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Comportamento

A missão é a comissão

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Por Márcio Anastásio**

Lojas de grifes, estrutura luxuosa e vitrines cuidadas em cada detalhe. O que um consumidor enxerga ao visitar um shopping center, decerto, não é a mesma visão que tem um trabalhador desses centros de compras ao entrar no mesmo ambiente. Para inúmeros funcionários do varejo, o local de trabalho é espaço de dor, exploração e desrespeito de direitos conquistados.
No momento em que se debate a aprovação da flexibilização de leis trabalhistas, os Jornalistas Livres destaca a reportagem vencedora do Prêmio MPT de Jornalismo 2017, na categoria “Especial Fraudes Trabalhistas”, onde o repórter Márcio Anastacio mergulhou no universo de exploração do varejo brasileiro.

Para refletirmos sobre o consumo excessivo e os danos que certos hábitos causam à vida dos trabalhadores, leia o relato da experiência vivida no dia de compras mais movimentado do ano:
“23 de Dezembro. Dia mais esperado pelo comércio. É hoje que as lojas esperam registrar o maior faturamento do ano. Depois de uma noite mal dormida (o corpo cansado não consegue relaxar), sigo para mais um dia de trabalho no shopping. 39 graus no Rio. Desta vez, o ar condicionado do 433 resolveu o problema.

Entro no shopping localizado na zona sul da cidade. Vou em direção à grife de cosméticos que me tem como funcionário. Até chegar lá percorro 4 pisos. A cara dos trabalhadores as 14h já não é das melhores. Muitos ainda estão longe da hora de almoço. Outros nem vão almoçar. Entro na loja e todos já estão lá desde 9h. Hoje o caixa tem que registrar 32 mil reais. A meta imposta é diária.

No rosto dos colegas de trabalho há um mix de cansaço, estresse e dor. Pouco antes de eu chegar, dois vendedores estavam em pé de guerra. É… o salão de uma loja às vezes vira campo de batalha. Eles competem pelos três primeiros lugares no ranking de vendas (são 7 vendedores na disputa). Haverá prêmio em dinheiro para quem se destacar. Para estar entre os melhores vale enganar, passar a perna e mentir na cara dura para o colega de trabalho.

Desta vez, o barraco foi tão grande que quase foram às “vias de fato”. Entro em posição de batalha. Quer dizer… começo a vender. Atende um, atende outro e o calor começa a incomodar. O ar condicionado da loja parece ter quebrado. Estava melhor no sacolejar do 433. Mais destruídos ficam os vendedores. Loja cheia. Já não temos mais ordem para atender. Agora é no mata-mata. Quem cumprimentar primeiro o cliente é o senhor da sua compra.

Por poucos minutos a loja esvazia e o debate de quem passou mais a perna no outro se inicia. Tudo isso em meio aos gritos da gerente para organizar a loja. Mas ninguém se incomoda. Ela é doce na maioria das vezes e mantém a sua equipe na palma da mão. É uma líder nata. Tenho que ir ao estoque. Está faltando sacola. É isso mesmo… No shopping vendedor tem que limpar, ser caixa, estoquista e ainda ter um belo sorriso.

O dia poderia ter chegado ao fim, mas estava só na metade. Bateu a fome. Quem é trabalhador de shopping não desembolsa menos de 12 reais por dia para se alimentar precariamente. Quem não tem dinheiro fica com fome. Nem pra levar de casa tem como. Lá não tem refeitório e a praça de alimentação é para cliente (foi isso que eu ouvi quando perguntei se trazendo de casa, eu poderia comer ali). Eu saí pra comer. Meus colegas não. Comer e trabalhar no shopping não são coisas lá muito próximas. E hoje, hoje é dia de vender.

De volta ao campo de batalha, eu resolvo questionar a uma colega se não era o caso de recebermos alimentação já que estaríamos ali por mais de 8h. Ela disse que não achava, já que todo mundo estava ali porque queria. A falta de consciência e de conhecimento dos direitos desses trabalhadores é, muitas vezes, motor para as empresas explorá-los ainda mais.

