Foto: Leandro Taques
“Madalena, Madalena, você é meu bem querer. Eu vou falar pra todo mundo, vou falar pra todo mundo, que eu só quero é você”, cantarolavam seis pessoas em um palco improvisado no meio na Praça Rui Barbosa, região central de Curitiba.
Com direito a microfone, tamborim e uma plateia bastante animada. No mesmo cenário, bancos de praça ocupados por gente de todo o estilo, alguns com cobertores nas costas, outros com mochila rasgadas compondo o look do dia.
Mais adiante uma confusão. Um distraído tropeça em outro. “Abre o olho que te dou um na cara”, disse um senhor idoso de boné azul. Depois, voltou a dançar. Na primeira fila do “show” outros sorridentes. Dois deles dividiam um uísque cowboy. O relógio marcava 13h15. Antes do gole e da cara feia o copo é erguido e as cabeças balançam: o dia é especial. No mais, Kombis espalhadas — todas da Fundação de Ação Social (FAS) -, o consultório médico móvel da Prefeitura de Curitiba e mesas de ping-pong.
Dia de festa? Não, dia de luta.
Foto: Isabella Lanave/R.U.A Foto Coletivo
Nesta quarta-feira (19) foi o Dia de Luta da População em Situação de Rua, data que marca os onze anos do Massacre da Sé, em São Paulo, quando sete moradores de rua foram brutalmente assassinados. A data também registra os dez anos do Movimento Nacional de População de Rua. “Se nós estamos comemorando? Não se trata de comemoração. Queremos dignidade e faz dez anos que estamos conquistando espaço. Já me mataram muitas vezes, agora eu quero é viver”, explica o líder do movimento em Curitiba, Fayçal Mohamed.
Fayçal tem 56 anos, 25 deles vividos na rua. Carioca, disse que foi adotado aos cinco anos e morou na Palestina. Na volta ao Brasil estudou Direito no Rio de Janeiro. Mas, segundo ele, foi engolido pelo sistema. Foi preso em 1978 por um assalto a banco. Queria participar da revolução no país e precisava de dinheiro para comprar armamentos. “Mas se faz revolução só pegando em armas? É isso mesmo?”, perguntei. Fez que não com a cabeça e a reposta é digna de aplausos: “Hoje a revolução é pela inteligência e pela paciência”, disse.
Sobre as pessoas em situação de rua ele explica: “Precisamos estar mais incluídos nas políticas públicas, o bonde anda e continuamos na mesma situação”. Quando pergunto sobre os abrigos municipais, que geralmente são a saída para muitos dos moradores de rua, principalmente quando as temperaturas caem em Curitiba, ele responde: “Eu exerço o meu direito de ir e vir; é uma escolha de cada um, quem pode me questionar? Minha casa é o mundo e minha família tá aqui. O problema tá no mundo, não na rua. Quem está nessa, como eu, é um reflexo do que não deu certo”, explica.
Números
Em Curitiba, são sete acolhimentos oficiais e mais seis conveniados. No total, são mais de 820 vagas de pernoite todos os dias, segundo a Fundação de Ação Social (FAS). Além disso, durante a Operação Inverno, quando as temperaturas ficam rigorosas, o número de vagas é ampliado. Fora isso, o município conta com seis Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros POP), que fazem os atendimentos durante o dia e encaminham os moradores para outros serviços da Prefeitura, caso necessário.
Para o assessor de Direitos Humanos da prefeitura de Curitiba, Igo Martini, um dos grandes desafios, muito debatido entre a equipe de Direitos Humanos, é como tornar os acolhimentos mais interessantes do que rua. “É um desafio a ser solucionado juntamente com a sociedade civil. Queremos acolhimentos confortáveis, seguros, com regras estabelecidas, mas antes dialogadas”, explica.
Além disso, Martini esclarece que a convivência dentro dos acolhimentos também é uma questão delicada. “É como viver em uma república, com divisões de tarefas, responsabilidades e diferentes comportamentos. Respeito é o segredo da receita, é preciso respeito às diversidades humanas, escutar e construir, e é nisto que toda a gestão está investindo”.
Dentro da pauta do Movimento Nacional de População de Rua está também a luta pela visibilidade e pela inclusão dos moradores de rua. “Não culpo quem passa por nós e aumente o passo, com medo. Vivemos em um lugar difícil mesmo, tem muita violência. Mas o fato é que não somos invisíveis”, afirma o líder do movimento de moradores de rua em Curitiba.
Um conselho para a nova geração? “Todos nascemos de um ato de amor. Então porque quando grandes não cultivamos ele? Meu conselho é doe-se ao mundo. E mano, não faz o que eu fiz. Faz o que tem que fazer, que é mudar essa porra toda”. Grande Fayçal.
Rosemir Ananias, de 46 anos, também estava presente no Dia de Luta. O Zumba, como é conhecido pela família das redondezas da Praça Ouvidor Pardinho, é morador de rua desde os oito anos. Profissão? Cuidador de carros. Contou que não podia faltar neste dia de luta porque “não queria deixar os irmãos que morreram passar batido”. Curitibano, tem dois filhos, um de 20 e outro de 26 anos, mas não moram com ele. Por que escolheu a rua? “Ninguém escolhe a rua. Eu vim porque as coisas sempre foram difíceis”, desabafa com os olhos marejados. Um sonho? “Reencontrar minha mãe, faz dezessete anos que não a vejo. Já pensei em mandar uma carta, eu sei ler e escrever. Mas nunca fiz”.
Já era perto das 20h. A Rui Barbosa estava escura. Enquanto falava com o Zumba uma batida policial na praça. “O pessoal usando drogas, bebendo, faz parte da vida. Não é todo mundo que usa, mas é fácil conseguir”, me explica.
Um carrinheiro se aproxima da nossa roda de conversa. Todos fizemos um agrado no cachorro que está com ele. É o Lailson Pereira, de 37 anos. Ele nos pergunta se “tá rolando uns benefícios nesse ato de hoje”. “Já teve comida, vai ter cinema. Amanhã vai ter lugar para cortar o cabelo”, respondem.
Áureo Bruno de Lima, de 28 anos, desde os 15 na rua, também tem um sonho. “Aqui tem gente que trabalha de pedreiro, serviço de frete, mecânico. E se a gente montasse uma cooperativa, uma microempresa para moradores de rua? As pessoas nós já temos. Acho que vamos organizar um sindicato”, disse.
Sete policias militares observavam tudo de longe. “Por enquanto nenhuma ocorrência, mas a droga tá correndo solta ali. O pessoal que volta pra casa do trabalho, que precisa pegar o ônibus aqui na praça, está reclamando”, me disse um deles em off.
Me despeço com um nó na garganta mas uma esperança extraordinária. Pergunto a Fayçal onde ele vai dormir hoje. “Eu moro embaixo do meu boné”, e sorri. A luta continua.
A vigília dos moradores de rua durou 24 horas, desde as 9h de ontem até a manhã de hoje (20). Segundo o Movimento, o Dia de Luta aconteceu em 12 estados brasileiros.