Por Fernando Castilho*, do Blog Análise e Opinião, colaboração para osJornalistas Livres
Charge: Ziraldo
Sua última entrevista ocorreu no programa Roda Viva de 26 de outubro de 2015, quando disparou: “Tinha que ter uma renúncia com grandeza. A presidente Dilma não pode desconhecer o que nós conhecemos, que a economia está em uma situação desesperadora, que há uma crise política. Ela tinha que dizer: ‘Eu saio, eu renuncio, mas eu quero que o Congresso aprove isso, isso e isso’”, sugeriu.
Esse é o atual Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil que deixou seu segundo mandato com 23% de aprovação, usando e abusando de demagogia pura, uma vez que sabe que, no fim de seu mandato, só para citar apenas um índice econômico, as reservas do país eram de US$ 38 bilhões e atualmente, no governo Dilma, são de US$ 378 bilhões, dez vezes mais.
Ele quer uma renúncia de Dilma “com grandeza”. Mesmo que ao fim da entrevista afirme que a presidente é uma pessoa honesta. Como explicar isso? Grandeza ele não teve ao ter batido às portas do FMI e quebrado o país duas vezes. E mesmo assim não renunciou.
FHC também falou sobre o episódio da suposta compra de votos citada mais abaixo no texto, para aprovação da reeleição, durante o primeiro mandato de seu governo: “Se houve compra, não foi minha, não foi do PSDB. Se houve compra, foi coisa deles. Não duvido. Mas condenamos”, afirmou.
“Deles’’ quem? Dos deputados? Qualquer um que estivesse junto aos jornalistas do programa pediria para que ele fosse mais direto e desse nome aos bois. Mas no Roda Viva…
Se nem ele e nem o PSDB comprou os votos, quem comprou? Os próprios parlamentares compraram os votos deles mesmos?
Como é que a turma do Augusto Nunes se contenta com uma “explicação’’ dessas? A claque só está lá mesmo para levantar a bola para um sênior que já não consegue expor nem alinhavar suas ideias com clareza.O ex-governador de São Paulo, Cláudio Lembo comentou: “Um ex-presidente não devia falar isso. Eu também acho que ele poderia ter renunciado quando comprou a reeleição.”
FHC continua: “A segunda metade do governo Lula e o segundo mandato da Dilma têm mais a ver com o governo do general Geisel do que com o meu” .
Bem, esse comentário eu fico devendo, como os os participantes do Roda Viva.
Mas vamos conhecer um pouco mais desse curioso sociólogo, mais vaidoso que intelectual de fato. Fernando Henrique Cardoso talvez seja o político brasileiro que mais coleciona (e esconde) episódios “estranhos’’, expostos ao longo de uma extensa galeria de 84 anos de vida.
Dissimulado, nunca comentou sobre sua aposentadoria aos 37 anos como professor de Ciências Políticas da USP. Há que se reconhecer que ele foi na verdade aposentado pelo AI-5, juntamente com Florestan Fernandes e outros. Mas, ao retornar do exílio em 1978, jamais tomou qualquer iniciativa ética de rever sua aposentadoria, que na época já era muito boa, vindo a evoluir em valores atuais a 22 mil reais por mês. Valores, segundo ele… razoáveis.
Em seu depoimento à Comissão da Verdade, realizado no dia 27 de novembro de 2014, Fernando Henrique disse: “Estão servindo caviar, mas é amargo, porque o exílio é o exílio. É amargo porque você vive a maior parte do tempo imaginando o que está acontecendo no seu país e na expectativa de que tudo vai mudar.’’
Mas, segundo o livro da escritora inglesa, Frances Stonor Saunders “Quem pagou a conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura’’, com edição esgotada, embora considerado por seus pares socialista-marxista, FHC, no seu auto-exílio no Chile, foi admitido na CEPAL, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, órgão da ONU, recebendo alto salário em cargo de nível diplomático. Tinha direito a privilégios como isenção de impostos, vida abastada, bela casa em bairro nobre e carro Mercedes Benz com motorista. No retorno do seu auto-exílio, em 1978, desembarcou no Brasil com verba de 180 mil dólares, destinada ao CEBRAP, tudo por obra da Fundação FORD, um dos braços da CIA.
Quem pagou a conta?
