Desde tempos imemoriais, algumas cenas não mudam. Passados 200 mil anos desde o alvorecer da humanidade, as histórias se repetem.
Há o tacape assassino, a guilhotina, a máquina de triturar ossos da Inquisição e, hoje, neste trajeto maléfico, a toga.
É fácil entender que existe um tabuleiro nefasto no jogo do poder. E há perigo quando panelas batem, buzinas tocam e pobres se juntam inocentemente aos movimentos de ódio das classes médias frustradas.
Hoje, muitos desses estão comemorando a condenação, em um processo recheado de falhas, do presidente Lula, um retirante nordestino que ousou lutar por dignidade para os mais humildes.
Volto ao pensamento inicial. O fogo primeiro não foi repartido entre todos da aldeia. Foi usado como peça de força coercitiva.
Revolucionários eram aqueles que sabiam compartilhá-lo.
O que persiste, até os dias atuais, é essa tensão entre os estúpidos gananciosos e os solidários que se atrevem a dividir os progressos humanos.
Ledo engano do proletário que, vestido de boçal verde e amarelo, encontrará, amanhã, no centro de produção, o promotor das fuzarcas do pato.
O primeiro retornará como otário, ameaçado pelo trabalho intermitente e pela extinção de seus direitos previdenciários.
O outro, lá da sala da chefia, vai rir sarcasticamente, satisfeito pelo plano bem executado.
No corredor, ambos sorrirão. O primeiro como trouxa. O segundo como beneficiário da ignorância do subalterno.
O primeiro, esfolado desde sempre, é bem capaz de imaginar que o patrão é bondoso, pois lhe oferecerá uma sala para trabalhar até mais tarde, e assim cumprir as metas da produção.
O segundo, privilegiado de sempre, certamente festejará a mais-valia, o valor roubado que lhe permitirá gozar de luxuosas férias na cafona Miami.
O trabalhador iludido vai acreditar na meritocracia e considerar que o burguês lhe faz um bem ao negar-lhe o próprio direito.
E pensa como é bom não ter que enfrentar a PM; afinal, o Datena disse que isso é coisa de bandido.
Pensará como é bom que seus filhos, negros, pobres, periféricos, refugiados, do mato, poderão aprender sobre mérito, competitividade e sacrifício.
Até imaginará que saúde e educação devem ser mesmo pagos, pois “vagabundo não merece esmola do Estado”.
Pessoa poetou: quem quiser passar além do Bojador, tem que passar além da dor. Talvez seja este o sentido de toda essa tragédia nacional.
Talvez as pessoas precisam sofrer para valorizar o que é justo, reto e correto.
Porque a dor pode ensinar, como ensinou ao menino retirante que engraxava sapatos. E que só virou presidente para acabar com a aflição de seus iguais.
Não falei. E não vou mais falar sobre o jogo de hoje. Porque esta disputa perdemos.
Falemos da livre interpretação da tradição ioruba, aquela da vida e de um dos elementos da natureza, o fogo. Ele é o símbolo de Xangô, o orixá.
Foi aquele que fez de “fogo, trovões e raios”, instrumentos para lutar por misericórdia, justiça e lealdade. Xangô nos ensinou a tomar o fogo deles.
Agora, vale lembrar aqueles que, de posse do artefato combustível, enganaram os “doutos” da época e se tornaram referência da necessária rebeldia.
Falo de Lima Barreto, o escritor; de Carolina de Jesus, a escritora; e de Luiz Gama, advogado, um dos maiores abolicionistas do Brasil.
Cada qual usou o fogo que tinha para superar as dificuldades. Foi a fome o preconceito, no caso de Barreto; foi a fome, no caso de Carolina; foi a escravidão, no caso de Gama.
Nesta guerra do fogo, todos eles obtiveram êxito.
Se a lágrima brota, não é por tristeza. Se a mão treme, não é por medo. Se o coração palpita, não é por dor.
Se me sinto só, enquanto a pena risca o papel, não é por solidão. Se a poesia se esvaiu não é por falta de amor.
Se me tiram quase tudo, me sobra, porém, o fogo. É aquele que queima a madeira e move a locomotiva. É aquele que aquece a alma e oferece luz sobre o caminho.
Portanto, não serão três magistrados, suspeitos da toga, que vão decidir nossas vidas.
Pois para cada juiz, sim, escravocrata e burguês, sempre existirá um dos nossos, inspirado por Xangô; que tocará o coração dos injustiçados e constituirá sabedoria para o contra-ataque.
Então, fiquem todos alertas e saibam: o nosso fogo não se apagou. Ele foi recolhido para reabastecer-se de combustível.
Reanima-se a alma. Logo mais, estamos reconstituídos! Vontade de lutar!