Milicianos invadem área ambiental e formam máfia da areia no Rio de Janeiro
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Rafael Duarte
Por Mariana Simões, da agência Pública
Rio de Janeiro. Tucanos sobrevoam densas camadas de Mata Atlântica que cercam duas construções brancas, de um andar. Uma frase em azul-marinho escrita à mão sinaliza que ali funciona a Escola Municipal Sargento João Délio dos Santos. Os mais de 200 alunos do ensino médio e primário estudam dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) do Alto Iguaçu, um oásis verde de 22 mil hectares em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Foi ali que, em dezembro do ano passado, o Ministério Público Federal (MPF) flagrou um crime ambiental altamente lucrativo: o carregamento de areia da APA.
A empresa Areal da Divisa Ltda. aproveitou as férias escolares e passou a extrair areia por dragagem, uma técnica que utiliza bombas de sucção submersas. Como resultado, desmatou a área e criou uma cratera do tamanho de quatro campos de futebol, repleta de uma água de cor verde claro, a apenas 8 metros da escola – que agora corre o risco de desabar. “Passaram muitos caminhões de areia aqui. Eu não estranhei porque isso acontece o tempo todo. É só mais um areal. Isso já é comum para essa comunidade”, disse um morador que não quis se identificar por medo de sofrer represálias. Mais de 65 mil pessoas moram na APA.

A extração de areia acontece ao lado da Escola Municipal Sargento João Délio dos Santos (foto: Mariana Simões/Agência Pública)
Há mais de uma década, o MPF investiga a atuação de areais ilegais na área da APA. Em 2012, os procuradores impetraram uma ação civil contra uma empresa Areal da Divisa e orgãos de fiscalização estadual e federal pela extração indevida de areia em um local arqueológico dentro da APA, pedindo multas no valor de R$ 250 mil. O processo menciona que as autuações ambientais datam de 2002. O caso ainda está em andamento na 2ª Vara Federal de Duque de Caxias, mas uma decisão limitar em 2013 ordenou à empresa “interromper a execução de atividades de extração mineral nas áreas objeto da presente demanda, bem como em qualquer outra área, contígua ou não, na região do Amapá-Piranema, abstendo-se de praticar qualquer novo ato de degradação ambiental nas áreas objeto desta ação ”. O descumprimento levaria a uma multa de R $ 50 mil. No mesmo ano, o decreto que criou a APA estabelece que a “extração mineral de qualquer natureza” é proibida na região.
Milícias
Durante a apuração da reportagem, moradores da APA do Alto Iguaçu disseram que empresas irregulares ligadas à milícia fazem a extração ilegal graças a um regime de medo. “A gente tem todo tipo de ameaça aqui, inclusive algumas mais diretas onde dizem que a milícia vem matar todo mundo, não anda sozinho se não vão pegar vocês”, contou uma moradora à Agência Pública. A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) recebeu denúncias de moradores que alegam ter sofrido ameaças verbais por se posicionarem contra a abertura de areais na região. Segundo um representante da comissão, os deputados continuam acompanhando os casos, mas não divulgam detalhes por segurança.
Inea RJ
Apesar da ilegalidade, muitos moradores da APA acabam trabalhando na extração de areia por falta de oportunidades de emprego. “A gente mora em uma região onde todas as famílias têm um parente que trabalha no areal”, diz um morador. A areia dá lucro porque é um dos componentes principais da produção do cimento, abastecendo o mercado de construção civil. Por isso, a extração ilegal de areia é a terceira atividade criminosa mais lucrativa do mundo – atrás apenas de pirataria e do tráfico de drogas. No Brasil, a atividade pode chegar até R$ 8 bilhões por ano, de acordo com um estudo do pesquisador Luís Fernando Ramadon, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Você não precisa de muita coisa para você transformar a areia em faturamento. A areia está bem ali na beira do rio, você pega, puxa ali ninguém viu e vai embora”, diz Ramadon, ex-chefe do Núcleo de Operações da Delegacia de Combate a Crimes Ambientais e Patrimônio Histórico do Rio. O pesquisador afirma que o roubo de areia no Brasil dá mais lucro do que o tráfico de maconha, por exemplo. “O tráfico de drogas tem um custo muito alto, porque, além da briga por território, tem as propinas que são pagas para a droga poder passar. Já com a extração de areia você não precisa de nada disso. Se lucra muito e muito mais rápido”, explica Ramadon.
