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Geledés: 30 anos de História!

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Poema do desterro

Os dias de abril vão acabando com a gente

17 em 2016

04 em 2018

07 em 2018

Dias que lembram o abaixo de tudo a que nos relegam.

Para que gargalhem as hienas, abutres  e vermes

Não aguento mais o dia seguinte

Não tenho mais coração

Arrancaram-no com o Power-point  da desfaçatez

As balas do ódio

O  jejum manipulador de mentes

A colheita das provas necessárias  à condenação política

Os twittes dos milicos ameaçadores em cadeia nacional

Não, não me peçam um coração para refazer o mundo

Só tenho flecha

Machado

Alforje e cabaça

Chamem os Orixás  à Terra

À guerra e seus infindáveis começos

 

Após saudar o tempo, esse tempo tumultuado em que vivemos e que nos é tão denso, tão pesado, saúdo Geledés-Instituto da Mulher Negra, seu nome e sobrenome, neste aniversário de três décadas.  Reverencio os processos transformadores da vida  das pessoas negras no Brasil, protagonizados por esta organização nos últimos 30 anos. Agradeço, particularmente, às transformações  ensejadas na minha vida, quando me acolheu, muito menina, ao 20 anos, no momento fundador, durante as sessões do Tribunal Winnie Mandela.

A cidade que hospedava o evento, a São Paulo de 1988, cuja imagem vendida era de um lugar cinza tornou-se o mais belo  horizonte para mais uma migrante que eu viria a ser em 1991, em busca da vida na grande metrópole.

Desejo saúde e vida longa ao Geledés – Instituto da Mulher Negra. Agradeço por terem me possibilitado fazer parte dessa história durante 13 anos. Agora que o tempo de minha saída da organização já ultrapassa o tempo que lá permaneci, a gradeço por esse convite generoso para que eu aqui esteja, neste lugar de honra, celebrando seus 30 anos. Com o coração em festa, agradeço. Nzaambi ye kwaatesa!

Procurarei me ater ao tempo proposto para esta intervenção, mas, de antemão, peço desculpas se o extrapolar um pouquinho, peço vênia pela condição honrosa de ex-presidenta desta organização, 8 anos antes de a valorosa combatente Dilma Roussef utilizar esse termo para referir-se ao seu cargo de legítima presidenta eleita.

Antes de um olhar mais detido sobre o tema dessa roda de conversa, as juventudes negras e os processos de educação, passearei por  nove pontos da história de Geledés e de seu legado para melhor contextualizá-lo. Mais do que nunca, o contexto é importante para que entendamos o tempo em que vivemos e para que possamos nos movimentar por ele. Por mim, passaria a tarde aqui discutindo o contexto, o tempo histórico, buscando convergir para nossa história particular várias pontas do novelo.

O primeiro ponto, o mais relevante de todos é o nome. Pelo nome nos apresentamos ao mundo, dizemos quem somos e de onde viemos, a que tradição pertencemos. O nome é Geledés, um nome ioruba; o sobrenome, Instituto da Mulher Negra. Um nome que nos dizia àquela época, 18 anos antes de o encontro da CIAD na Salvador de 2006  instituir a diáspora africana como a 6ª região de África, Geledés nos dizia: “somos africanas e estamos em diáspora. Descendemos de mães ancestrais. Somos férteis e parideiras. Geramos a vida e a colocamos no mundo para andar, para fazer girar a roda. Não tememos o confronto ou a guerra. Disputamos os lugares de poder estabelecido, ao mesmo tempo em que construímos nossos próprios lugares de poder e essa concomitância é fundamental”. Tencionar o que está posto, abalar as estruturas da casa grande sempre foram prerrogativas dessas senhoras, assim as leio.

