O médico sanitarista Arthur Chioro, desde que saiu do Ministério da Saúde, assumiu seu vínculo junto à Universidade Federal de São Paulo, à Escola Paulista de Medicina, como professor do Departamento de Medicina Preventiva. Trabalha na área de política, planejamento e gestão, sua área de atuação, pesquisando os arranjos tecnológicos em hospitais públicos e na análise das políticas públicas de saúde e defesa do SUS.
Nessa manhã fria e chuvosa na cidade de São Paulo, o ex-ministro concedeu entrevista exclusiva aos Jornalistas Livres:
JL – Qual o seu envolvimento com o Sistema Único de Saúde?
AC – Total. Eu sou fruto do SUS. Participei como aluno do sexto ano, da 8º Conferência Nacional de Saúde. Fiz residência durante um período em que se discutia, na Assembleia Nacional Constituinte, a produção do SUS. Ao terminar a residência, fui trabalhar com o David Capistrano, em 1989, em Santos, na implantação da primeira leva de municípios já a partir dos novos marcos do SUS. Fui secretário de saúde de São Vicente aos 29 anos, em 1993. A minha vida profissional, como gestor, como professor e como pesquisador, foi sempre no SUS. É uma trajetória concomitante, vinculada, imbricada e implicada, comprometida com o Sistema Único de Saúde. Atualmente, em conjunto com a Escola Nacional de Saúde Pública, ligada à Fiocruz, estamos com uma linha de pesquisa sobre a relação público-privado, tentando entender mais essa relação que existe entre o setor privado e o setor público. Poucos sanitaristas, poucos defensores do SUS tem mergulhado para compreender melhor esses mecanismos.
JL – Esse conflito entre o privado e o público é o que mais aparece no Ministério da Saúde?
AC – Que não aparece. Tem uma dimensão subterrânea que fica submersa. Vou dar um exemplo concreto: se faz toda a discussão do financiamento da saúde, do subfinanciamento, da falta de recursos para a saúde. Você tem por um lado os que defendem a volta da CPMF como uma alternativa imediata, pronta, que poderia trazer recursos para a saúde. Mas, só a desoneração fiscal que é feita, a isenção que é dada no imposto de renda para quem tem recursos e que paga consulta particular, e só o Brasil é o país que faz isso, dando 100% de isenção, significaria um aporte de 22 bilhões de reais à mais ao ano. Seria colocar a mão na ferida, quer dizer, nós temos um sistema público para todo mundo, que é o SUS, como é o sistema nacional de saúde inglês, [em que] você quer usar o privado, você pode usar, mas [diferente do Brasil] não vai abater 100% no imposto de renda. No final das contas, só quem está pagando [pelo SUS] é o trabalhador, é o assalariado indiretamente através de seus impostos e não tem como descontar. Então isso não aparece.
Aparece o tempo inteiro só reclamação, mas quem está financiando o sistema privado é o público onde ele desonera, quando ele deixa de recolher impostos, contribuições que poderiam vir para a base do sistema. Isso sem contar a taxação das grandes fortunas, das heranças que trariam recursos substantivos, e uma pequeníssima parcela, de 800 à 1200 brasileiros teriam capacidade de contribuir.
JL – Você esteve frente ao Ministério da Saúde entre 2014 e 2015, por quase dois anos, quais foram as principais conquistas e dificuldades neste período?
AC – Eu penso que de conquista nós tivemos a consolidação e a ampliação do programa Mais Médicos. Quando assumi, o ministro Padilha me passou o bastão do programa que ele criou com a presidenta Dilma. O Programa foi criado em agosto de 2013 e eu entrei em fevereiro de 2014. Então, por terminar a consolidação, por fazer os ajustes, me sinto co-participe do Programa Mais Médicos. Acho que nós tivemos um papel muito importante nas discussões das políticas de prevenção e promoção à saúde. Trazer à cena, por exemplo, o enfrentamento da epidemia de cesarianas, as discussões e as implicações que tem dessa transição nutricional que o Brasil fez saindo da desnutrição, e nesse sentido o governo Lula e o governo Dilma ajudaram muito, pois na hora que colocaram o salário mínimo real reajustado acima da inflação, quando implantou o Bolsa Família, quando fez um conjunto de políticas públicas, fez com que houvesse uma grande mobilização de classe e aumento de consumo.