“Porque que a milícia vai lá [na APA] e faz a extração da areia? Porque está dando dinheiro a extração da areia ali”, diz Ramadon. Ele acrescenta que a área de preservação ambiental é uma “presa fácil” para o roubo de areia. “Quantos funcionários trabalham em um local desse? São poucos. Um, dois, três, e às vezes não dão conta [de fiscalizar]. E existe também o medo. Se você pega e denuncia uma extração ilegal, tem gente que morre por causa disso.”
“Quando eu andava com as crianças aqui antes, era só mata, mas quando as aulas voltaram eu notei que já estava imenso o areal. Já tinha uma megaestrutura com maquinário pesado [para extrair a areia]. Eu levei um susto”, conta um morador da região, também sob anonimato. Depois da extração, o susto foi ainda maior com o aparecimento da cratera cheia de água de coloração azul. “Pensávamos que podia ter risco de a escola desabar por conta da lagoa que surgiu aqui do lado.”
No dia 4 de abril de 2019, a prefeitura de Duque de Caxias fez uma vistoria no local para verificar se a cratera ameaçava o dia a dia dos alunos. O laudo da visita, assinado por uma engenheira civil da Subsecretaria de Saúde e Defesa Civil de Caxias, diz que foi constatado “a cerca de 8 metros de distância dos fundos da escola, uma obra já paralisada de escavações de um areal, sem causar danos a estrutura da escola”. O documento ainda frisa que, “considerando as alterações descritas acima, não existe o risco iminente de colapso da estrutura”. A cratera permanece até hoje e os alunos seguem na escola à beira da “lagoa”, formada por água do lençol freático.
“Quando você faz aquela buraqueira lá, você está sujeitando a água à poluição e facilitando mais intensamente a evaporação. Em alguns lugares você tem perda dos níveis de água etc. Então esse é um problema que não tem solução”, diz o geólogo Décio Tubbs, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Especialistas alertam que a composição química das lagoas não é própria para contato humano. “Não é para consumo e muito menos para banho. A água tem um pH muito baixo e você começa a ter reações na pele, como coceiras”, diz o geólogo Eduardo Marques, coordenador nacional de geoquímica no Serviço Geológico do Brasil (CPRM). Mesmo assim, quem mora no entorno acaba usando as cavas como fonte de diversão. “As crianças falam com a gente que foram para a lagoa azul. Até os pais contam que vão nadar lá e que está sempre lotado. Falam que tem gente que vem de jet ski. Vão para se refrescar na água”, conta outro morador.
A reportagem da Pública foi abordada quando tirava fotos do areal e da lagoa. Um carro parou um pouco à frente, baixou o vidro e questionou uma moradora sobre por que estávamos tirando fotos do local. O motorista se identificou como “dono” de um areal da região.

“Pensávamos que podia ter risco de a escola desabar por conta da lagoa que surgiu aqui do lado”, relata o morador da região (foto: Mariana Simões / Agência Pública)
A Areal da Divisa
Cansado de ver a inação dos órgãos fiscalizadores, o procurador Júlio Araújo acionou a PF e o Inea para realizar uma operação policial conjunta que tivesse como objetivo estancar a extração ilegal de areia na APA do Alto Iguaçu.
A operação liderada pelo MPF foi feita no dia 9 de dezembro de 2019 e levou à destruição de oito silos, uma espécie de funil utilizado para separar a areia da água no processo minerário. Os oito areais que funcionavam dentro da APA foram alvos da operação – entre eles, a cratera aberta que deixou a escola municipal à beira de um precipício. A reportagem da Pública apurou no site da Agência Nacional de Mineração que a empresa Areal da Divisa havia pedido em 2003 uma licença para realizar mineração exatamente naquele local, mas a licença nunca foi concedida. Dentre os 8 silos destruídos pela operação, um pertencia à Areal da Divisa.
“Existe uma omissão na fiscalização ali na região”, diz o procurador Julio Araujo, do MPF em São João de Meriti. “É uma atividade que prosperou. Virou um negócio muito lucrativo e vem sendo operado por grupos criminosos”.
A Pública tentou entrar em contato com quatro telefones vinculados à Areal da Divisa, mas não conseguiu contato com nenhum responsável.
Para Júlio Araújo, a operação foi bem sucedida porque conseguiu destruir o equipamento usado pelos grupos criminosos. “A questão da destruição [do maquinário usado na extração] é superimportante porque ela inviabiliza a atividade”, diz o procurador. “Até hoje o que era feito era: a polícia ia lá com o fiscal do Instituto Estadual do Ambiente e prendia as pessoas que estavam fazendo a extração ilegal da areia. Aí isso gerava processos penais que acabavam esfriando porque geralmente essas pessoas eram apenas trabalhadores e efetivamente não dominavam o negócio. Então isso não era eficaz.”