Além disso, a autora acusa FHC de receber dinheiro da agência norte-americana de espionagem, para ajudar os EUA a “venderem melhor sua cultura aos povos nativos da América do Sul”. E o valor variava de 800 mil a 1 milhão de dólares, valores da época.
Ruy Mauro Marini foi um dos intelectuais a sair do país por conta da ditadura militar. Juntamente com André Gunder Frank, Theotonio dos Santos e Vania Bambirra, são os autores da Teoria da Dependência, uma formulação teórica crítica e marxista não-dogmática dos processos de reprodução do subdesenvolvimento na periferia do capitalismo mundial, em contraposição às posições marxistas convencionais dos partidos comunistas e à visão estabelecida pela CEPAL.
Durante o exílio de Ruy Mauro Marini, Fernando Henrique, juntamente com José Serra, viriam a protagonizar um dos episódios menos éticos de suas vidas adulterando o texto por eles assinado ao se referir a um conceito econômico de Marini. Leia detalhes aqui
Em 1985, Fernando Henrique concorreu à Prefeitura de São Paulo. Durante o último debate da eleição, o então candidato deixou de responder objetivamente a pergunta “o senhor acredita em Deus?”, feita por Boris Casoy. Deu voltas e mais voltas e não conseguiu responder. Teria sido honesto de sua parte admitir que não, porém, sob risco de perder a eleição, não confirmou. Seu principal adversário, o ex-presidente Jânio Quadros, explorou ao fim da campanha a falta de crença de FHC, realizando uma campanha difamatória de cunho religioso. Posteriormente, FHC afirmou nunca ter sido ateu. Pode?
Ainda, perto do final da campanha, quando as pesquisas de opinião davam sua vitória como certa, chegou a deixar-se fotografar sentado na cadeira de prefeito um dia antes da eleição. Derrotado, teve que assistir a Jânio Quadros, logo após ser empossado, desinfetar a cadeira com uma lata de inseticida, e dizer a todos os que estavam na sala: “Gostaria que os senhores testemunhassem que estou desinfetando esta poltrona porque nádegas indevidas a usaram”. E completou: “porque o senhor Henrique Cardoso nunca teria o direito de sentar-se cá e o fez, de forma abusiva. Por isso desinfeto a poltrona”.
Vergonhoso. Humilhante.
Em 19 de maio de 1993, FHC assumiu o Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco. Mais tarde o PSDB passou a propagar a todos os cantos do país, que o ex-presidente fora o autor do Plano Real.
Antigamente Itamar Franco consentia com a ideia de tratar FHC como o “pai do Real”, e o apoiava. No entanto, mais tarde, passou a negar tal informação: “A parte principal que quero rebater é a afirmação de que quando ele deixou o Ministério da Fazenda para se candidatar, tudo estava pronto e feito. Isto é uma inverdade.” Em entrevista dada ao Jornal do Brasil, Itamar disse que o nome de Fernando Henrique surgiu por exclusão.
FHC ainda viria a assinar de maneira irregular as cédulas da nova moeda Real, pois quando elas entraram em circulação ele já não era mais ministro havia 4 meses, estando em campanha para a presidência.
Durante seu primeiro mandato como presidente, FHC tratou da aprovação de uma emenda constitucional para a reeleição para os cargos eletivos do Executivo, dentre os quais o dele próprio. Há várias denúncias de compra de votos dos parlamentares. O deputado Ronivon Santiago relatou a um amigo, em conversa gravada pelaFolha de São Paulo, que recebera 200 mil reais para votar na emenda.
Em 1997 FHC privatizou, entre tantas estatais, a Companhia Vale do Rio Doce, pelo valor atualizado de 8,5 bilhões de reais, valor considerado irrisório. Há ainda o agravante de o BNDES ter emprestado dinheiro ao comprador para que a aquisição fosse feita. Um escândalo. Hoje a companhia vale cerca de 300 bilhões de reais.
O fim do segundo mandato de FHC foi marcado por uma crise no setor energético, que ficou conhecida como Crise do Apagão. A crise ocorreu por falta de planejamento e ausência de investimentos em geração e distribuição de energia e foi agravada pelas poucas chuvas.Com a escassez de chuva, o nível de água dos reservatórios das hidrelétricas baixou e os brasileiros foram obrigados a racionar energia. A crise acabou afetando a economia, e consequentemente provocou uma grande queda na popularidade de FHC. Parece que os tucanos são bons em racionamento, não?