Só que alguns efeitos sobre a saúde tem sido deletérios, nós deixamos de ser um país de desnutridos e passamos a ser um país de obesos, com sobrepeso. Isso tem uma carga de doenças muito significativas, um problema de saúde pública. Então eu trouxe essa discussão, a discussão da reorganização da gestão, a pactuação da gestão, que foi uma questão que avançou muito. A gente conseguiu trabalhar de maneira muito importante para a repactuação de Estados e municípios em relação ao conjunto de prioridades.
Eu diria que foi um período muito intenso em 20 meses de gestão, marcados pelo subfinanciamento brutal, marcados por uma conjuntura eleitoral dificílima, porque peguei o ano da eleição, e depois foi o ano crítico do terceiro turno que foi imposto por essa agenda dessa direita golpista. Foi um período de grande turbulência política, o que não nos impediu de ouvir muito o Conselho Nacional de Saúde, de avançar no diálogo com os movimentos sociais.
Outra coisa importantíssima que é um legado da nossa participação no Ministério, foi a reconfiguração das políticas de desenvolvimento produtivo, as chamadas PDPs.
Quando eu cheguei [no Ministério] tinha acabado de dar aquele problema com a Labogen, que foi uma das coisas que surgiu com a Lava Jato e, a partir daquele momento, nós fizemos toda uma reconfiguração dessa política exitosa de valorização do poder de compra pública, da reafirmação dos laboratórios públicos. Cercamos de maneira muito substantiva, muito qualificada, ouvindo o setor empresarial, os laboratórios públicos, as universidades e fizemos um grande aprimoramento desse processo. Foi uma grande contribuição.
Reordenamos a política para órteses e próteses, que era outro problema que estava com CPI, com denúncias, deixamos um novo marco para esta área.
JL – Como o senhor vê a PEC 143, que desonera obrigações de estados e municípios, que passou em primeiro turno no Senado e vai à Câmara agora?
AC – Com enorme preocupação. Ela pode significar a retirada em torno de 44 a 65 bilhões de reais no próximo ano do sistema público de saúde, das três esferas de governo, ou seja, num sistema que precisaria para funcionar de maneira qualificada de pelo menos mais 55 bilhões, retirar esses valores seria decretar a morte. Na prática eu vejo algum grau de dificuldade na sua aplicação, pois mesmo que seja aprovada, os estados que tenham ficados no limite constitucional dos 12%, esses vão regredir rapidamente.
O Estado de São Paulo, não tenho dúvida nenhuma, ele [o governador] vai meter um corte linear para todo mundo, diminui a oferta e pronto, ajusta.
O grande problema serão os municípios executarem, pois ao mesmo tempo que estão fortemente impactados com a crise econômica, com a diminuição da arrecadação pública, os municípios são aqueles que historicamente foram ampliando, ampliando suas contribuições e muitos hoje já aplicam mais de 25%, quando o limite constitucional deveria ser de 15%. Limite, não é teto, de 15% para cima. Muitos já passaram dos 30% ou 36%. E por que eles passaram e não ficaram no limite dos Estados, dos 12%? Porque é no município que a pressão está no cotidiano.
O cidadão cobra do vereador, cobra do prefeito. É muito difícil para um prefeito lidar com a pressão social, por isso que um dos princípios do SUS é a descentralização para transferir para o nível local o máximo possível da responsabilidade pela execução, e pela possibilidade de controle social. A municipalização é uma estratégia central do processo de descentralização do SUS.
Agora me preocupa demais em relação aos governos estaduais, em particular o governo de São Paulo, porque para eles fechar ou mandar um corte de 25% num hospital de porta fechada, como a gente chama, que não tem pronto socorro, que a demanda só entra pela central de regulação, é muito simples, basta ofertar 25% a menos. A fila vai ficar aonde? Vai ficar nos municípios, nas unidades básicas. Vai ficar a conta para a população que depende do Sistema Único de Saúde. É muito preocupante.