Segundo ponto: ao criar Geledés-Instituto da Mulher Negra, suas fundadoras disseram 20 anos antes de Barack Obama, “sim, nós podemos!” Podemos inventar um mundo em que as mulheres negras sejam senhoras de seu tempo e de sua história. E este ato inaugural impulsionou e fortaleceu organizações de mulheres negras por todo o país, não só inspirou, para usar uma palavrinha da moda, mas efetivamente apoiou, dialogou, estabeleceu pontes, guarneceu processos. Geledés se apresentou como uma ideia; uma ideia iansânica de transformação; fez isso 30 anos antes de o Presidente Lula se definir como uma ideia que não morrerá.

Terceiro ponto, Geledés posicionou a questão racial no campo dos Direitos Humanos. Sim, era necessário afirmar o óbvio: viver sem racismo é um direito humano, básico, fundamental.

Quarto ponto, muito antes de a comunicação se tornar um imperativo da contemporaneidade para as organizações negras, Geledés criou e desenvolveu um programa de comunicação.

Quinto ponto, Geledés estabeleceu relação respeitosa com a juventude negra e uma de suas manifestações culturais urbanas mais portentodas, o movimento Hip Hop. O projeto Rappers de Geledés, coordenado por Solimar Carneiro, provavelmente foi o responsável por, no início dos anos 1990, reivindicar e conseguir espaços para o Hip Hop como manifestação cultural, nos grandes jornais impressos de São Paulo. Pesquisem, procurem saber.  Uma geração de jovens negros formados pelo Projeto Rappers, hoje respeitáveis quarentões, consolidaram-se como músicos, artistas visuais e da dança, performadores, educadores, produtores culturais, agentes sociais com atuação em conselhos tutelares, abrigos e outros espaços de proteção e garantia de direitos para crianças, adolescentes e jovens. Procurem saber. O projeto Rappers editou a revista Pode crê!, inspiração (de novo, a palavrinha da moda) para a revista Raça Brasil, de 1996. Procurem saber, leiam o editorial do primeiro número da Raça. O projeto Rappers realizou um festival de Break na São Bento, a estação São Bento de metrô. Local de (re) existência da moçada, em que se precisava enfrentar a polícia todos os sábados. Geledés inverteu a lógica e ao realizar o festival, solicitou ao poder público, proteção para que aquelas meninas e meninos fizessem sua festa num lugar público. O projeto rappers desenvolveu um processo intenso de formação política que apoiou a constituição de jovens lideranças negras consequentes e com mais poder de desestabilização do sistema. Muitas dessas pessoas continuam na cena pública dando o seu recado.

Sexto ponto, Geledés e as ações afirmativas de promoção da igualdade racial. Qualquer estudo sério e abrangente que se faça sobre as ações afirmativas para a população negra no Brasil, depois de escrutinar as políticas de governo seguintes à realização da 3ª Conferência Mundial Contra o racismo em Durban, cidade da África do Sul, em 2001, precisa se debruçar sobre as parcerias empresa / sociedade civil, protagonizadas por Geledés – Instituto da Mulher Negra, a exemplo da criação do projeto Geração XXI. Geledés, mais uma vez, no período contemporâneo, esteve na ponta-de-lança de processos fundamentais de interferência nas condições seculares de subordinação da população negra, pois esse é o significado das ações afirmativas no Brasil.

Sétimo ponto, participação efetiva na internacionalização da temática racial brasileira, em prosseguimento ao trabalho isolado feito por Lélia Gonzales e Abdias Nascimento nos 1970 e 1980. Isso funciona muito no Brasil, mexer com sua imagem no exterior, basta vermos as preocupações do ministro do Supremo Gilmar Mendes com os efeitos negativos que a prisão do presidente Lula causará na imagem do país no exterior.

Oitavo ponto, a coragem de viver hecatombes internas, rompimentos, desligamentos, rearticulações, como forma de enfrentar os paradoxos e de conviver com eles. Lembremos que, paradoxo, na tradição africana, não é algo necessariamente a ser superado, como as contradições marxistas o são, mas algo com o qual aprendemos a conviver, porque o mundo não é dual. Também merece destaque a fertilidade expressa em tudo aquilo que brotou a partir dos rompimentos e transformações institucionais.

