“Está na hora dos jornalistas deixarem as redações”

Há cinquenta anos, um movimento popular, operário e estudantil de denúncia da autoridade e defesa da liberdade de expressão expandiu-se no mundo inteiro. Na França, onde teve ampla repercussão, nasceu o célebre slogan “É proibido proibir”. Era a época das utopias concretas em plena guerra no Vietnã.

Para comemorar o cinquentenário desse movimento que ainda hoje destaca-se como um dos maiores desde o fim da Segunda Guerra mundial, o consulado da França no Rio de Janeiro promoveu uma série de atividades sobre a censura e a liberdade de expressão. Entre os convidados, o jornalista Edwy Plenel, ex-diretor no jornal Le Monde e fundador, em 2008, de Mediapart, um jornal independente online, participativo e 100% FINANCIADO por cerca de 140 mil assinantes. Na sede da Aliança Francesa do Rio de Janeiro, ele concedeu entrevista à ativista francesa da democratização da mídia e residente no Brasil, Florence Poznanski, para os Jornalistas Livres. Plenel luta por um jornalismo independente capaz de cumprir sua função social e fornecer à sociedade as ferramentas para exercitar plenamente sua cidadania. Um jornalismo que não olhe a sociedade do alto, mas que deixe todas as vozes se expressarem.

Independentemente das bolhas, dos algoritmos e da nefasta cultura da gratuidade na Internet, ele continua um entusiasta das possibilidades que o sistema digital permite para investigar e produzir a custo baixo informações de alta qualidade que não se encontram na mídia de massa, atrelada aos interesses dos monopólios. Cruzando os olhares entre o Brasil e a Europa, ele faz um rápido balanço sobre o papel da mídia na construção do golpe no Brasil e manda um recado desafiador para os jornalistas brasileiros: “Não está na hora de deixarem suas redações para fundar um jornal verdadeiramente independente? Se não o fizermos, se os jornalistas não mostrarem seu compromisso democrático, se não defenderem seus ideais profissionais, não há razão para o público confiar em nós”. Confira a entrevista:

Florence Poznanski: O que significa para você, vir ao Brasil nesse período para falar sobre censura?

Edwy Plenel: A censura hoje se disfarça de liberdade de comércio, liberdade de empreendimento, liberdade de transmitir opiniões. Ela assume a forma de mídia controlada por patrões que defendem seus interesses e se asseguram que as informações que os incomodam não apareçam. Ela está nas redes sociais onde existem algoritmos que trabalham com publicidade e que transforma você em uma mercadoria que, por um lado, utilizam seus dados pessoais e, por outro lado, lhe enviam opiniões apenas e não informações que podem incomodá-la. Eu nunca venho a um país estrangeiro como um doador de lições. Na França, há dez bilionários que controlam a maioria dos meios de comunicação privados. E eles os controlam não para nos impedir de fazer o nosso trabalho, mas para evitar que esses meios perturbem seus interesses e para que não possamos mudar a ordem das coisas. Temos de lutar hoje por um novo ecossistema democrático, podemos chamar isso de revolução, de refundação, de reforma radical, para acompanhar a revolução tecnológica, regular e defender os direitos dos jornalistas, impedir situações de monopólio e fortalecer o ‘direito ao saber’ dos cidadãos. O direito fundamental de saber o que é do interesse público e o que os poderes políticos e
econômicos escondem.

“Esses bilionários controlam os meios de comunicação para que não perturbem seus interesses e que não possamos mudar a ordem das coisas”

 

 

 

 

FP – Aqui no Brasil estamos em uma situação de monopólio que controla mais de 90% dos meios de comunicação. A mídia pública é muito fraca e as iniciativas regulatórias sempre foram reprimidas. Quando falamos de regulação para esses meios, eles chamam isso de censura. Na Argentina, a “ley de médios” foi aprovada e a Clarin está empenhada em acabar com essa lei desde então. Parece-me que na América Latina esses monopólios têm muito mais poder. Você acha que temos as mesmas armas que a Europa para chegarmos lá?

EP – Nós não podemos ser a favor dos monopólios, devemos necessariamente ter leis anti-concentração. O monopólio é como o fim das espécies vivas, não podemos querer preservar espécies ameaçadas e ser a favor dos monopólios. O monopólio é a morte. “Regulação não é um palavrão. O monopólio é como o fim das espécies vivas, o monopólio é a morte”. Na Europa, temos um mínimo de regulamentação. Não é a lei da selva. Não podemos aceitar que um setor tão importante quanto a informação seja simplesmente o reino dos mais fortes e poderosos. Você precisa de regras. Essas regras devem ser democraticamente discutidas e deliberadas. E o poder estatal não deve se considerar o fiador. Porque existe o risco de que seja usado a serviço do poder político do momento. Essas regras devem ser a favor da independência profissional e da pluralidade do jornalismo, da diversidade das redações. Falar de regulação não é absolutamente um palavrão. Deve-se regular os monopólios privados e também o poder estatal. Na França, temos uma mídia pública paga pelos impostos porque ela é a serviço do bem comum. Mas este serviço público deve ser independente em sua gestão, não pode depender do poder político.

FP – Aqui, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) foi recentemente transformada em uma agência estatal. Este é um exemplo concreto do que o Estado pode fazer para controlar informações.

EP – Pois é. Ademais, em relação à mídia privada, disposições que defendam a independência das redações são fundamentais. Os jornalistas não são objetos, bens, propriedades daqueles que possuem esses meios, e os jornalistas precisam lutar pela integridade de seu trabalho.

