A ideia de uma sociedade livre, onde cada indivíduo a partir do seu próprio esforço deve construir a sua trajetória, é bastante sedutora. Afinal, somos todos humanos e capazes, portanto, podemos chegar onde quisermos e senão atingir os objetivos estabelecidos, a culpa é única e exclusivamente sua. O Estado, estruturado por 3 poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, deve ter leis rígidas e claras: todos cidadãos devem ser tratados igualmente perante a lei.
Esses são alguns parâmetros do conceito do Liberalismo, que forma o discurso eloquente do mais novo vereador eleito pela cidade de São Paulo, Fernando Holiday, que já anunciou em suas redes sociais que suas primeiras medidas serão o combate ao vitimismo, fim das cotas raciais em concursos públicos e a revogação do dia da Consciência Negra.
Holiday, jovem, negro e gay, ganhou muita visibilidade nas redes sociais por atacar o movimento negro e as políticas de promoção da igualdade racial, pois acredita que estas reforçam o racismo. O vereador também se projetou como uma liderança do Movimento Brasil Livre (MBL).
Se o racismo não é algo importante na realidade brasileira, se as negras e os negros estão em pé em igualdade com os não negros e a partir do seu esforço individual, sem a presença do paternalismo do Estado, podem ascender-se socialmente, porque o próprio Holiday insiste tanto em debater esse tema?
Seria porque o seu amigo Kim Kataguiri (MBL) é visto como um jovem intelectual, figura da nova geração de liberais e assim, o vereador só consegue se projetar com um discurso raivoso contra o movimento negro e as políticas de combate ao racismo?
Holiday é vítima, e ao mesmo refém, da pauta que ele diz combater. Sua ascensão como liderança está condicionada a pauta racial, sua estética lhe dá legitimidade para fazer um discurso que um branco de classe média jamais poderia fazer. É um exemplo perfeito para a busca de uma narrativa eficiente na desconstrução da luta histórica do povo negro.
É interessante notar como ao longo da história, a elite brasileira sempre buscou formas de apagar, ou minimizar, os impactos do que foi o colonialismo, o escravismo até hoje. O discurso da democracia racial é o maior exemplo disso, pois sempre buscou, a partir da incorporação de elementos da cultura negra e indígenas como parte de uma identidade nacional, esvaziando os conflitos e as assimetrias étnicas construídas ao longo da história, refletindo em uma profunda desigualdade econômica, social e cultural.
O movimento negro brasileiro se dedicou longos anos para desconstruir a idéia de uma democracia racial. Existindo duas frentes para essa desconstrução, sendo uma com a iniciativa de forçar o Estado a reconhecer a existência do racismo como fruto de um processo histórico escravista e portanto, era necessário a aplicação de políticas reparatórias de promoção da igualdade racial. Deriva dessa luta a formação da Fundação Palmares, o racismo como crime inafiançável, a proposta de cotas nas universidades e no serviço público, na formação de diversos órgão municipais, estaduais e nacionais na promoção da igualdade racial.
A segunda frente foi no campo cultural, com o fortalecimento de uma identidade negra e da afirmação estética que foi produzindo um aumento significativo de autodeclarados pretos e pardos nos sucessivos censos. O momento de avanço desse projeto se deu nos governos Lula/Dilma com a criação da Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e da política de cotas nas Universidades Públicas Federais, como o ProUni e FIES que garantiram o acesso nas universidades particulares. Além de cotas no funcionalismo público, e políticas econômicas como o bolsa família, a valorização do salário mínimo, o aumento da oferta de crédito. Medidas que mexeram na dinâmica social brasileira, abrindo oportunidades para diversos setores historicamente excluídos, mas que mostraram os seus limites, pois não foram capazes de enfrentar as bases estruturais da desigualdade, como a concentração de riqueza, latifúndio e o monopólio midiático.
No auge da aplicação dessas políticas econômicas e sociais, que geraram certa mobilidade social no núcleo de poder encabeçada por Lula e pelo PT, abriram mão do debate ideológico e da disputa de consciência, da exaltação das saídas individuais, e da construção fantasiosa de uma narrativa da formação da nova classe média reforçou no imaginário popular conceitos liberais, com a possibilidade de ascensão social e melhorias da qualidade de vida se dando por meio de ações individualizadas.