Nono ponto, a constituição do Portal Geledés. No início dos anos 1990, posicionando-se frente à velha dicotomia do Movimento Negro dos anos 1980, dedicar-se à formação da massa ou à formação de quadros, Geledés se definia como uma organização formadora de quadros, vocacionada para preparar mulheres para atuarem politicamente, para a intervenção em espaços decisórios. E essa preparação, na prática, extrapolava em muito os limites do Instituto Geledés. Paralelamente, o diálogo lato senso com a população negra também esteve presente na ação institucional. Esse braço do Polvo-Geledés atingiu seu ápice com o portal de notícias, fonte avalizada para saber o que acontece na diáspora negra e que tem formado inúmeras pessoas, tanto as anônimas, quanto aquelas reconhecidas e badaladas. Como leitora, às vezes, em certos temas, sinto falta de pensamentos mais autorais da instituição, assinados por ela, e também de uma diversidade maior de autorias que pudesse iluminar aspectos diversificados de um campo temático.

Certamente, muita coisa ficou de fora desse pequeno roteiro, como exemplo, a atuação de Geledés na área de prevenção e combate à violência contra a mulher, que atinge diretamente as mulheres negras, aquelas que mais morrem em situações violentas. Contudo, por uma questão de fundamento, me restringirei mesmo aos nove pontos que anunciei no início do texto, para exemplificar como Geledés tem papel central nas conquistas da comunidade negra brasileira nas últimas décadas.

A imprensa divulgou ontem, dia 10 de abril de 2018, que o IBGE, a partir da análise de microdados da PNAD aferiu que a pobreza extrema aumentou  11% e atinge 14,8 milhões de pessoas no pais. Mais um milhão e meio de pessoas miseráveis em relação a 2016.  São efeitos visíveis, palpáveis, tropeçamos neles nas ruas das grandes cidades, depois do golpe parlamentar, midiático e jurídico de abril de 2016. Isso nos atinge diretamente. Somos nós esses novos miseráveis. São os filhos e filhas dessas pessoas que sequer farão ensino fundamental e médio que poderia habilitá-los a concorrer  a cotas raciais e sociais nas universidades públicas, que, em breve podem deixar de existir e sequer teremos mais instituições de ensino nas quais discutir cotas. O exemplo da UERJ grita o sucateamento e a derrocada planejados para justificar a privatização do ensino superior. A reitora da UnB, Márcia Abraão Moura, denunciou de maneira enfática no mês de março que a UnB chegará ao segundo semestre sem dinheiro para funcionar. O quadro da falta de recursos das universidades públicas federais é desalentador e piora a cada mês: falta dinheiro para consertar equipamentos, para pagar funcionários terceirizados, para bolsas de estudos, para materiais de higiene e limpeza. As primeiras ações do desgoverno Temer foram no sentido de eliminar a condição de permanência de pessoas pobres nas universidades públicas, cortando as bolsas de manutenção e, mais recentemente, as de iniciação científica. Também atacou as áreas de excelência em que começávamos a entrar, como o programa Ciências sem Fronteiras. Estudantes de ensino médio sonhavam com a participação no programa e ele foi inviabilizado até o encerramento. O desmonte é articulado, atinge todos os níveis de organização social. Enquanto nos manifestamos contra a prisão de Lula, nossa água é privatizada e vota-se por eleição indireta em caso de vacância na presidência da República. Prepara-se o terreno para derrubar o temeroso e para não termos eleições diretas. Nossa ação também precisa de articulação em vários campos junto com o chamado campo identitário.