Conversas gravadas por meio de grampo ilegal em telefones do BNDES que foram obtidas pela Folha de S. Paulo em 1999, levantaram suspeitas que Fernando Henrique Cardoso participou de uma operação para tomar partido de um consórcio no leilão da Telebras em julho de 1998, vindo a cometer crime de responsabilidade ao autorizar o uso de seu nome para pressionar o fundo de pensão Previ a se associar ao consórcio do Opportunity. Todos os detalhes estão disponíveis no livro ‘’O Príncipe da Privataria’’, de Palmério Dória.
No governo FHC houve inúmeras denúncias de corrupção, todas arquivadas pelo engavetador geral da República, Geraldo Brindeiro.
Ainda durante seu governo, Fernando Henrique afirmou que “pessoas que se aposentam com menos de 50 anos são vagabundos, que se locupletam de um país de pobres e miseráveis’’.
Fernando Henrique Cardoso escreveu ainda um livro com um título muito polêmico. “A soma e o resto’’ é cópia do título de um livro do marxista francês Henri Lefebvre, escrito em 1958: ‘’La somme et le reste”. É mole? Mais detalhes aqui.
Durante a última campanha presidencial, o ex-presidente foi como que ressuscitado por Aécio Neves, que tentou ser sua nova versão, revista mas pouco atualizada. Após a derrota do tucano, FHC aproveitou para demonstrar mais uma vez todo seu preconceito e elitismo, ao dizer: ‘’O PT está fincado nos menos informados, que coincide de ser os mais pobres. Não é porque são pobres que apoiam o PT, é porque são menos informados.” Foi após essa triste observação que o Brasil ensaiou uma divisão entre Norte-Nordeste e Sudeste -Sul.
O ex-presidente vive falando que sente vergonha do governo, uma vergonha que deveria ter sentido na época em que governava, quando verdadeiramente a corrupção se instalou na Petrobras, fato admitido em seu novo livro “Diários da Presidência vol. 1”, quando escreve que tinha conhecimento de um esquema de corrupção na estatal em seu primeiro mandato e nada fez para interrompê-lo.
Cada vez que FHC fala, esquece-se da postura que deveria ter por já ter sido presidente.
O intelectual das maracutaias falando, não é um poeta. Calado, muito menos.
Atualizado em 28/10/2015
*Fernando Castilho é arquiteto urbanista, professor e blogueiro. Analisa e comenta fatos importantes da vida política no país, fora da lente da grande mídia.
Foto: Andi Gantenbein, de Zurique, Suíça, para os Jornalistas Livres
Denúncias sobre os atuais tempos de antidemocracia, assassinatos da população preta, pobre e periférica e o da vereadora Marielle Franco aparecem em cartazes erguidos pelos bailarinos de “Fúria”, espetáculo de Lia Rodrigues, considerada uma das maiores coreógrafas brasileiras da atualidade e uma das mais engajadas na realidade política do país.
A foto é da noite deste sábado (16), durante apresentação do grupo brasileiro no ‘Zürcher Theaterspektakel’, em Zurique, Suíça.
No Brasil, Fúria estreou em Abril, no Festival de Curitiba. A montagem evidencia, de maneira crítica, relações de poder, desigualdades, e as interligações entre racismo e capitalismo.
O espetáculo foi concebido no Centro de Artes da Maré, na Maré, RJ. O local foi inaugurado em 2009, e o projeto nasceu do encontro de Lia Rodrigues Companhia de Danças com a Redes da Maré. Os bailarinos são moradores da favela e de periferias do RJ.
Fruto dessa mesma parceria é a Escola Livre de Dança da Maré que resiste, em meio ao caos do governo violento de Witzel contra as favelas do RJ.
O método Temer de solapar direitos dos cidadãos brasileiros tem novo alvo: a Internet. Sem qualquer discussão prévia, os golpistas querem mudar a composição do Comitê Gestor da Internet.
A consulta pública determinada pelo governo, sem diálogo prévio com os membros do Comitê e com apenas 30 dias de duração, certamente pretende aumentar o poder e servir apenas aos interesses das empresas privadas. As operadoras de telefonia têm todo o interesse do mundo em abafar as vozes de técnicos, acadêmicos e ativistas que lutam pela neutralidade da rede, por uma Internet livre, plural e aberta.
