O terreno íngreme, de pedras soltas, e chão de terra batida contrasta com a grandiosidade dos arranha-céus que vigiam a comunidade do Moinho. Encostada nas linhas do trem da CPTM, que liga o centro até a cidade de Jundiaí, passando pelo extremo noroeste da cidade e as cidades dormitórios da Grande São Paulo.
O vai e vem dos trens, levando gente apressada, cristã e de bem, que volta o seu olhar vazio para aquelas pessoas que estão vivendo naquelas ruas de chão cor marrom, de casebres de madeira que desafiam qualquer lei da gravidade.
Hora do rush, perto das 18 horas, a comunidade aguarda com ansiedade a chegada do corpo do Leandro, morador da comunidade, que foi brutalmente torturado e assassinado com tiros à queima-roupa pela Polícia Militar de São Paulo. Mesmo com o episódio de violência que ocorreu um dia atrás, as vielas e becos estavam repletas de crianças a brincar; nos comércios a normalidade de um dia como outro qualquer; nos botecos pessoas bebem.
A comunidade é um organismo vivo, e mesmo com a morte de um dos seus, ela se mantém viva. Como sempre, as crianças retornam aos seus lares depois de um dia de escola. Como todos os dias, o apito das panelas de pressão sinaliza: a hora da janta se aproxima.
Histórias de violência parecidas com a Leandro se confirmam em relatos, como de uma senhora que teve o irmão, com 15 anos, perfurado pelas balas de policiais.
A violência policial dirigida à comunidade do Moinho não é de hoje, já acontece há muito tempo, assim como os incêndios que tentam “limpar” aquela área central das vidas, histórias, comércios, bares e igrejas que a habitam. Há uma sociedade entre os trilhos do trem que persiste e resiste há anos.
Com o avançar da noite, moradores transitam para lá e para cá, na busca de notícias sobre a chegada do Leandro no Moinho, mas dessa vez não é como das outras vezes, quando ele chegava cumprimentando a todos, respeitando as meninas, ou pedindo um cigarro para o marido de uma mulher que vive há mais de 20 anos na comunidade, e que conta com emoção as boas lembranças que tem de Leandro. Dessa vez Leandro estará em um caixão, dentro do carro da funerária municipal.
As horas passam e nada do Leandro. Nos rostos sofridos das senhoras estampava-se a agonia. Parecia que estavam à espera de um filho que fora se divertir e esqueceu da hora de voltar. Nas comunidades, o filho de uma é filho de todas, e dessa forma, a preocupação daquelas mulheres se estabeleceu, o senso de responsabilidade por aquele filho que elas viram crescer entre as ruas do Moinho.
Perto das nove horas da noite, alguns botecos do Moinho estão com pessoas bebendo e assistindo ao jogo do Corinthians, o time de futebol que teve as suas origens nas parcelas estigmatizadas da sociedade, que é o time de favela, que nasceu na favela, e que será sempre de favela.
Homens com corpos tatuados e trajes descontraídos, próximo dos seus 30 anos, bebem em um bar bem próximo à entrada da comunidade. Um deles mostra o jornal do dia aos demais que o acompanham na cerveja. Do dia para a noite, a morte de Leandro trouxe holofotes e visibilidade passageira para o Moinho. Poderiam ser amigos de bar de Leandro, ou de infância. Talvez só se conhecessem de vista, de um oi ligeiro, ou de empréstimo de cigarro.
O jogo já está perto do fim, a notícia se espalha por toda a comunidade: Leandro chegou! Mas sem vida, e dentro de um caixão.
Uma parte da imprensa que estava na entrada do Moinho acompanha a recepção dos familiares de Leandro, mas é impedida de fotografar ou fazer qualquer registro, a família pede para respeitar a sua dor.
A mãe e a irmã choravam e gemiam enquanto acompanhavam o carro da funerária adentrar o Moinho. O silêncio preenchia os espaços, o barulho do trem a passar eternizava aquela cena das pessoas seguindo o carro da funerária
Alguns familiares seguiram para a entrada da capela Nossa Senhora Aparecida, dentro da comunidade. Com uma carroça de materiais recicláveis, bloquearam a entrada das pessoas que não eram do Moinho. A ordem era objetiva: “Primeiro a família”, “respeitem a dor da família”, “ninguém vai lucrar com a morte do meu filho”.
O olhar da irmã da vítima fuzilava todos que iam em direção a capela. Rostos raivosos, olhares revoltados miravam a todos. Dava para para ver a indagação: Nunca estiveram aqui, e agora, o que fazem?
A pastora e algumas irmãs da Assembléia de Deus do Moinho tentavam confortar o coração aflito daquela mãe. A cumplicidade feminina compreende esses momentos de dor –uma irmã consolava a outra. A mãe de Leandro cobrava: “Quero a Justiça de Deus.”
Com o passar dos minutos, os familiares entraram para velar o corpo, e logo depois foram os irmãos e irmãs em Cristo da Assembléia de Deus para realizar o culto fúnebre. A agonia dos que estavam do lado de fora só aumentava. Depois de algum tempo as portas foram abertas.
O sincretismo religioso foi harmônico na cerimônia. Os católicos cederam e os evangélicos conduziram o culto, ao som de louvores da Harpa Cristã e tantos outros popularmente conhecidos, tanto entre católicos e evangélicos. Seja católico ou evangélico, a dor é a mesma, e o remédio é o mesmo: se aproximar de Deus, pois outras esferas não vão resolver.
O pastor em um momento da oração disse com convicção: “Ó Senhor que ouve o clamor do pobre!”, e essa fala toca a todos, pela condição em que estão, por pertencerem a uma sociedade paralela à dos ‘homens de bem’ e do capital. A fé é a utopia que move a esperança por dias melhores, por um dia de sorte que mudará tudo, pelo milagre que retirará cada um ali da atual condição em que se encontra.
Entre louvores entoados aos prantos, alguns pedem para cantar a música da igreja que de Leandro mais gostava, e tem por título ‘Ressuscita-me’, que faz uma analogia com a passagem do Novo Testamento, João 11, quando Jesus ressuscitou Lázaro depois de 4 dias da sua morte.
Em um trecho da música fala: “Remove a minha pedra, me chama pelo nome, muda a minha história, ressuscita os meus sonhos, transforma a minha vida, me faz um milagre, me chama para fora. Ressuscita-me!” Todos cantam encharcados por rios de lágrimas que consolavam e lavavam a alma.
Uma parente de Leandro gritava: “Ressuscita, Deus, o Leandro!”, a irmã caiu em prantos e veio ao chão, como se tudo que estivesse ao seu redor desmoronasse.
O caixão de Leandro estava ao centro da igreja, com uma coroa de flores à direita. Assim como Jesus, que foi marginalizado e torturado antes de ser crucificado, o menino Leandro foi torturado antes dos tiros finais.
Uma resposta