JL – Outra PEC em andamento no Congresso é a que obriga que as empresas paguem planos de saúde para seus funcionários. Esta medida, segundo o ministro Ricardo Barros, aliviaria recursos do SUS. O que o senhor pensa sobre isso?
Me preocupa muito a PEC 451, que tem sido pouco falada, e que foi apresentada por Eduardo Cunha.
Nessa PEC, e aqui é importante notar que uma PEC é aprovada por dois terços dos deputados e não cabe ao presidente veto, Eduardo Cunha, com a malandragem que lhe é característica, com a desfaçatez que lhe é típica, ele propôs uma mudança no artigo 8º da Constituição, inserindo uma novo artigo que obriga todos os empregadores a garantirem aos seus empregados serviços de assistência à saúde. Onde diz que saúde é direto de todo trabalhador urbano e rural, ele trocou para “plano de saúde”.
Se isso for aprovado, todos os trabalhadores assalariados, urbanos e rurais obrigatoriamente passarão para o mercado de saúde suplementar, passarão para as operadoras de planos de saúde. Ou seja, o SUS voltará a ser o que era no passado, um sistema público para os pobres, àqueles totalmente desprovidos de qualquer relação de formalização do mercado de trabalho. O SUS passa a ser o sistema dos indigentes. A gente já sabe aonde é que isso vai dar, não é? Eu acho que essa é uma grande ameaça ao Sistema Único de Saúde e está aí a ponto de ser votada.
Olha, deixa eu contar uma coisa para vocês verem como o Eduardo Cunha, esse facínora, esse psicopata, aliás, psicopata não, eu estaria denegrindo a imagem das pessoas que tem transtorno mental, melhor dizer essa criatura abjeta da sociedade brasileira, como é que ele opera: quando eu era ministro da saúde, apareceu no meio de uma medida provisória, daquelas que estavam nos prazos finais, ultra finais, uma medida que só falava de taxas alfandegárias, uma medida evidentemente da Fazenda, que só lidava com essas questões, percentuais de cobrança, etc. No meio disso, entra um artigo em que ele isentava do pagamento das multas todas as operadoras de planos de saúde até seis meses antes da vigência da medida provisória. Quando a gente analisou, isso simplesmente legalizava um calote de R$ 4,5 bilhões das operadoras de planos de saúde. E qual era o problema? Uma grande manobra estava sendo articulada.
Eu comuniquei a Presidenta Dilma, assim que descobri, e ela convocou o líder do governo, Humberto Costa. Explicamos para ele o que estava acontecendo e combinamos que, por orientação do governo o Senado, iria aprovar a emenda, e a Presidenta vetou, pois medida provisória se pode vetar.
JL- Ao longo da sua carreira na saúde pública o senhor já tinha ouvido falar no atual ministro interino Ricardo Barros?
Não só já tinha ouvido falar como convivi com ele como líder do PP.
JL – E na Saúde?
Na saúde o único contato que ele tinha era como relator do orçamento, as questões do orçamento. Fora isso… tinha uma outra coisa que ele era muito interessado. Em parceria de desenvolvimento produtivo.
JL – Quem tem plano de saúde deve ter direito ao SUS? Como solucionar essa relação que às vezes é considerada injusta?
AC – A nossa Constituição garante a universalidade, então nós temos que pensar o SUS para 204 milhões de brasileiros. Em muitas coisas tem gente que usa o SUS, mesmo sem saber que usa o Sistema. Vou dar alguns exemplos: todo sangue que é processado e tal, é público. Toda lista de transplante, a captação de órgãos, é feita pelo Sistema até porque a Constituição não permite a comercialização de sangue e hemoderivados.
Se você cair no meio da rua, vítima de um infarto, vão chamar o SAMU. Quando você entra em um restaurante para comer, quem garante que aquele restaurante tem condições de funcionar é a vigilância sanitária, que é do SUS. Quando você está usando o esmalte, um shampoo, comendo um alimento industrializado, tomando um medicamento, usando uma água sanitária ou um agrotóxico, tem a vigilância sanitária agindo ali no registro, na aprovação.