Logo depois da operação foi concluída, o MPF enviou ofícios ao prefeito de Duque de Caxias e à Secretaria Municipal do Meio Ambiente cobrando uma resposta para prevenir a extração irregular de areia. O prefeito não respondeu, mas a secretaria afirmou, no início de janeiro, que dali por diante o procedimento seria relatar “o ocorrido ao Instituto Estadual do Ambiente, sendo o mesmo competente para as demais medidas cabíveis”. No dia 12 de fevereiro deste ano, o MPF fez uma reunião com o Inea questionando o representante da APA.
“O MPF vai continuar cobrando tanto o Inea quanto o próprio governo do estado”, diz Araujo.
Uma moradora, que conversou com a reportagem sob anonimato, disse que as os grupos criminosos começaram a retomar as suas atividades de extração ilegal de areia em fevereiro deste ano e atualmente estão para abrir um novo areal dentro da APA do Alto Iguaçu. “Esse novo areal é mais escondidinho, não é tão na cara como aquele que ficava do lado da escola”, conta. “Botaram uma caixa [de areia] nova e cavaram um buraco para ver se tem areia, e tem. Estão esperando só a poeira baixar. Mais cedo ou mais tarde vai voltar.”
Brechas no sistema e ‘modus operandi ilegal’
O pesquisador Luís Fernando Ramadon alerta que, como no caso da APA, é comum que órgãos fiscalizadores municipais permitam a extração de areia mesmo sem aprovação da ANM. “Tem aqueles que estão dentro do processo de legalização e atuam ilegalmente”, explica Ramadon. E dá um exemplo: “Se eu tenho um poligonal, ou seja, uma área minerária que eu pedi para a Agência Nacional de Mineração poder explorar, e eu não consegui o licenciamento dado pela ANM, eu não posso explorar. Se eu explorar, é um modus operandi ilegal”.
De fato. Em janeiro de 2003, a Areal da Divisa entrou com um pedido de autorização de pesquisa junto à Agência Nacional de Mineração. A área englobava 769 hectares, incluindo o terreno da escola municipal Sargento João Délio dos Santos.
Gilvoneick de Souza, presidente da ONG Defensoria Social Ambiental, que estudou o caso, diz que a empresa não conseguiu autorização para pesquisa. “As pessoas dão entrada no órgão e se aproveitam de um protocolo que, por exemplo, dá direito apenas a pesquisa e, em vez de pesquisar, passam a extrair e a vender aquele material, mas é só um primeiro passo, de um longo processo burocrático, para se obter uma concessão de lavra.”
Há mais de uma década ele denuncia areais clandestinos na Baixada Fluminense e chegou a participar, em 2016, da CPI dos Areais na Alerj. Segundo ele, é comum as milícias serem “beneficiadas pela ineficiência do sistema”. “Você tem empresas que entram no órgão para pedir essa concessão de extração que já foram flagradas usurpando esse material e mesmo assim a empresa continua indo para o órgão e pedindo novas solicitações. Ou seja, essa empresa deveria ter a sua autorização de extração cassada e ser incluída em um cadastro para que ela nunca mais opere nessa área. Mas não é isso que acontece”, diz.
Desde 2001, dezenas de vistorias foram feitas pelas autoridades competentes em areais comandados pela Areal da Divisa. Como resultado a empresa recebeu pelo menos 11 notificações por “condutas lesivas” ao meio ambiente apenas em áreas próximas à Escola Municipal Sargento João Délio dos Santos. As notificações foram emitidas pela ANM, pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Duque de Caxias e pelo Inea.
Um relatório de janeiro de 2002 informa que um areal da empresa na mesma região foi objeto de vistoria pelo deputado Carlos Minc em dezembro de 2001 e que “já foi solicitada a emissão de intimação para paralisar a extração […] por causar degradação ambiental já que a empresa não possui licença de operação”. Quatro anos depois, outro relatório de uma vistoria feita pela Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), órgão de fiscalização ambiental depois absorvido pelo Inea, mostra que em março de 2006 a empresa continuava extraindo areia “de forma irregular”. Segundo o documento, o proprietário “iniciou a extração neste local alegando demora do órgão na emissão da Licença requerida”.
