Por Larissa Gould, do Barão de Itararé, especial para os Jornalistas Livres
PUM PUM PUM. Às 6h25 o eco das batidas no portão metálico marca o início da reintegração de posse da Ocupação José Bonifácio, 380. Os policiais militares chegam cedo. Às 5h30, parte da rua já está fechada pela CET. Faltando 5 minutos para às 6h da manhã, seis caminhões chegam em procissão e param em fila indiana em frente ao prédio.
Rosivaldo, um dos motoristas, explica que uma empresa é contratada para fazer o transporte: “Não sei para onde vão as coisas. Acho que o morador que vai indicar”. Nos caminhões, lê-se a identificação: A serviço da Justiça Eleitoral. Válido para 25.06.2015.
A mesma Justiça que deixará na rua 120 famílias e 500 pessoas. Os móveis, seu Rosivaldo não sabe, vão para um deposito. A verdade é que a maioria das famílias não tem para onde ir, muito menos para onde carregar seus pertences. Alguns vão para a casa de familiares e amigos, ficar de favor em condição temporária. Nem todos ficam para a reintegração — parte dos que conseguiram se realocar antes da data, preferiu sair do prédio antes, por medo da repressão violenta.
Mas a maioria não tem nenhuma alternativa. É o caso de Ivan Donisete, a esposa e os dois enteados: “Não sabemos para onde vamos. Talvez algum viaduto”. Ivan também não sabe se recuperará os móveis. Ajudante geral desempregado, está na ocupação desde abril: “Não temos condições de pagar aluguel”.
Carmem da Silva Ferreira, líder do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MTSC), que integra a Frente de Luta por Moradia (FLM), explica que grande parte das famílias já estão cadastradas em projetos de habitação, mas a demora e a impossibilidade de pagar aluguel fazem com que muitas acabem nas ruas, ou em ocupações. “São Paulo é refém da especulação imobiliária. Estamos aqui para lutar por um direito. O direito à moradia digna”.
Embora Dona Carmem tenha em mãos um ofício (nº 576/SEHAB G/2015) no qual a Secretaria de Habitação do Município designa um funcionário para acompanhar a reintegração, ninguém aparece. Tampouco garantem seguro aluguel ou qualquer tipo de auxílio.
Às 6h25 Dona Carmem abre o portão metálico e informa ao representante da Justiça Federal que todos sairão pacificamente.
— As crianças estão acordando. Se o senhor puder esperar que tomem o café…
— Meia hora, senhora?
— Isso, uns 40 minutos.
A verdade é que algumas daquelas pessoas nem sequer sabem onde (e se) vão almoçar. Dona Carmem sobe para o térreo e apressa os moradores:
— Todos tomem o café e arrumem as coisas.
José Patrocínio, 63 anos, era cozinheiro, mas uma patologia o impede de trabalhar. Ele não pode subir as escadas, e aguarda sentado em um banco improvisado que lhe tragam o café.
— É muita humilhação.
Às 6h45, enquanto a maioria ainda come e arruma os poucos pertences, Carmem começa a última assembleia da José Bonifácio, 380. Fica decidido que, após a saída, seguiriam rumo a porta da Secretaria do Patrimônio Público. A assembleia termina ao som das palavras de ordem “Quem Não Luta… Está Morto”, repetida em coro por todos.
Às 7h, Carmem sai do prédio, à frente de todos “Por gentileza, cadê o oficial? Quero lhe entregar o prédio”.
Enquanto as famílias saem em marcha, munidos de bandeiras e faixas, Carmem proclama “Esse é o povo que está indo para a rua por falta de políticas públicas de moradia”. Eles seguem atrás de uma grande faixa com os dizeres: Contra a Corrupção Imobiliária.
Enquanto eles saem, o oficial do TRE (Tribunal Regional Eleitoral), atual proprietário do prédio, entra para fazer a vistoria. Para trás ficam os móveis. Nas paredes, os cartazes com as regras de convivência ainda ficam colados, como que à espera que os moradores voltem antes da meia noite.
José Bonifácio, 380: 74 dias de resistência
Na madrugada do dia 12 para o dia 13 de abril, cerca de 200 pessoas ocuparam, de baixo de bombas de gás e ameaças de tiros, o prédio da Rua José Bonifácio, nº 380.
No dia seguinte, um homem de terno, um mecânico e mais 11 motoristas sem nenhuma identificação, se apresentaram como funcionários do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. E informaram que o prédio estava alugado pelo TRE, que o usava para o estacionamento de 11 veículos.
Uma semana depois que estavam alojados, cortaram a energia e água das famílias por duas semanas. Mas eles resistiram. Resistiam também a uma ameaça de reintegração ilegítima do TRE, no dia 28 de abril.
Quando a reintegração oficial chegou, fruto de processo que está na 21ª Vara Federal, as famílias já estavam divididas em apartamentos individuais. A cozinha comunitária havia sido desmontada, mas não o convívio.
Letícia de Abreu tem 19 anos, veio do interior para a Capital há 2 anos para tentar estudar, ainda não conseguiu, atualmente trabalha como atendente. Para ela o processo da reintegração é doloroso, principalmente por separar as famílias já habituadas ao convívio diário: “Nós nos acostumamos com as crianças, com todos”. Se ela tem medo de morar em ocupação? “É a luta né, temos que lutar por nossos direitos”, e dá de ombros.
Um prédio sem uso social
O prédio, com 8 pavimentos e subsolo, divididos em 3 lojas e 7 salões, foi tomado pela União depois que a proprietária Moinho Curitibano S/A a penhorou para a Companhia Internacional de Seguros em 2008, por R$732.868,90. Afundado em dividas e abandonado há 5 anos, o prédio da década de 1970 acabou sob a responsabilidade da Secretária de Patrimônio da União. De acordo com Carmem, para que o prédio passasse das mãos desse órgão para o TRE deveria ter passado pelo conselho da entidade. “Passou de um órgão para outro por meio de uma carta-contrato”.
E finaliza “O prédio está abandonado há 5 anos, sem função social, e deve ser usado para a moradia. Nós lutaremos por isso”.