Que calor! A minha cabeça parece levar várias pontadas de agulha. Dor na cabeça. Exaustão no corpo. Deu 23h. O shopping fechou. — Ninguém sai até arrumar o VM (visual merchandising), lembra a gerente. O acúmulo de funções para nós é tão naturalizado que é como se a gente já tivesse sido contratado para isso. Meia noite e nada no ônibus passar. Frota reduzida. Chegou lotado. No shopping seguinte lotou ainda mais.

Abri a porta de casa de casa e o corpo parece dormente. Peguei o celular pra terminar esse texto que fui escrevendo em pedaços (como eu). A mente não articula mais as palavras. Mas eu vendi 4 mil reais e a loja bateu a sua meta. Afinal, a missão é a comissão.”

Confira a reportagem completa:

** A reportagem, vencedora do Prêmio Ministério Público do Trabalho de Jornalismo,  foi originalmente publicada em maio de 2017 sob o título: Shopping: onde a flexibilização das leis trabalhistas já chegou, no portal SRzd. Para acessar o original: goo.gl/uY12ho

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Comportamento

Quilimérios, um povo isolado entre belas rochas de Minas

Vídeo revela os moradores remanescentes que habitam há quase dois séculos uma área próxima à divida com a Bahia

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Quem percorre o Vale do Jequitinhonha no extremo Nordeste de Minas, quase divisa com o sul da Bahia, vê ao longe um conjunto de belas pedras de granito como se tivessem sido despencadas numa chuva de meteoritos. É difícil passar por ali e conter a vontade de ir ver de perto, afinal, a pacata e hospitaleira cidade de Rubim fica logo ali. Pois bem, foi neste belo lugar que um antigo quilombo volante, certamente vindo do interior da Bahia, resolveu se fixar de vez, esquecendo-se do tempo e da chamada civilização, vivendo ali esquecido, isolado. São os Quilimérios, um nome de origem desconhecida.

Uma equipe de cineastas e jornalistas de Belo Horizonte esteve lá e fez o interessante curta-metragem chamado Quilimérios, um documentário de 24 minutos que trata da história deste povo que vive isolado desde o século XIX, na parte mineira do Vale do Rio Jequitinhonha, que logo depois deságua no litoral baiano. Escondidos entre altas pedras de lugares quase inacessíveis, os Quilimérios ainda são desconhecidos por muita gente que vive até mesmo na própria região.

O curta Quilimérios conta um pouco da história deste povo, mostra cenários deslumbrantes e lugares quase intocados do Baixo Jequitinhonha, filmados praticamente com celular e drone, “o que o torna um produto experimental e inovador”, afirma Emerson Penha. O diretor do curta revela que ir a esta comunidade e fazer o documentário foi muito significativo: “É impressionante, nos dias de hoje, com tanta tecnologia, um povo permanecer isolado. Por outro lado, é importante poder mostrar que o mundo tem lugar para todos, independentemente do seu jeito de ser e viver. Todos têm direito a viver como desejam e isso precisa ser respeitado”, observa.

Na região do Baixo Jequitinhonha, divisa entre Minas Gerais e Bahia, as pedras gigantes marcam o caminho do rio. A muralha natural isola tudo, até mesmo a passagem do tempo. Nesse cenário, os Quilimérios vivem como no século XIX. Para eles, o isolamento foi a única opção e até hoje o mistério de sua existência permanece. A explicação sociológica mais razoável é que seriam remanescentes dos quilombos volantes, grupos nômades formados por afrodescendentes que escapavam do cativeiro, indígenas expulsos de suas terras e mesmo brancos que fugiam das cidades por diversas razões.