Quando você tem a formação dos recursos humanos para a área da saúde e você está dentro de uma universidade federal, que é pública e forma 700 residentes por ano para o SUS.
O que acaba acontecendo? A nossa Constituição garantiu essa característica dual, tendo o SUS e a livre iniciativa privada na área da saúde. Se você, por algum motivo, precisa ser atendido por um serviço do Sistema Único e você tem plano de saúde, para [resolver isso] foi criada a figura do ressarcimento ao SUS. Ela não funcionou desde o ano em que foi criada, em 2000, mas em 2011 e 2012 o ministro Padilha fez algumas modificações importantes. Em 2014 e 2015 já aumentou muito a arrecadação, e isso precisa ser aperfeiçoado, particularmente para as situações de urgência.
O último levantamento que eu fiz quando era ministro, 69% dos atendimentos das internações feitas no SUS para clientes de planos de saúde foram na área de urgência/emergência e principalmente para parto normal. A mulher hoje que quer ter um neném por parto normal e que tem plano se saúde, e vejam que ironia do destino, ela tem que ir ao SUS. Agora, também é verdade que nós fazemos 97% das hemodiálises, 99% dos transplantes.
Então, quando ficam mais caros medicamentos de alto custo e atendimento de alta complexidade, a classe média, que tem plano de saúde, corre para as ilhas de excelência do Sistema Único de Saúde, e isso é uma injustiça. Ou vamos apostar todo mundo para ter um sistema grande e de grande qualidade, ou espera lá, cada um que siga sua opção.
JL – O ressarcimento dos planos de saúde ao SUS não pode funcionar para isso?
AC – Pode. Pode funcionar. E hoje tem mecanismo para isso. Foi essa besteira que o ministro [Ricardo Barros] falou sobre o Cartão SUS. É o Cartão que garante isso hoje porque tem o cadastro Nacional de Saúde (NS) de quem tem plano de saúde, você tem o cadastro do SUS que é dado pelo Cartão SUS; é feito o atendimento, depois da ocorrência é feito o cruzamento dos dados da base da NS e SUS, a cada mês é gerado uma lista de cobrança aos planos de saúde que tem 30 dias para contestar administrativamente por conta de clientes que ainda estão em carência, e em trinta dias se não houver contestação é gerado uma DARF para pagamento.
JL – Arthur, o senhor falou do Serviço Móvel de Urgência (SAMU) e a Farmácia Popular, que são dois programas mais citados que terão cortes esse ano. Ainda cabem esses programas no orçamento do Ministério da Saúde?
AC – Não tem a mínima chance de não caber. Eu participei da criação do SAMU. Hoje o Serviço tem uma cobertura nacional, salva a vida das pessoas. Não faz o mínimo sentido deixar sem lastro de cobertura o SAMU, até porque nós deixamos o orçamento previsto para isso. Se o Congresso Nacional cortou para caber as emendas parlamentares impositivas, emendas que são discutidas de forma desarticulada com as prioridades do SUS… É preciso dizer aqui que o Brasil é o único país do mundo em que o poder legislativo determina o que um pedaço do orçamento do executivo é executado por outro poder. Parem para pensar sobre isso. Só que ele executa desarticulado do plano municipal, do plano regional, do plano estadual de saúde. Eu não vejo nenhum sentido nisso. É uma maneira de ameaçar.
Por que que pegam o SAMU e a Farmácia Popular? Porque são os dois programas melhor avaliados pela população brasileira. Logo depois vem o Brasil Sorridente e agora o Mais Médicos, que é um sucesso. Então chamá-los para a discussão dos cortes é colocar a faca no pescoço da população brasileira dizendo que o governo foi imprevidente. Posso responder pelo período em que fui ministro. Eu já tinha identificado a insuficiência orçamentária, dialoguei muito com Ricardo Barros, fiz muitas reuniões com ele. Eu ministro e ele deputado, mostrando aonde precisava de ampliar o orçamento, aonde o Congresso teria que aumentar os recursos. Agora Ricardo Barros tem a responsabilidade de manter e ampliar o SUS e não diminuir, colocando a conta para todos pagarem.