Destruição de sítio arqueológico
Antes de abrir a cratera atrás da escola em 2019, a Areal da Divisa já estava entre as sete empresas que viraram alvo do MPF, em 2012, pela destruição quase total dos sítios arqueológicos Terra Prometida e Aldeia das Escravas II, também dentro da APA do Alto Iguaçu. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) avaliou que o local continha vestígios da pré-história do Brasil, como cacos de cerâmica e artefatos de pedras de índios tupis-guaranis. Na ação civil o MPF acusa a ANM e o Inea de emitir autorizações irregulares e não fiscalizar as empresas. “Por tratar-se de uma área com alto potencial arqueológico, eventual licença para atividade de extração de areia em cava deveria ter sido precedida de pesquisas arqueológicas”, escreve o MPF.
Documentos do Inea obtidos pela Pública revelam que a Areal da Divisa obteve pelo menos 12 licenças para minerar areais nessa área com potencial arqueológico. O órgão que mais emitiu essas licenças foi a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Duque de Caxias.

A Areal da Divisa já estava entre as sete empresas que viraram alvo do MPF, em 2012, pela destruição quase total dos sítios arqueológicos Terra Prometida e Aldeia das Escravas II (Foto: Mariana Simôes / Agência Pública)
Procurada pela reportagem, a prefeitura de Duque de Caxias disse que desconhece a ação civil pública movida pelo MPF. Segundo a administração, “a responsabilidade em fiscalizar qualquer empreendimento de exploração mineral é do Estado através do INEA”.
Por e-mail, o Inea diz que a APA do Alto Iguaçu foi criada em janeiro de 2013 e que “quando a unidade de conservação foi instituída, essa atividade já havia sido interrompida”. Sobre o sítio arqueológico, o Inea afirma que desde agosto de 2013 tem realizado vistorias e “não evidenciou atividade de extração mineral”.
Questionada sobre as licenças concedidas à Areal da Divisa, a ANM respondeu por e-mail: “As licenças emitidas para a empresa Areal da Divisa foram todas em acordo com a legislação vigente na época, tendo a última sido cancelada em 20/06/2008. Esclarecemos que a APA do Alto Iguaçu foi criada em 2013, posteriormente, portanto às licenças emitidas”. O órgão acrescenta que a “ANM vem tomando todas as medidas cabíveis no âmbito desta gerência no intuito de coibir a extração ilegal de recursos minerais na região”.
O mercado que facilita o crime
“Normalmente o miliciano ou o empreendedor criminoso extrai esse material e até estoca esse material, que é comprado pelas casas de materiais de construção da própria Baixada”, conta Gilvoneick de Souza, da ONG Defensoria Social Ambiental. Segundo ele, além de contar com pequenas casas de construção, os milicianos têm clientes de empresas maiores que utilizam a areia para erguer grandes obras. “O empresário acaba adquirindo esse material bem baratinho do miliciano. Então aquela empresa que ganhou uma licitação [para uma obra], em vez de adquirir de uma empresa legalizada, compra esse material que foi usurpado e dá um jeito de falsificar a documentação. Porque a empresa tem que dizer em documento de onde é extraído aquele material”, explica.
Luís Fernando Ramadon, que desde 2009 dá um curso sobre repressão a crimes ambientais e minerários na Academia Nacional de Polícia (ANP), explica como é feita a fraude. “Às vezes eles fazem a lavagem da areia através da nota fiscal de uma empresa que é legalizada”, diz. O que acontece geralmente, segundo o pesquisador, é que o minerador já possui uma empresa legal de mineração e passa a usar a nota fiscal dessa empresa em transações envolvendo a extração ilegal de areia. Usando a tal nota da empresa legalizada, “vende a areia ilegal que o comprador pensa que é legal”.
Mas na APA do Alto Iguaçu responsabilizar as empresas que compram o material ilegal tem sido mais difícil. Segundo o procurador Julio Araujo, que desde 2018 investiga impactos socioambientais na região pelo MPF em São João de Meriti, o mapeamento das empresas compradoras é uma linha de investigação que se provou ineficaz na APA. “Eu penso que em relação aos areais há um cenário de normalização”, diz o procurador. “Os órgãos municipais e federais se contentaram durante um bom tempo em enxugar gelo na situação fiscalizatória, o que indiretamente permitiu que a atividade continuasse e ao mesmo tempo não houvesse a responsabilidade das pessoas que comandam a atividade.”

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Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
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5 anos atrásem
06/11/20por
Aloisio Morais
Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
Feminismo
Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?
Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros
Publicadoo
5 anos atrásem
05/11/20
A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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