A história que se conta entre várias gerações na região de Rubim, cidade mais próxima e de pouco mais de 10 mil habitantes, é que esse grupo de pessoas foi formado a partir da fuga de um ex-escravo, Juca Preto, contratado por um fazendeiro da vizinha cidade de Pedra Azul para matar alguém importante. Após cometer o crime, Juca fugiu para a região onde seus descendentes vivem até hoje e que permanece quase inacessível. Ali só se chega a pé ou a cavalo. Na fuga, Juca levou uma índia, com quem teria dado início à família dos Quilimérios. São pessoas muito reservadas, que cultivam costumes antigos e têm hábitos comportamentais como o casamento endogâmico. Atualmente restam apenas alguns quilimérios remanescentes, já que as novas gerações vêm se transferindo para Rubim.

Quilimérios é um filme de Emerson Penha, com música de Túlio Mourão, fotografia de Fábio Damasceno, produção de Zu Moreira, edição de Rafael Diniz (Fiel) e argumento de Tião Soares.

Confira o vídeo acima indo ao Youtube.

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Chacina

Cuiabá nas ruas contra do racismo, o fascismo e o genocídio

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Da: MediaQuatro especial para os Jornalistas Livres

Desde de 2019, com as manifestações contra os cortes na educação e a deforma da previdência, Cuiabá não juntava tanta gente nas ruas. E talvez nunca tenha havido tamanho contingente policial, incluindo helicóptero, para o improvável caso de “vandalismo”. Mas era mesmo de se esperar. Afinal, o racismo estrutural brasileiro em uma das capitais mais conservadoras do país exige que se trate os pretos e pretas sempre como potenciais criminosos. BASTA! O país não pode mais conviver e não conseguirá sequer viver como nação integral enquanto houver preconceitos que se refletem em práticas cotidianas e políticas públicas que oprimem e excluem a maior parte da população.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Chegamos a um ponto no Brasil que não é mais suficiente não ser racista. É preciso lutar contra o racismo, nas ruas, nas redes, nos campos e nas casas. E a luta antirracista é central na derrubada do governo Bolsonaro e suas políticas genocidas na economia, na segurança pública e na saúde. Foi por isso que, apesar da necessidade de se intensificar o isolamento social, fomos à Praça Alencastro e marchamos pelas avenidas Getúlio Vargas, Marechal Deodoro, Isaac Póvoas e BR 364 para retornarmos à Praça da República sem qualquer incidente.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Assim como em outras cidades e estados por todo o Brasil, em Cuiabá e Mato Grosso os negros e negras são maioria e são exatamente os corpos pretos os mais encarcerados, os pior pagos, os que vivem nos lugares mais distantes, os que mais precisam trabalhar fora de casa durante a pandemia (e muitas vezes sem sequer os equipamentos de proteção adequados) e os que mais são atingidos pela Covid-19. Isso não é uma coincidência. É resultado de quase 400 anos de escravidão formal, que em Mato Grosso também vitimou indígenas em larga escala, e de uma abolição inconclusa que indenizou os “proprietários” de pessoas mas nunca pagou a dívida histórica com quem sente na pele seus efeitos até hoje.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

É fato que o assassinato do estadunidense negro George Floyd foi o estopim dos protestos antirracistas em todo mundo e também no Brasil, onde houve atos em pelo menos 20 cidades, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Mas por aqui, as mortes do menino Miguel, do adolescente João Pedro e dos jovens em Paraisópolis, só pra citar alguns casos mais representativos nos últimos seis meses, demonstram cotidianamente o que significa ser alvo do preconceito, da polícia e das políticas.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Desse modo, derrubar o governo o quanto antes o governo do fascista que ocupa a presidência é indispensável para conseguirmos combater a epidemia de forma minimamente eficiente. E tirar apenas o presidente não é suficiente, porque seu vice e ministério são igualmente racistas, como está provado em entrevistas antes mesmo das eleições, em pronunciamentos em eventos e na fatídica reunião ministerial.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Enquanto não derrubarmos as políticas estúpidas da “guerra às drogas”, do encarceramento em massa, da concentração de renda, do agronegócio acima da agricultura familiar, não há presente para o país. E enquanto não investirmos em políticas públicas de igualdade racial e de gênero, de proteção às minorias e à diversidade, e de promoção dos direitos humanos a TODOS e TODAS, incluindo a punição de policiais assassinos, milicianos e racistas, não haverá futuro também.