JL – Na entrevista que Ricardo Barros deu à Folha de São Paulo, a repórter perguntou sobre os conflitos de interesses que envolvem a indústria da saúde e as especialidades médicas. Que conflitos são esses? A que Ricardo Barros se opõe?
AC – Ele não se opõe a nada. Ele está fazendo um discurso. A cada local que ele vai está fazendo um discurso, de manhã é um, de tarde é outro. Ele soltou uma pérola para nós que somos da área médica, dizendo que irão rever todos os protocolos e diretrizes, e falou isso no meio de especialistas, porquê?
Porque boa parte desses especialistas são financiados por suas pesquisas, seus interesses, são financiados pela indústria, e tem desejo não de economizar no protocolo, mas de substituir pelas drogas novas que são mais caras. Deu para entender? Peguem a hipertensão arterial como exemplo: o Ministério reúne todos os especialistas, os professores universitários, etc, e faz uma diretriz para isso. Nós começamos um tratamento com os remédios mais eficientes e mais baratos. Se não funcionar, substituímos, e claro que esses medicamentos mais especializados são mais caros, a relação custo/efetividade.
As diretrizes clínicas tem que ser atualizadas de tempos em tempos porque os medicamentos mais modernos e eficazes vão sendo descobertos, mas sempre temos que analisar custos e efetividade, pois temos que garantir substâncias para 30 milhões de hipertensos, 12 milhões de diabéticos. Mesmo quando são doenças raras isso deve ser analisado. Temos que ser muito criteriosos nesse processo.
Se você lança mão e entrega a determinados especialistas, que ao invés de trabalhar com critérios científicos e republicanos, eles passam a atender interesses de certos segmentos da indústria, você abre espaço para enorme manipulação, e não só não há diminuição, mas um aumento de custos.
Por quê? Porque vamos comprar os remédios mais caros, incorporá-los. Muitas vezes nós não incorporamos um medicamento não porque ele não é bom, mas porque seu custo não é sustentável e capaz de colocá-lo em funcionamento.
Vou dar o exemplo da vacina do HPV. Nós só introduzimos a vacina no calendário de imunização em 2014 quando conseguimos garanti-la como direito, pois não adianta dar uma vez e não fornecer mais, temos que garantir todos os anos, para todas as meninas. Nós tínhamos que ter uma vacina segura e de qualidade, com um custo que fosse adequado à realidade. Até então o custo era impossível para introduzi-la no país. Quando você está sujeito a muitos interesses econômicos, empresariais e lobbys, caímos num risco de completa inviabilização do sistema. Não é que eu seja contrário à revisão das diretrizes, mas elas têm de ser feitas com critérios republicanos, técnicos e qualificados.
JL – Vamos voltar ao Programa Mais Médicos (PMM). As últimas pesquisas dizem que o Programa tem 70% de aprovação. Você acha que o PMM corre riscos?
AC – Setenta por cento no questionamento geral, mas se você for perguntar para os usuários, para os 63 milhões que o usam, a aprovação supera 90%. Aí tem os opositores políticos, juntos, dando 70% de aprovação. Mas creio que o Programa está em risco porque esse governo ilegítimo, esse governo do usurpador Michel Temer, ele estruturou um golpe com fortíssimo apoio dos principais adversários do Programa Mais Médicos, que são as entidades médicas. Que não só aderiram, mas financiaram, apoiaram. E estarão agora cobrando a conta. Há uma ação deliberada, e não há nenhuma novidade nisso, de total oposição ao governo da presidenta Dilma, ao PT e agora ao Programa Mais Médicos.
Só quero saber o seguinte: quando foi implantado o PMM, e este dado é muito bonito, os prefeitos de todos os partidos aderiram, porque a adesão ao Programa nunca foi obrigatória. Para o município participar o prefeito e o secretário de saúde tem que pedir adesão. Quando a gente analisa a adesão partidária, os prefeitos de todos os partidos aderiram, inclusive os do DEM, PSDB e do PMDB. Os golpistas.
Então eu só quero saber o seguinte, o que eles vão fazer agora? Eles vão dizer para a população deles que eles vão voltar atrás? Para os 63 milhões de brasileiros, os mais vulneráveis, os que nunca puderam contar a atenção básica, com uma equipe de saúde da família, com médicos.