Ora, as conquista das cotas raciais na graduação, a entrada, por concurso de muitos professores negros titulados no período do governo Lula-Dilma, principalmente nas mais de 20 universidades públicas e mais de cem ETECs construídas por eles no interior do Brasil, e mais recentemente as cotas na pós-graduação e mesmo em concursos para docência, permitiram-nos dizer que a universidade é nossa! Entretanto, se não brigarmos por elas, essas instituições deixarão de existir e a discussão de ações afirmativas em universidades públicas não fará mais sentido, simplesmente porque não teremos mais universidades públicas. Para isso o golpe nos encaminha. O desgoverno Temer já fechou a ETEC de Sobradinho, em Brasília. Será a primeira de muitas, se não atentarmos para como esse estado de coisas nos devora, nos aniquila.  E nós, negros, somos os principais atingidos nos processos de acirramento de perda de direitos, de aumento da pobreza e da miséria, bem como de criminalização dos pobres e miseráveis; os que mais sofreremos com as articulações entre governo e planos privados de saúde para o fim do SUS. Desse modo, se as chamadas lutas identidárias que têm sido protagonizadas pelas juventudes negras não se articularem com os contextos maiores que nos oprimem, seremos tratoradas pelos que detêm o poder desde sempre, mesmo que estejamos com o discurso da autoestima e do empoderamento na ponta da língua.   Então, o primeiro ponto fulcral me parece ser a articulação das demandas das juventudes negras aos contextos maiores, numa alquimia que preserve nossas vidas e nos fortaleça.

O segundo ponto me parece ser que, uma vez dentro, das universidades, por exemplo, é preciso compreender as mutações do racismo e definir estratégias para enfrenta-las a partir de uma perspectiva ampla, profunda e abrangente da operacionalidade do racismo. Não existe espaço para ilusões; continuarão existindo professores racistas, em muitas situações apresentaremos defasagem de conteúdo em função de um ensino médio deficitário e isso deve ser constatação inicial que engendre a busca efetiva de soluções. É mister não esquecer a lição de Steve Biko, estamos por nossa própria conta.

O mais, conversamos no debate, quando essa audiência tão qualificada também expuser suas ideias. Geledés é uma ideia. Lula Livre é uma ideia. São expressões de projetos de poder.

Vamos em frente, Wakanda, forever!

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LUTA ANTIRRACISTA PRECISA ACERTAR A ‘CABECINHA’ DE WILSON WITZEL

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Há anos a tática sobre segurança pública no Rio se concentra em operações espetaculares que resultam, de tempos em tempos, em um derramamento de sangue, com direito a traficantes, moradores de comunidades e policiais mortos.

O roteiro todos já conhecem. Unem-se policiais de diversos batalhões, eles invadem determinada localidade com poder de fogo muito superior, e terminam matando principalmente a ponta da cadeia do tráfico, a base da estrutura das facções, enquanto seus líderes comandam tudo de longe ou de dentro dos presídios, e no dia seguinte um novo comando paralelo se instala no mesmo lugar.

É uma máquina de moer gente. Mata-se loucamente, e no dia seguinte é como se nada tivesse mudado.

A situação é esta porque em certos locais do Rio a única chance de um jovem criado em situação de miséria comprar um tênis da moda é segurando uma arma que ele não sabe atirar direito. A parcela da população favelada que sobra do espaço da cidadania, por motivos que vão desde abandono familiar, déficit educacional ou imposição de terceiros, é seduzida por uma rede comércio ilegal que promete dignidade no contexto da extrema exclusão e sacrifica a vida destas pessoas como copos descartáveis.

São quase sempre jovens negros, no tráfico, na polícia ou nas casas vizinhas ao confronto entre eles. E suas mortes não comovem nem de perto tanto quanto o cãozinho morto na porta do Carrefour.

É assim desde que a abolição foi seguida pela recusa em absorver os negros no mercado formal de trabalho e a imigração de estrangeiros brancos para substituí-los. A pobreza se perpetuou a partir da negligência em gerar oportunidades e condições de vida saudável, e nela a criminalidade floresceu desde sempre.

Se soubesse da história do Rio, Wilson Witzel, o novo governador eleito no estado, que repete a palavra matar o tempo todo para agradar os ouvidos de uma classe média tanto preocupada com roubos quanto é racista, adepta de praias segregadas, odienta do funk, do samba e de pagode, faria algo para interromper a espiral macabra que corrói sua sociedade por dentro.

Alteraria o atraso social com políticas públicas inteligentes de ensino integral, cooperativas de trabalho, reforma do sistema penitenciário, investimento em tecnologia da informação e preparo de suas polícias. Enfrentaria o racismo com mais educação e cultura, e não faria coro com privilegiados que gostam de se remeter aos negros com termos tipicamente usados para animais, como “abate”.

