido moramos na casa da minha vó! Que miliciano é esse que não tem uma casa? O meu carro, que tava fora da festa, eles nem mexeram, sabe por que? Porque é tãão velho! Que miliciano que anda em carro velho? Eu entrei no evento! Fui revistada por uma menina que estava lá, que não estava armada! Meu marido foi revistado por um segurança que não estava armado! Que convenhamos que um fuzil não é fácil de esconder, né? As armas não foram encontradas do lado de dentro da festa! Foram pegas do lado de fora! Depois que passou o tiroteio, eu não me desesperei quando eu vi que era polícia. Eu até agradeci! Eu nunca fui naquele sitio, minha primeira vez. Eu só fui porque eram dois grupos de pagode conhecidos. Inclusive, eu queria perguntar aqui: cadê eles? Cadê a banda? Eu não me desesperei porque um policial, o único que teve um mínimo de educação, falou assim para mim: ‘Senhora, o seu marido deve?’ Eu falei que não. Claro que não. Inclusive to aqui com a carteira dele, com tudo. ‘Então, não precisa temer, eles serão levados para serem averiguados’. Se todos eram milicianos, por que aqueles que não couberam nos ônibus não foram levados? Por que os grupos de pagode não foram levados? São coisas que não fecham! A gente não tá aqui para falar contra a polícia não! Porque a gente não pode fazer a mesma coisa que eles! A gente não pode generalizar. Eu não sei se eu estou com medo, ainda estou em estado de choque. Só não enxerga quem não quer enxergar, tá mais do que claro. Não tenho obrigação de saber quem tá la dentro não. Quando eu vou no Barra Music (famosa casa de show da Barra), eu não peço a lista de quem está lá dentro. É assim que vai ter que ser feito no Rio de Janeiro? ‘Ah, mas vocês vivem rodeados (por bandidos)’. Mas se fosse assim eu não iria no mercado, no sacolão, não sairia de casa. O coletivo não pode pagar por 1, 5 ou 10 que estão envolvidos! Que inteligência é essa? A gente não pode calar, a gente não pode ficar com medo. Estamos lutando por um direito nosso e deles, que é direito à vida e à liberdade”.

 

Uma mulher mais idosa, desesperada, convidou a desembargadora para conhecer Santa Cruz.

 

“Desembargadora, eles quiseram pegar o peixão, mas o peixão fugiu! Aí encheram os ônibus cheio de sardinhas que não têm valor nenhum! Nós já provamos a inocência deles! O que esta faltando? Desembargadora, o povo de Santa Cruz é um povo trabalhador! Desembargadora vai em Santa Cruz conhecer o povo de Santa Cruz! A senhora pode não saber, mas o delegado sabe quem é quem em Santa Cruz! Desembargadora, a gente está correndo o risco por fazer isso, ao rodar pela cidade, mas somos nós que estamos aqui para falar a verdade! Desembargadora, não faça a gente desacreditar na justiça! Que a senhora receba a gente! Não sei se você tem filho, mas nós temos! E é por isso que estamos aqui! Queremos uma reunião sua conosco! Aqui tem sobreviventes, desembargadora! Pessoas que estavam lá! O povo de Santa Cruz não pode pagar pelo erro de ninguém! Queremos essa solução hoje, em nome de Jesus!”

À medida que a semana vai passando, os relatos ficam mais contundentes, mais desesperados.

 

“Eu estou aqui para gritar pelo meu irmão. Eu sei do caráter do meu irmão, nós somos quase gêmeos! (Chora muito!) Eu ponho minha mão na fervura por ele! Somos kardecistas! Ele foi com minha mãe ao centro naquele dia, depois era aniversário da minha tia! Nós fomos ao aniversario dela, fomos embora, mas ele esticou com os amigos pro pagode! Ele tem di-rei-to! Ele é trabalhador! Meu irmão trabalha, de segunda a sábado, o meu irmão carrega caixa pesada no ombro! Fora isso, ele ainda é DJ, autônomo, sonhador, trabalhador, faz festinha! Ele tinha festa marcada para todos os sábados este mês. Agora eu tô tendo que me justificar com os clientes dele! Eu tô sem trabalhar há uma semana! Pago minha faculdade com muito sacrifício! Por favor, olha pelos inocentes!”

Claudecir estava muito nervoso, nem queria dar entrevista, mas acabou revelando uma outra informação, ainda mais chocante do caso: pessoas, como seu filho, que passavam na frente da festa teriam sido jogados para dentro do sítio e presos também.

“Meu filho foi comemorar o aniversário de casamento de um amigo! Mas não era naquela festa! Era em outra, mas ele passava por ali na volta! Ele tava passando na frente da festa e foi jogado para dentro dela e preso! Foi jogado para dentro da festa com a esposa e mais um amigo. Essa operação só tem um objetivo: cunho político. A Globo bateu em cima da intervenção e eles devolveram com inocentes! Ninguém tá aqui para defender bandido! A covardia é que me deixa nervoso assim. Eu tenho um filho de 12 anos. Eu tenho que falar assim: estuda muito para você sair da merda desse país! Ser pobre não é ser bandido!”

Nesta quinta-feira, ainda com os inocentes presos, a Polícia Civil fez nova operação para prender a quadrilha de milicianos que atua em Santa Cruz. Mais uma vez, os cabeças do bando não foram presos. Em vez de 159 numa festa, dessa vez, 13 pessoas foram presas.

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. indignada com delegados etc onde falam e declaram que inocents sao melicianos , , sr delegado vcs chegaram atirando e depois diz que eram eles os sanguinarios?? justiça de DEUS nao falha nunca

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