Vão dizer que agora vai deixar de ter médico porque a elite brasileira médica está exigindo como pagamento ao apoio ao golpe que isso seja feito? Eu acho complicado.
JL- O que pode acontecer?
AC – O que pode acontecer é ficarem quietos. Em primeiro lugar não abrir mais as faculdades de medicinas previstas. Depois não mudar a residência médica para formar médicos de família, médicos que a população necessita. E em terceiro lugar ficarem esperando os médicos saírem e forçado com Cuba uma situação de beligerância para poder criar uma situação que o Programa vai acabar. Eles dizem vão transformar o Programa num programa de médicos brasileiros. Me lembro que quando eu saí do ministério contávamos com apenas 29% de médicos brasileiros.
JL- Qual panorama você faz da saúde especial indígena, dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs)?
AC – Eu vejo com muita preocupação, porque com o PMM todos os DSEIs passaram a contar com equipes médicas completas. É a primeira vez que isso acontece. Isso me preocupa muito, pois há uma especificidade em lidar com a saúde indígena que é a dimensão cultural, a relação com os caciques e pajés, com os conselhos distritais indígenas que têm uma forte representatividade. Penso que o grau de enfrentamento vai ser muito grande. Me preocupa porque os índios têm os piores indicadores de saúde do Brasil, como mortalidade infantil e tuberculose, entre outros. E agora que nós conseguimos estruturar uma estratégia de cuidados.
Foi a primeira vez que conseguimos ter, em 516 anos de história oficial, os 34 distritos sanitários com equipes completas. Então imagine o tamanho do retrocesso pois, fundamentalmente, são os médicos cubanos, entre poucos brasileiros, que estão nos lugares de mais difícil acesso.
Então é exatamente onde os brasileiros mais precisam, na sua situação de maior vulnerabilidade, vão voltar a ser os mais prejudicados, quando a gente vinha encontrando resultados maravilhosos.
JL- Hoje é dia nacional da luta antimanicomial, qual a sua preocupação com a saúde mental?
AC – Um retrocesso pelo que representam as forças políticas em torno dos golpistas, pelo papel que o Osmar Terra, um grande adversário da reforma psiquiátrica, exercerá agora como Ministro do Desenvolvimento Social e Agrário, e pela própria posição conservadora de Ricardo Barros. Nós temos uma Lei Federal que disciplina a reforma psiquiátrica, que produz com que o Brasil trabalhe na perspectiva de deixar de ser um país com leitos psiquiátricos em manicômios, para ter uma estrutura comunitária, uma estruturara substitutiva, com leitos em hospital geral e fundamentalmente as CAPES, tratando as pessoas em liberdade, com dignidade, com respeito aos direitos humanos. Me parece que essa é uma pauta exatamente contrária ao que esse aglomerado pensa. Porque se trata de trabalhar o transtorno mental numa perspectiva não de uma doença, de uma enfermidade, mas acima de tudo na discussão da cidadania, da inclusão social, do cuidado ao transtorno mental naturalmente, mas num cuidado que é feito também nessa perspectiva.
Na medida que ele voltar a ser só diagnóstico e que as forças mais conservadoras, que já começaram a ocupar a coordenação de saúde mental na gestão do [ex-ministro] Marcelo Castro.
Vejo com muita preocupação a guinada dos setores evangélicos, religiosos, que exploram as comunidades terapêuticas, numa guinada conservadora na política de álcool e droga, que a gente vinha caminhando a passos largos. É um trabalho difícil, desafiador, mas eu vejo grandes possibilidades de retrocessos.
Na verdade as grandes conquistas que nós fizemos no SUS, que é a ampliação de acesso, inclusão, equidade para olhar para quem é mais vulnerável nos setores mais sensíveis, para uma perspectiva que saúde não é só tratar da doença, mas é promover saúde, promover dignidade, é lutar por mais democracia, por mais respeito e dignidade. Atos como lidar com serviços de urgência do SUS, o SAMU, as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) para que façam parte da rede de notificações de violência contra a mulher ou dos acidentes e doenças do trabalho. São ações que só quem pensa políticas inter setoriais pode perceber a importância que elas têm para mexer nas questões estruturais como por exemplo as políticas de gênero ou as questões que estão relacionadas ao enfrentamento com a violência no trabalho.