É neste contexto que cai como uma luva o discurso do Fernando Holiday, reforçando a ideia de que os programas sociais, as políticas de cotas e sistema público de saúde e educação formam um paternalismo de Estado que impede o desenvolvimento individual das pessoas. A maior força do discurso do vereador é também a sua maior fragilidade. É muito cômodo dizer que todos são iguais perante a lei, e que só através do esforço individual as pessoas poderão melhorar sua condição de vida. Além de afirmar que qualquer política que busque diminuir as desigualdades é vitimismo.
É curioso que a política de juros altíssimos que geram super lucros para os bancos e uma dívida pública que consome 46% do orçamento federal não seja considerado vitimismo. Ou que o incentivo fiscal que anistia empresas a pagarem impostos não seja considerado vitimismo. Ou que a inexistência de impostos que taxem lucros dos empresários, heranças e patrimônio não seja considerado vitimismo. Ou seja, tudo o que beneficia o andar de cima, que transforma o Brasil em um dos países mais desiguais do mundo não é considerado vitimismo. Trocando em miúdos, para Holiday, o Estado só deve atuar para manter os privilégios das elites que se mantêm no poder há mais de 500 anos e reprimir com leis duras os mais pobres.
Será que no fantástico mundo de Holiday, ele também acredita ser vitimismo quando no ano passado, cerca de 160 pessoas foram assassinadas por dia no Brasil? Somando no total, 58.383 pessoas mortas violentamente e intencionalmente no país? Sendo 70% dessas mortes são praticadas contra jovens, negros e pobres?
Outro ponto importante do seu discurso é a ideia de meritocracia que se embasa na afirmativa de que todos são iguais e têm condições de disputar qualquer espaço na sociedade.
No debate das cotas, é possível exemplificar a fragilidade do discurso liberal. Como por exemplo, o vestibular ou um concurso, nada mais é do um conjunto de regras e equações, e aqueles que estiverem melhor treinados para aqueles padrões são os que tem o melhor desempenho. Avaliações como estas, não medem conhecimento ou capacidade de aprendizagem, apenas reflete os que estão mais preparados com esse padrão de prova.
Para quem acredita na meritocracia, o fato de todos os concorrentes lutarem por uma vaga e realizarem a mesma prova, com o mesmo tempo disponível, ou seja, com regras bem estabelecidas, já garante uma igualdade de condições, sendo aqueles que obtiverem o melhor resultado são os “merecedores”.
Porém, analisarmos esse mesmo processo seletivo levando em consideração o contexto histórico e as distintas trajetórias, veremos que os vestibulares e os concursos são grandes funis sociais.
Como por exemplo, uma jovem de classe média, que estuda em uma escola particular pela manhã, faz cursinho a tarde com preparatório para o vestibular e acompanhamento psicológico. E em contrapartida, outra jovem, moradora da periferia, que estuda à noite, pois durante o dia precisa trabalhar para ajudar na renda doméstica, e com muito esforço faz um cursinho popular aos sábados, não terão as mesmas condições para realizar a prova.
A política de cotas nada mais é do que uma ação que busca diminuir o abismo entre essas duas trajetórias e garantir oportunidades para aqueles que historicamente foram excluídos, neste sentido, Holiday utiliza sua trajetória como exemplo de como é possível ascender pelo próprio mérito e estabelece isso como regra e não exceção.
Por fim, no fantástico mundo de Holiday não devemos ter memória de resistência, o caminho que deve ser exaltado é dos bandeirantes, dos senhores de engenho, de heróis nacionais como Dom Pedro II, Tiradentes, José Bonifácio e os Constitucionalistas.
O resumo da ópera então é que não podemos ser vitimistas. Não devemos cobrar políticas de reparação histórica do Estado Brasileiro, muito menos exaltar a nossa memória daqueles que se rebelaram contra o sistema colonial escravista. Para Holiday o nosso papel histórico deve se resumir emtrabalhar, trabalhar e trabalhar. Caso o indivíduo não consiga nadana vida é porque não se esforçou o suficiente, e o restante fica tudo como está. Só que não!
Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho, é jornalista, militante do movimento negro e presidente estadual do PSOL-SP.