Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia
Terça-feira, dia 23 de abril, julgamento de Lula no Superior Tribunal de Justiça. Outro episódio fundamental na cronologia da crise brasileira contemporânea. Daqui a alguns anos, quando for possível olhar para acrise com algum distanciamento, veremos esse 23 de abril como um momento chave para a compreensão do complexo cenário de instabilidade que desde 2013 fragiliza a democracia brasileira.
Refrescando a memória…
No final de 2017, o então juiz Sérgio Moro condenou o Lula no caso do triplex do Guarujá. Em janeiro de 2018, na segunda instância, o TRF 4 confirmou a condenação e aumentou a pena. Contrariando o preceito constitucional que determina a execução da pena somente após o esgotamento dos recursos, o STF autorizou a prisão de Lula em abril de 2018. Desde então, o ex-presidente está na sede da Polícia Federal em Curitiba, completamente isolado e silenciado.
De lá pra cá, muita coisa aconteceu. Nas crises, o tempo passa mais rápido: eleições, vitória de Bolsonaro e, principalmente, o fim da aliança entre o STF e a Operação Lava Jato.
Golpe de Estado sempre é trabalho de equipe. O grupo político que tomou o governo de assalto em maio de 2016 teve seu caminho pavimentado pela aliança entre o sistema de justiça e a mídia hegemônica. O objetivo era claro: desmontar o Estado e entregar ao mercado o pleno controle das riquezas nacionais. Para isso, era necessário enfraquecer o Partido dos Trabalhadores, que representa o avesso desse projeto. Aqui, a Operação Lava Jato cumpriu papel estratégico.
Nos dois anos do governo Temer, tudo aconteceu mais ou menos dentro do esperado. Reforma trabalhista, PEC dos gastos. Só faltaram a reforma da previdência, a privatização completa do pré-sal e a desvinculação do orçamento. Mas isso poderia esperar o próximo governo. Com Lula preso e incomunicável, a coligação golpista contava com a vitória nas eleições de 2018, reconduzindo o PSDB ao Palácio do Planalto. Não aconteceu bem assim. O trem começou a sair do trilho com a vitória de Bolsonaro.
Sim, leitor e leitora, a vitória de Bolsonaro desestabilizou o projeto do golpe, ao levar ao governo um grupo de aloprados de direita que não consegue ter o mínimo de responsabilidade institucional. A presença de Paulo Guedes no Ministério da Fazenda mostra que o mercado tentou se adaptar, que está tentando disciplinar o governo. A cada twittada, a cada trapalhada do clã presidencial, fica mais evidente que Bolsonaro não serve nem aos interesses dos mais ricos.
Criou-se, assim, um vazio de lideranças no coração da coligação golpista. Com o colapso do PSDB, quem comanda o núcleo político do golpe? Não é difícil responder. Diante do amadorismo do bolsonarismo, a Lava Jato tomou para si o papel que antes era exercido pelos tucanos.
A Lava Jato deixou, então, de ser um braço do PSDB para ganhar vida própria, para ter o seu próprio projeto de nação. Aconteceu, assim, o reequilíbrio de forças dentro da coligação golpista. Aqui está a explicação para a guerra total que está sendo travada entre o Supremo Tribunal Federal e a Lava Jato.
Essa nova situação política alterou o lugar ocupado por Lula na dinâmica da crise. Hoje, o ex-presidente não é mais apenas a liderança popular capaz que ameaça o projeto político que pretende fazer do mercado o agente controlador das riquezas nacionais. É também o trunfo que o STF tem na manga para confrontar seus adversários de Curitiba.
Em menos de uma semana, dois episódios evidenciam com clareza o novo papel que Lula passou a desempenhar na crise: em 18 de abril, após ser atacado pela Lava Jato e por veículos de imprensa vinculados à extrema direita, Dias Toffoli, presidente do STF, autorizou Lula a dar entrevistas na cadeia. Em 23 de abril, a quinta turma do STJ diminuiu a pena imposta a Lula, o que coloca a possibilidade da progressão penal num horizonte próximo.
A prisão de Lula é a grande vitória da Operação Lava Jato. Apenas sua libertação seria capaz de confrontar aquela que, hoje, é a mais poderosa força em atuação no ecossistema político brasileiro.
Mas a situação não é nada simples.
Não é possível, simplesmente, libertar Lula. Isso significaria assumir o que muitos já sabem: a prisão foi política e o processo esteve viciado do início ao fim, contando com a chancela do próprio STF. Ao libertar Lula, a suprema corte assumiria o crime, se tornaria réu confesso.
Por isso, a autorização para a entrevista. Por isso, a redução da pena. Soluções de compromisso que, ao mesmo tempo, tentam salvar a reputação do STF e mandam um recado para os rebeldes de Curitiba.
Provavelmente, Lula não será solto. Os generais, que estão acompanhando com atenção essa guerra total entre o STF e a Lava Jato, precisam que Lula continue preso. Lula solto, ou com acesso liberado à internet, lideraria a oposição ao governo já frágil do Capitão. Os generais ainda apoiam o Capitão. Se nenhuma reviravolta muito radical acontecer, Lula morrerá na cadeia.
Mesmo preso e silenciado há mais de um ano, Lula continua pautando a política brasileira. Hoje, Lula é a moeda de troca mais valiosa do mercado.