Em 2010, o Rio viu Sérgio Cabral vencer Fernando Gabeira aproveitando-se, em parte, da crença de que o adversário era veado e maconheiro. Dali seguiu-se uma bandalheira que resultou, nos últimos anos, no colapso total das contas públicas. Já não há mais espaço de tempo para novos demagogos. E nem a população suporta mais mentiras no lugar de competência. Algo melhor que matar precisa vir à cabeça do novo governador. E eu sugiro que superar o seu racismo entranhado seja o melhor começo.

Por: Rodrigo Veloso – Colaborador dos Jornalistas Livres morador do Rio do Janeiro formado em Relações Internações

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OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

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Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke

 

O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.

Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.

Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.

Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.

Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?

A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.

Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.

Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.

Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.

Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.

 

Rodrigo Janot

Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.

Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.

26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.

A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.

Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.

Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.

Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.

Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.

Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?

Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.

 

Rogério Favreto

Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.

“Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.

Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.

Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.

Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.

Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.

Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

 

Marco Aurélio Mello

Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.

1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.

É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.

Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.

Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.

Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.

2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.

Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.

A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.

Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

 

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Armai-vos uns aos outros

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Por José Barbosa Junior
O presidente da República Fundamentalista de Vera Cruz (antigo Brasil – porque agora nada pode ser vermelho), decretou nesta terça-feira algumas flexibilizações na Lei que regulamentava a posse de armas, o que, na prática, significa que ele liberou geral. A proposta anterior, de no máximo duas armas por cidadão, passou para quatro armas, sendo liberadas outras mais, conforme a necessidade apresentada pelo futuro portador.
Em resumo, a barbárie está liberada oficialmente em nosso país. “Cidadãos de bem” agora vão poder, finalmente, matar os bandidos que lhe atormentam a vida. Por bandidos leia-se pobres, pretos, pardos e párias, que de já tão coisificados, tornaram-se sem valor e pessoalidade em sua existência.
O que mais me choca, porém, é que Bolsonaro foi eleito e é apoiado, inclusive e principalmente nesta questão, por gente que se afirma cristã. Isso mesmo! Gente que diz seguir aquele nazareno marginal que afirmou que “bem-aventurados são os pacificadores, pois eles serão chamados filhos de Deus”, aliás o mesmo que afirmou que “quem vive pela espada, morrerá pela espada”.
Parece estranho. E é.
Mais estranho ainda porque em toda a campanha do atual presidente, ele fez questão de repetir o versículo que diz “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
A verdade é que a liberação de armas só gerará mais violência num país que respira violência.
A verdade é que mais mulheres serão vítimas de feminicídio, já que seus maridos machões agora poderão ter suas armas para suprirem seus outros fracassos.
A verdade é que mais LGBT’s morrerão nas mãos de homofóbicos que disfarçam seus preconceitos em discursos machistas e religiosos.
A verdade é que agora fica mais fácil planejar o suicídio, endêmico numa sociedade cada vez mais doente e adoecedora, refém de um sistema que empurra pessoas à depressão (sem contar as depressões que independem de fatores externos) e num país onde adolescentes cada vez mais se matam por conta de bullying e outras coisas mais. Ah! E sem falar no alto índice de suicídio entre pastores, tema cada vez mais recorrente nos últimos anos.
A verdade é que as brigas de trânsito, de bares, de baladas agora serão resolvidas na base do “quem saca primeiro”, porque com essa liberação a ideia de que o outro possa estar armado será sempre evidente e, entre ele e eu, é melhor que eu saque antes dele.
A verdade é que temos um governo violento, que ampara e incita à violência, que não esconde o prazer na tortura e na morte dos inimigos. Isso legitima e legitimará a barbárie!
Em nome da verdade… no governo mais mentiroso que já temos! E eu aguardo o dia da liberdade! Ela virá… mais cedo ou mais tarde!

*Teólogo e Pastor da Comunidade Batista do Caminho em Belo Horizonte.

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