Veja, abaixo, a nota de repúdio ao atropelo antidemocrático da consulta pública determinada por Temer/Kassab. A nota é da Coalizão Direitos na Rede que exige o cancelamento imediato desta consulta.
Nota de repúdio
Contra os ataques do governo Temer ao Comitê Gestor da Internet no Brasil
A Coalizão Direitos na Rede vem a público repudiar e denunciar a mais recente medida da gestão Temer contra os direitos dos internautas no Brasil. De forma unilateral, o Governo Federal publicou nesta terça-feira, 8 de agosto, no Diário Oficial da União (D.O.U.), uma consulta pública visando alterações na composição, no processo de eleição e nas atribuições do Comitê Gestor da Internet (CGI.br).
Composto por representantes do governo, do setor privado, da sociedade civil e por especialistas técnicos e acadêmicos, o CGI.br é, desde sua criação, em 1995, responsável por estabelecer as normas e procedimentos para o uso e desenvolvimento da rede no Brasil.
Referência internacional de governança multissetorial da Internet,
o Comitê teve seu papel fortalecido após a
promulgação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014)
e de seu decreto regulamentador, que estabelece que cabe ao órgão definir as diretrizes para todos os temas relacionados ao setor. A partir de então, o CGI.br passou a ser alvo de disputa e grande interesse do setor privado.
Ao publicar uma consulta para alterar significativamente o modelo do Comitê Gestor de forma unilateral e sem qualquer diálogo prévio no interior do próprio CGI.br, o Governo passa por cima da lei e quebra com a multissetorialidade que marca os debates sobre a Internet e sua governança no Brasil.
A consulta não foi pauta da última reunião do CGI.br, realizada em maio, e nesta segunda-feira, véspera da publicação no D.O.U., o coordenador do Comitê, Maximiliano Martinhão, apenas enviou um e-mail à lista dos conselheiros relatando que o Governo Federal pretendia debater a questão – sem, no entanto, informar que tudo já estava pronto, em vias de publicação oficial. Vale registrar que, no próximo dia 18 de agosto, ocorre a primeira reunião da nova gestão do CGI.br, e o governo poderia ter aguardado para pautar o tema de forma democrática com os conselheiros/as.
Porém, preferiu agir de forma autocrática.
Desde sua posse à frente do CGI.br, no ano passado, Martinhão – que também é Secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações – tem feito declarações públicas defendendo alterações no Comitê Gestor da Internet. Já em junho de 2016, na primeira reunião que presidiu no CGI.br, após a troca no comando do Governo Federal, ele declarou que estava “recebendo demandas de pequenos provedores, de provedores de conteúdos e de investidores” para alterar a composição do órgão.
A pressão para rever a força da sociedade civil no Comitê cresceu,
principalmente por parte das operadoras de telecomunicações,
apoiadoras do governo.
Em dezembro, durante o Fórum de Governança da Internet no México, organizado pelas Nações Unidas, um conjunto de entidades da sociedade civil de mais de 20 países manifestou preocupação e denunciou as tentativas de enfraquecimento do CGI.br por parte da gestão Temer. No primeiro semestre de 2017, o Governo manobrou para impor uma paralisação de atividades em nome de uma questionável “economia de recursos”.
Martinhão e outros integrantes da gestão Kassab/Temer também têm defendido publicamente que sejam revistas conquistas obtidas no Marco Civil da Internet, propondo a flexibilização da neutralidade de rede e criticando a necessidade de consentimento dos usuários para o tratamento de seus dados pessoais. Neste contexto, a composição multissetorial do CGI.br tem sido fundamental para a defesa dos postulados do MCI e de princípios basilares para a garantia de uma internet livre, aberta e plural.
Por isso, esta Coalizão – articulação que reúne pesquisadores, acadêmicos, desenvolvedores, ativistas e entidades de defesa do consumidor e da liberdade de expressão – lançou, durante o último processo eleitoral do CGI, uma plataforma pública que clamava pelo “fortalecimento do Comitê Gestor da Internet no Brasil, preservando suas atribuições e seu caráter multissetorial, como garantia da governança multiparticipativa e democrática da Internet” no país. Afinal, mudar o CGI é estratégico para os setores que querem alterar os rumos das políticas de internet até então em curso no país.