FP – Nesse contexto, muitos jornalistas no Brasil estão revoltados com a linha editorial dos meios de comunicação de massa, mas as alternativas do jornalismo independente permanecem frágeis.

EP – Reconhecer isso é uma coisa. Mas o melhor para os profissionais da informação é mostrar que existe uma alternativa, que ela está na criação de uma mídia independente e de fazê-la funcionar. O Brasil é um país muito grande, muito conectado e existem varias iniciativas na mídia alternativa que estão sendo criadas. Acredito que os profissionais que observam a situação do país, a maneira pela qual o caso jurídico em volta do Lula serve para desacreditar o campo progressista e servir os interesses econômicos dominantes, são perfeitamente capazes de enxergar o que a sociedade precisa saber para reagir. Eu venho de um jornal totalmente digital. E minha mensagem é que é preciso parar de se lamentar, bater a cabeça contra as paredes. Temos que comprovar que existem alternativas, que podemos produzir jornais profissionais independentes que funcionam e não dependem de nenhum poder econômico porque só vivem com o apoio de seus leitores. A experiência de Mediapart é reproduzível em outros lugares. E este é o chamado que faço todas as vezes aos jornalistas que reclamam da mídia tradicional. Eu falo para eles: arrisquem, procurem aproximar-se do público, procurem o apoio dele e vocês verão que isso pode funcionar. É preciso dar-se as condições para fazer um grande jornal digital brasileiro.

FP – Qual a sua opinião sobre o papel da mídia na construção do golpe no Brasil?

EP – Eu não tenho conhecimento suficiente para dizer coisas específicas. Vi como todo mundo que durante seus anos de poder o PT não saiu ileso. Existem fatos reais e o jornalismo investigativo comprova isso. Não se pode dizer que são calúnias, há atos e fatos reais que não correspondem aos princípios e ideais do PT. E, ao mesmo tempo, não podemos acreditar na fábula de que seria o maior caso de corrupção da história do Brasil, na medida em que são os próprios corruptos que afirmam isso e que instrumentalizam amplamente o sistema penal. A Justiça deve ser capaz de agir de forma independente e não deve ser usada para solução política.

Também vi, como todo mundo, a mídia dominante que não dá voz à sociedade, não mostra o que está acontecendo na sociedade. Eles olham de cima para a sociedade. Também existe isso na França, não quero dar lições de fora (nos subúrbios, com os migrantes). Há sempre esse olhar de cima. Na França, por exemplo, os movimentos de solidariedade com os migrantes têm dificuldade em estar presentes nos meios de comunicação de massa. Basta alguns incidentes violentos em uma manifestação para que se fale apenas disso e não da razão da mobilização. Bairros populares são descritos como o inferno, lugares de perigo, enquanto há uma grande vitalidade que sempre passa despercebida.

“A mídia dominante não dá voz à sociedade, não mostra o que está acontecendo na sociedade. Eles olham de cima para a sociedade”

 

FP – Você fala da oportunidade do digital para superar os monopólios, mas a Internet é um espaço ainda mais monopolizado do que o sistema de mídia.

EP – Existem problemas reais sobre a neutralidade digital, um debate para que a Internet não se torne propriedade de operadores privados e para que possamos sempre transmitir nosso conhecimento. O escândalo Facebook/Cambrige Analitica mostrou como a publicidade gratuita é prejudicial à informação e como toda a imprensa é cúmplice disso. Esta publicidade gratuita corrompe a informação livre e valiosa. Nesta arena é preciso lutar, especialmente pela regulação desta arena. Médiapart é totalmente digital e isso é a sua força. Nós usamos as armas democráticas do digital.

Pegando o contraponto dessa gratuidade publicitaria, eu falo de gratuidade democrática que são nossos programas de TV, que são universidades populares e ajudam na transmissão do conhecimento. E isso não custa muito. Hoje existe o financiamento coletivo, por exemplo, que nós não tínhamos quando criamos o Médiapart. O principal fator que trava o debate público é o reinado das opiniões. E com essas opiniões tudo se torna relativo e não há mais verdade. Nós devemos liderar este debate sobre a verdade. Eu ainda temo esse aspecto da crítica da mídia que só trabalha com críticas políticas. Na minha jornada de 40 anos de jornalismo, tanto sob governos de esquerda quanto de direita, entendi muito bem que não basta acreditar que se pensa politicamente correto para informar a verdade. Você tem que fazer este trabalho de informação e você tem que lutar.

“O principal fator que trava o debate público é o reinado das opiniões. Em 40 anos de jornalismo, entendi muito bem que não basta acreditar que se pensa politicamente correto para informar a verdade”

FP – No Brasil, várias iniciativas de mídia digital surgiram nos últimos anos, algumas com orientação ideológica e outras comprometidas com a independência editorial. Mas estudos sobre o comportamento da mídia na sociedade mostram que o nível de confiança na mídia online permanece muito baixo em comparação com a televisão e a imprensa tradicional. Como superar esse dilema diante de um público que muitas vezes prioriza o entretenimento frente ao interesse geral?

EP – Reconquistar a confiança do público significa defender o valor da informação. Temos que provar que o jornalismo é útil por causa da qualidade, da originalidade e da necessidade de sua informação. E, em contrapartida, devemos convencer o público de que esse trabalho tem um preço, o preço do jornalismo independente a serviço exclusivo do direito de saber dos cidadãos. Em outras palavras, é uma batalha que devemos peitar contra o reino do entretenimento, da opinião e do Ibope. Se não o fizermos, se os  jornalistas não mostrarem seu compromisso democrático, se não defenderem seus ideais profissionais, não há razão para o público confiar em nós.

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