Por Jessica de Almeida, para os Jornalistas Livres
“Se pensarmos no ser humano como um ser que é dotado de desejo e curiosidade e que busca aliviar tensões pela via do prazer, é mais do que justo que ele utilize essas substâncias em determinados contextos para se sentir bem, compartilhar momentos e é isso que o espaço de festa é, um espaço de amor, de busca, e a nossa ideia é como deixar o espaço de confraternização mais seguro e saudável para as pessoas que estão ali compartilhando. O recorte aqui será a redução de danos em contextos de festa”, introduz uma mulher ruiva e de vestido longo. A partir dali, a discussão teve como norte a ética e o respeito sobre escolha de consumir substâncias, reflexões sobre possíveis riscos e estratégias de autocuidado, cuidado com o outro e a sociedade.
A redução de danos tem como base um conjunto de estratégias cuidadosas que refletem sobre as vulnerabilidades em relação ao uso de drogas. Considera-se que as pessoas assumam a responsabilidade sobre suas escolhas, mas sempre prezando o mundo e os outros envolvidos. O conceito de redução de danos não é novo e os efeitos da aplicação dessas estratégias são célebres, como a iniciativa de troca de seringas para usuários de drogas injetáveis na Holanda, em 1984. A medida reduziu intensamente o contágio por doenças como a hepatite B e a propagação do vírus HIV. É facilmente acessível, hoje, materiais sobre a redução de danos enquanto política pública e tratamento efetivo de dependentes químicos a partir do uso de diversas outras substâncias. Mas o diálogo sobre redução de danos cruza, em vários momentos, com as discussões sobre a fronteira entre os usos recreativo, problemático e medicinal de drogas, a inclusão da população em situação de rua, a luta antimanicomial e práticas de sexo seguro.
A plataforma brasileira de política de drogas é majoritariamente embasada no paradigma proibicionista, responsável pelo distanciamento da relação uso de drogas-controle sanitário (nos processos de produção, armazenamento e distribuição), tornando altamente duvidosa a composição de substâncias psicoativas, ampliando o risco de consumi-las e mantendo seus efeitos no campo do desconhecido.
Surgida no início do século XX e pautada na ideia de que algumas substâncias devam ser inacessíveis para a sociedade. Os alvos de perseguição se tornam, então, essas substâncias específicas; as pessoas que a produzem, transportam e vendem; o próprio uso. Enquanto isso, outras substâncias são permitidas ou mantidas no regime médico. No caso da redução de danos, o impacto é no tratamento. Domiciano Siqueira, redutor de danos e presidente da Associação de Redução de Danos de Minas Gerais, destaca que “o uso de drogas é, sim, presente nas organizações sociais desde os tempos mais remotos, mas ninguém fala que ele [o uso] se tornou um problema há apenas 120 anos, com o proibicionismo”.
Uma das proposições do paradigma proibicionista é que a única forma de reduzir o dano ou tratar uma pessoa em situação de dependência é cessar o consumo. Siqueira explica que a meta das ações de redução não é a abstinência e que há diversas formas de lidar com a questão, incusive a abstinência, ideal para alguns casos, mas não para todos. E é exatamente a totalidade que a política deve abarcar.
Nem todos os envolvidos na contestação do proibicionismo tem uma direção clara sobre como deve ser a política de drogas ideal – já que nada além do que está posto foi tentado em grande escala – mas todos compartilham o diagnóstico de que este modelo é um fracasso, não só do ponto de vista da preservação dos direitos humanos, mas na garantia da promoção da saúde pública e da redução de danos. O propósito é mudar a discussão no Brasil de patamar e declarar oficialmente o fracasso da guerra às drogas.
AÇÕES LOCAIS
Já passa de duas de manhã e o celular de Frederico vibra. A demanda vem de uma pessoa que fez uso drogas e se viu diante de uma experiência difícil. No Whatsapp Frederico recomenda, primeiramente, o simples: tome um banho. Minutos depois, o resultado: “Tomei banho e fiquei de boa. ‘Brigadão aí”. É com um quê de orgulho que o redutor de danos do Coletivo Egrégora conta uma das ocorrências cotidianamente comuns de um ofício voltado para a boa “viagem” de alguém. “O tráfico é o maior produtor de danos individuais e sociais”, emenda.
O emprego de reagentes químicos é a ação possível nos microespaços. Para usá-los, a recomendação é raspar levemente o comprimido ou fazer um recorte de ⅛ de um blotter – o “quadrado” de LSD – e, ao pingar apenas uma gota do reagente químico (armazenado em um frasco), a cor da reação identificará basicamente os componentes. O testador mais comum é o Marquis, usado frequentemente para testar comprimidos. Se uma gota do Marquis sobre a “bala” trouxer a cor roxa, ali contém MD (methedrina), mas, segundo Frederico, “pode ser ‘MD alguma coisa’, ou trinta coisas”, alerta.
A comunidade de usuários de drogas em contexto de festas cada vez mais se preocupa com a redução de danos. “As pessoas tem se preocupado mais em perguntar, repassar informações para os amigos e há cada vez mais estandes de testagem em festas”, explica o redutor de riscos. Belo Horizonte está sendo incipiente nesse sentido. Um dos exemplos é o Festival Pulsar, festival de cultura alternativa e psicodélica com duração de cinco dias e circulação de cerca de três mil pessoas de todo o país. Neste ano o evento ocorreu em Ipoema, distrito de Itabira, mais especificamente na Cachoeira Alta. Frederico conta que desde a segunda edição a produção traz um coletivo de fora para fazer testagens e acompanhamento com redução de danos.
RECORTE DE CLASSE
Considerando a colossal diversidade de drogas e modos de consumo, é urgente o reconhecimento de que as políticas de drogas não podem, nem sequer devem, se dissolver de um entendimento amplo de sociedade. Ao abordar o uso de substâncias psicoativas, o recorte de classe deve ser lembrado, uma vez que “problemas” relacionados a drogas são concentradamente territorializados, aqueles considerados agentes desse problema tem classe e cor de pele bem definidas e a cidadania afetada. A abordagem foi lembrada pelo médico epidemiologista Mauro Cardoso.
“A questão das drogas não se separa da questão de classe porque o problema das drogas é um problema do pobre. O rico não tem problema com droga. A gente pode falar que o consumidor de crack é um problema, mas há silêncio sobre o usuário da cocaína que é transportada por helicóptero”, lembrou e emendou: “A questão do crack é uma discussão em campo inimigo. A substância [o crack] é a pior situação do uso de drogas que eu conheço na realidade brasileira e quando começamos a discutir drogas a só pelo crack, estamos destacando o pior exemplo da situação, sendo que a prevalência de outras substâncias é mais comum”.
Liberação de conteúdo inconsciente, recuperação de memórias, reflexão introspectiva, regressão – às vezes até o nascimento, insights religiosos psicofilosóficos são alguns dos efeitos de drogas psicoativas citadas por Cardoso. “Sintomas que, pelo menos para essa classe de drogas, praticamente remetem à terapia e esses efeitos dão a ideia de que você pode explorar tudo isso do ponto de vista da psicoterapia além da questão da escuta, como é feito”, opinou.
EXERCÍCIO DE DIREITO
A transformação da política de drogas enquanto questão social propõe ampliar os canais de comunicação e decisão entre os envolvidos na efetivação do direito à saúde previsto na Constituição de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. O cenário proibicionista brasileiro representa a necessidade de trazer aperfeiçoamento e melhor entendimento das contribuições possíveis de um pensamento humano sobre drogas.