Nesse sentido, considerando o que estabelece o Marco Civil da Internet, o caráter multissetorial do CGI e também o momento político que o país atravessa – de um governo interino, de legitimidade questionável para empreender tais mudanças –
a Coalizão Direitos na Rede exige o cancelamento imediato desta consulta.
É repudiável que um processo diretamente relacionado à governança da Internet seja travestido de consulta pública sem que as linhas orientadoras para sua revisão tenham sido debatidas antes, internamente, pelo próprio CGI.br. É mais um exemplo do modus operandi da gestão que ocupa o Palácio do Planalto e que tem pouco apreço por processos democráticos.
Seguiremos denunciando tais ataques e buscando apoio de diferentes setores,
dentro e fora do Brasil,
contra o desmonte do Comitê Gestor da Internet.
8 de agosto de 2017, Coalizão Direitos na Rede
Notas
1 A Coalizão Direitos na Rede é uma rede independente de organizações da sociedade civil, ativistas e acadêmicos em defesa da Internet livre e aberta no Brasil. Formada em julho de 2016, busca contribuir para a conscientização sobre o direito ao acesso à Internet, a privacidade e a liberdade de expressão de maneira ampla. O coletivo atua em diferentes frentes por meio de suas organizações, de modo horizontal e colaborativo. A nota está em https://direitosnarede.org.br/c/governo-temer-ataca-CGI/ .
2 Para ouvir a entrevista, à Rádio Brasil Atual, de Flávia Lefévre, conselheira da Proteste e representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet, que afirma que as mudanças visam a atender interesses do setor privado e ferem caráter multiparticipativo do Comitê: https://soundcloud.com/redebrasilatual/1008-enrevista-flavia-lefevre
Ligar a tv logo cedo num pequeno quarto de hotel no interior do país é desentender-se dos fatos nos telejornais matutinos. Abre-se a janela e uma menina vai à escola à beira do rio, um menino faz gol de bicicleta entre guris e o homem ergue a parede de sua casa. Tudo tão distinto das ruas em alvoroço de protestos urbanos ou políticos insanos. No rincão o que se busca é continuar vivo entre chuvas e trovões, sem não ou talvez. Tudo é certo. Sem modernidades calam ou arremedam nossa urbanidade, gente que se defende com pimentas e ervas, oração e vizinhança. Voz sem boca, boca sem voz, essa gente não é parte nas notícias selvagens dos jornais distantes. Se resolvem entre cozidos, arte, bola e santos. No país de tantos cantos, muitos voam fora da asa e sem golpes entre si vão tocando suas mazelas e graça.
Mas vivemos tempos obscuros, a noite persiste em nossos avançados quinhentos e tantos anos e muitos santos. Dizem que burro velho é difícil se corrigir nos hábitos. Em manhã chuvosa na grande São Paulo, ligo a tv e o notbook, as janelas se abrem antes que a cortina deixe entrar o novo dia. Surpreendente ver na tv o deputado Jair Bolsonaro afirmando em um clube israelita na cidade do Rio, que se presidente for, não teremos mais terras indígenas no país. Ao mesmo tempo o computador expõe na rede social a opinião de meu amigo Ianuculá Kaiabi Suiá, jovem liderança do Parque Indígena do Xingu, onde leio ao som do deputado que ladra:
Jair Bolsonaro, obrigado por você existir. Graças a você, hoje, temos noção de quanto a população brasileira carece de conhecimento, decência, consciência, juízo, amor e que carrega um imenso sentimento de ódio sem saber o porque. Sim, sim, não sabem. Um exemplo? Veja a bandeira de quem te aplaude, é de um povo que, assim como nós, sofreu as piores atrocidades cometidas pelas pessoas que pensavam como você. Enfim, eu não sei se essa parcela do povo brasileiro pode ser curada, mas vou pedir para um pajé fumar um charuto sagrado e revelar se o espírito maligno que se apossou da tua alma pode ser desfeita com uma grande pajelança.
Ianuculá sabe o que diz, sabe de todo martírio vivido pelos povos originários, e mesmo assim se propõe a consultar o mundo dos espíritos.
É deus e diabo na terra do sol, a mesma terra que ofende também abriga e anuncia uma mostra de cinema indígena nos próximos dias. Terra de etnias e corpos na terra, a cidade maravilhosa do Rio não se calará diante do fascismo desses tempos sombrios, acompanhe.