Era uma vez um ponto iluminado nas madrugadas do Centro de São Paulo…

Fachada da Biblioteca Mário de Andrade, na Rua da Consolação, centro paulistano. Reprodução Facebook Oficial da @BibliotecaMariodeAndrade

Segunda-feira, dia 24 de abril de 2017, quase dez horas da noite. Um segurança interrompe a conversa da galera no jardim. A estudante coloca os cadernos na mochila. Dois amigos fecham seus laptops – quase sem bateria pois as tomadas elétricas estão lacradas na sala de convivência. Um senhor sexagenário mergulhado na revista de arte leva alguns instantes para entender por que a funcionária tocou seu ombro e atrapalhou a leitura. Era hora de ir embora da Biblioteca Mário de Andrade. O prefeito João Dória Júnior que mandou.

O fim do horário estendido da maior biblioteca de São Paulo, que por um ano e meio funcionou por 24 horas, sete dias por semana, com todas as portas abertas, foi melancólico. Funcionários estavam visivelmente chateados –  pela interrupção dos serviços e pela perda de seus empregos. Uma tranca e um cadeado grandão foram passados no portão por guardas da GCM, a Guarda Civil Metropolitana. Tinha até um carro da Polícia Militar na rua para conter os tristes notívagos que se reuniram na portaria da Mário de Andrade para protestar. Uma garota tentou devolver um livro às 21h30 mas os guardas não a deixaram entrar.

A partir de agora, aliás, ninguém mais poderá estender uma noite tendo ao alcance da mão um acervo de mais 50 mil livros circulantes entre os mais de 7 milhões de itens, entre livros, fotos, periódicos e documentos. Dória não gosta disso, não. Diz que custa caro.

O corte do horário da Biblioteca Mário de Andrade vai economizar cerca de R$ 2.200 por dia. Ou R$ 800 mil por ano. Menos do que os R$ 804.959,44 que o prefeito Júnior gastou APENAS com propaganda nos principais programas de televisão para divulgar o programa Corujão da Saúde, sua principal plataforma de campanha. Dória também diz que pouca gente está frequentando o horário noturno na biblioteca.

Quando o horário extendido foi implantado – depois de três anos de estudo – o aumento de custo foi de cerca de 30%, com abertura ao público também nos finais de semana. Quem conta é o ex-supervisor de planejamento da Mario de Andrade, o historiador Fabrício Reiner, que participou de todo o processo e estava na portaria da biblioteca. Inconformado. “O número de livros emprestados dobrou quando a biblioteca passou a ficar aberta 24 horas. Antes, o fluxo era de 1500 pessoas por dia. Em 2016, a média foi de 3 mil visitantes por dia. Está tudo em relatório!”.

Doria diz que não é bem assim. Fala que o público não só diminuiu como deixou de pegar livros emprestados. O prefeito Júnior só não lembrou que os eventos e atividades noturnas foram cancelados. Também esqueceu de medir o impacto na permanência no local quando tampou as tomadas de energia para carregamento de celulares e notebooks. Nem mencionou, ainda, a retirada de jornais e periódicos da sala de convivência, entre outras pequenas perversidades econômicas. Ah, a mudança no tipo de programação também não foi levada em consideração, claro.

Hoje, em vez de roda de samba, há espetáculo de flamenco na Mário de Andrade. Nada contra. Mas quem quis assim foi o atual diretor da biblioteca, o milionário e ex-diretor da editora Cosac Naify, Charles Cosac. Ele também acabou com as baladas que aconteciam um sábado por mês. Inimaginável ele permitir, por exemplo, mais um Sarau Erótico, que em 2015 contou com apresentação do grupo de teatro Sensus, estendida até 4 da manhã com festa que amanheceu na rua. Inesquecível para quem estava lá.

“Infelizmente vejo um trabalho de quatro anos arruinando. Tanto a programação quanto o horário expandido foram criados a partir das necessidades dos frequentadores. Muitos trabalham o dia todo no Centro, que é um local de aglomeração. Tudo foi feito para atender a todo e qualquer cidadão em qualquer horário do dia e noite”, conta Reiner, o ex-funcionário, que cuidava do planejamento da biblioteca. O diretor do local na época, o filósofo e professor da USP, Luiz Armando Bagolin, entendia a Mário de Andrade não como um depósito de livros, mas como um centro de encontros.

Não espanta, portanto, notar que nem todos os que estavam ali na portaria para serem expulsos às 22 horas eram exímios apreciadores da leitura. As portas abertas e a fachada iluminada a noite toda abrigava os usuários de wi-fi grátis, gente que fugia do frio ou que perdeu o último metrô ou ônibus e moradores de rua que travavam uma luta inglória contra os olhos dos seguranças e o sono nas mesas de madeira. A presença desse público, por sinal, é um dos incômodos do prefeito.

Intérprete de Mário de Andrade no teatro e na TV, o ator Pascoal da Conceição, devidamente caracterizado como o poeta e escritor, perguntou: “E então é assim? Fecha a porta porque essa gente feia toda está incomodando a biblioteca? Eu dormi tantas vezes em cima de livro… Acho que é uma das coisas mais deliciosas de se fazer. É de uma mesquinharia inescrupulosa o que estão fazendo com a Cultura”, diz o ator-ativista.

Pascoal, quel também é conhecido em todo país também por ter vivido o personagem Doutor Abobrinha, do premiado infantil Castelo Rá-Tim-Bum, na TV Cultura, segue em sua bravata: “temos uma luta muito forte no campo do simbólico nesses tempos difíceis. A Cultura é um ganho que entra dentro de você, que faz transformar o mundo. É na Cultura que a gente gera direitos humanos, igualdade entre as pessoas, avanços em relação ao convívio. Quando atacam a Democracia e a Liberdade e isso chega na Cultura, o que se ataca, no fundo, é o lugar onde se geram os desejos, as vontades. É contra isso que temos a felicidade guerreira, emotiva e humana da luta. A luta é essa”. A fala é emocionada, com uma lágrima escorregadia que depois emenda numa outra enquanto o ator lembra que Mário de Andrade foi artista engajadíssmo na gestão pública da cidade.

De fato, em 1935, o escritor, musicólogo, folclorista, autor de “Paulicéia Desvairada”, festeiro, principal articulador do movimento modernista, criou uma biblioteca circulante com uma caminhonete que levava livros nas casas dos leitores. Tudo para que o prazer da leitura chegasse à população. Então primeiro diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, Mário de Andrade falou para o prefeito na época: “Em vez de esperar em casa pelo seu público, vai em busca de seu público onde ele estiver.”

A biblioteca Mario de Andrade passa a funcionar das 8h às 22h, de segunda a sexta-feira, e aos sábados e domingos, das 8h às 20h.

Leia o comunicado oficial anunciado pela direção: http://bit.ly/2piGsZW

 

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