 

 

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#EleNão

Os camisas negras de Bolsonaro

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Mais de 1 milhão de crianças, 2 milhões de mulheres e 3 milhões de homens foram submetidos ao assassinato e à tortura de forma programada pelos nazistas com o objetivo de exterminar judeus e outras minorias. Nos primórdios da Itália fascista, os camisas negras – milícias paramilitares de Mussolini – espancavam grevistas, intelectuais, integrantes das ligas camponesas, homossexuais, judeus. Quando a ditadura fascista se estabeleceu, dez anos antes da nazista, Mussolini impôs seu partido como único, instaurou a censura e criou um tribunal para julgar crimes de segurança nacional; sua polícia secreta torturou e matou milhares de pessoas. Em 1938, Mussolini deportou 7 mil judeus para os campos de concentração nazista. Sua aliança com Hitler na 2ª Guerra matou mais de 400 mil italianos.

Perdoem-me relembrar fatos tão conhecidos, ao alcance de qualquer estudante, mas parece necessário falar do óbvio quando ser antifascista se tornou sinônimo de terrorista para Jair Bolsonaro. Os direitos universais à vida, à liberdade, à democracia, à integridade física, à livre expressão, conceitos antifascistas por definição, pareciam consenso entre nós, mas isso se rompeu com a eleição de Bolsonaro. O desprezo por esses valores agora se explicita em manifestações, abraçadas pelo presidente, que vão de faixas pelo AI-5 – o nosso ato fascista – ao cortejo funesto das tochas e seus símbolos totalitários, aqueles que aprendemos com a história a repudiar. Jornalistas espancados pelos atuais “camisas negras” estão entre as cenas dessa trajetória.

A patética lista que circulou depois que o deputado estadual Douglas Garcia(PSL-SP) pediu que seus seguidores no Twitter denunciassem antifascistas mostra que o risco é mais do que simbólico. Depois do selo para proteger racistas criado pela Fundação Palmares, e das barbaridades ditas pelo seu presidente em um momento em que o mundo se manifesta contra o racismo, e que lhe valeram uma investigação da PGR, essa talvez seja a maior inversão de valores promovida pelos bolsonaristas até aqui.

A ameaça contida na fala presidencial e na iniciativa do deputado, que supera a lista macartista pois não persegue apenas os comunistas, tem o objetivo óbvio de assustar os manifestantes contra o governo e de açular as milícias contra supostos militantes antifas, dos quais foram divulgados nome, foto, endereço e local de trabalho.

É a junção dos “camisas negras” com a Polícia Militar, que já se mostrou favorável aos bolsonaristas contra os manifestantes pela democracia no domingo passado em São Paulo e no Rio de Janeiro. E que vem praticando o genocídio contra negros impunemente no país desde sua criação, na ditadura militar, muitas vezes com a cumplicidade da Justiça, igualmente racista.

Como disse Mirtes Renata, a mãe de Miguel, o menino negro de 5 anos que foi abandonado no elevador pela patroa branca de sua mãe, mulher de um prefeito, liberada depois de pagar fiança de R$ 20 mil reais, “se fosse eu, a essa hora já estava lá no Bom Pastor [Colônia penal feminina em Pernambuco] apanhando das presas por ter sido irresponsável com uma criança”. Irresponsável. Note a generosidade de Mirtes com quem facilitou a queda de seu filho do 9º andar.

Neste próximo domingo, os antifas vão pras ruas. Espero não ouvir à noite, na TV, que a culpa da violência, que está prestes a acontecer novamente, é dos que resistem como podem ao autoritarismo violento. Quem quer armar seus militantes, e politizar forças de segurança pública, está no Palácio do Planalto. É ele quem precisa desembarcar. De preferência de uma forma mais pacífica do que planejam os fascistas para mantê-lo no poder.

Por: Marina Amaral, codiretora da Agência Pública

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