Então, eu acho estamos correndo um risco, sim, porque a democracia no Brasil está em risco, porque a luta pelos direitos humanos está em risco e o SUS é uma política solidária, generosa e democrática pelo seus próprios princípios. Uma política pública que é universal, integral, que privilegia a dimensão da equidade. E uma questão que é de natureza constitutiva do SUS que é o controle social, a democratização da gestão, da transparência.
Me espanta ver um ministro, ainda que interino, de um governo usurpador, portanto não legítimo. Eu me recuso a aceitar Ricardo Barros um ministro da saúde legítimo. Eu posso não concordar com que o [ex-ministro] Marcelo Castro dizia, eu posso achar que ele pisou na bola na condução da questão do Zika Vírus, posso achar que ele foi um desastre, um retrocesso do ponto de vista da saúde mental, mas em hipótese alguma eu posso dizer que ele era ilegítimo. Ele foi escolhido por uma Presidenta legitimamente eleita pelo voto popular. Ricardo Barros é o ministro ilegítimo e, mais do que isso, é um desastre total.
Dizer, por exemplo, que vai controlar fraudes e que o problema do cartão SUS é o excesso de números de cartões é falar sem ter o mínimo de conhecimento do que se fala, pois não existe essa possibilidade da tripla cobrança. Ele não conseguiu entender que se a pessoa tem dois ou três cartões, todos eles se referem ao mesmo número, ao mesmo CPF. Já que ele é um engenheiro chegado as mudanças gerenciais, nos começamos não com reengenharia, mas com “reenganaria”.
JL – Sua saída do Ministério gerou uma polêmica enorme no PT e na esquerda. Que críticas você tem ao governo Dilma Roussef?
AC – [Minutos de silêncio]. As críticas que eu faço aos governos Dilma também cabem aos governos Lula e talvez elas sejam as coisas mais importantes para explicar o que a gente está vivendo hoje. É que não ousaram fazer as reformas as reformas que o Brasil precisava.
Dilma não ousou fazer a reforma tributária, não ousou fazer a reforma política, não ousou fazer a reforma tributária, não ousou fazer a reforma dos meios de comunicação, a democratização dos meios de comunicação e hoje paga um altíssimo preço. Não ousou fazer a reforma do Estado.
A gente fala mal da reforma Bresser, mas nós somos governo há 13 anos e nós ficamos presos ao mesmo desenho da administração pública do decreto 300 de 1967. A estrutura do Estado brasileiro, com pequenas modificações impostas pela reforma Bresser. Ela é a mesma imposta pela ditadura para tocar o Estado patrimonialista, clientelista, que favorece o setor privado.
Nós tivemos 13 anos de governo e não ousamos enfrentar essa agenda. Eu hoje tenho clareza, eu preferia ter ficado menos tempo no poder e ter feito reformas mais profundas. Quando a inclusão não se dá por valores, não se dá promoção de direitos, mas por inclusão ao consumo, ela acaba resultando muito provavelmente numa aliança e numa sustentação a projetos da direita, a projetos antidemocráticos, como a situação que estamos vivendo hoje.
Eu não tenho nenhuma mágoa da Presidenta Dilma. Compreendo e convivi com ela durante 20 meses em que fui ministro. Ela é uma pessoa extremamente honesta, séria, inteligentíssima, difícil de conviver, muito dura, muito auto- suficiente, mas eu não tive muitas dificuldades… na verdade tive, mas quase sempre fui ouvido por ela. Eu diria que o grande problema não é de ordem pessoal, mas pagamos o preço da não ousadia e de achar que produzir uma nova classe média noslevaria ao paraíso. A classe média foi ao paraíso, a vitórias pessoais, mas não consegue sequer ter a dimensão das políticas públicas e, ao mesmo tempo, ainda cai no discurso da Rede Globo.
JL – Muito obrigado
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