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Copa do Mundo

Entre Missa e Copa existe sobrevivência

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Ele era um daqueles torcedores fervorosos do futebol, porém, mais do que isso, era um trabalhador negro, brasileiro de esquerda, com fervor e emoção aplicados em demasia positiva toda vez que presenciava o campeonato mundial.

Embora eu e uma parcela considerável da esquerda ainda não tenhamos conseguido atingir, talvez, um tal “grau de evolução”, para vestir camisa verde e amarela, certamente meu pai, se estivesse aqui, jamais toparia a alternativa de vestir camisa vermelha só para ter um certo orgulho de não constar em sua história a marca de “parecer” um manifestoche. Essa fase ele já havia ultrapassado há tempos.

Para papai, torcer na Copa era momento de dizer que as cores verde, amarela, azul e branco eram dele, sim, e de quem se identificasse com a luta diária por um país menos desigual. Ainda mais seria em tempos tão duros – quando ele viveu para lutar nos debates, nas ruas e no Nordeste, onde vivia, contra a Ditadura por duas vezes, o impeachment de uma presidenta legitimamente eleita e a prisão do único ser que ele também chamava de “o cara”. Sobre esses dois últimos fatos, ele sempre falava: “minha filha, o que está acontecendo? Você que está aí em São Paulo, pode me explicar?”

Então, para relembrar os tantos encontros que fizemos em dias de Copa, com a casa cheia e a família reunida para assistir aos jogos, saímos da missa do 7o dia de seu falecimento com a leveza dos abraços, das palavras e das inúmeras formas de carinho que recebi dos amigos. Decidi fazer o que ele certamente faria se estivesse aqui, neste 17 de junho de 2018: ver a estréia da Seleção Brasileira na Copa do Mundo.

Estar com a família num local repleto por um misto de manifestoches, com gente de origem nordestina, roceira, gente da gente, não foi tarefa fácil. Mas foi ali que percebi que há beleza e racionalidade no luto.

No luto, mirar os olhos de um povo esperançoso pela vitória do Brasil é uma das maiores alegrias que a gente pode ter.

No único gol desse domingo, foi momento de me sentir carregada pelo meu pai; como ele sempre fazia para comemorar. Até a visão da chuva de papel picado eu tive. Deixe-me explicar: quando criança, nas semanas que antecediam os jogos, meu pai reunia na sala do apartamento os jornais velhos e nós cortávamos aquelas centenas de folhas, para depois, fazermos a tal chuva, pela janela do apê a cada gol do Brasil. Era época de uma CBF diferente da que temos hoje, ou talvez, éramos mais felizes e os paneleiros nem pensavam em existir. Tínhamos Sócrates, depois veio o Raí. Papai também me apresentou outros craques legais, daqueles, do jeito que a gente da esquerda gosta.

Hoje nós temos um Neymar, menino de origem pobre que se transformou numa das figuras mais bizarras do mundo capitalista; que joga truco e faz leque de nota de 100 reais para expor foto nas redes sociais. É, os tempos são outros e já não temos a mesma sorte. Difícil existir atletas preocupados em trazer a tão cobiçada taça só para que o povo fique feliz.

Há uma semana, meu pai assistia a bola rolar pelo Brasil, consciente de tudo isso, mas usava sua habilidade com as regras e as tabelas futebolísticas para debater política e golpe. Nos últimos tempos, mesmo doente, e embora de modo mais sútil, teve sucesso em muitas das vezes nos espaços por onde passava. Lugares muito parecidos com esse onde estive.

O jogo foi morno, mas a esperança que aprendi a enxergar pelos olhos do meu velho não morrerão. E das inúmeras lições que ficam, certamente a mais importante é essa da gente continuar fazendo o bom debate contra as desigualdades por mais vidas felizes. Quero muito continuar aqui por mais tempo para colocar em prática tudo o que um velho negro de esquerda lá do Nordeste me ensinou. E, quem sabe, encarar de novo um “local misto” para assistir a próxima partida do Brasil na Copa. Acredito que meu pai vai ficar orgulhoso e feliz de me ver fazendo uma das coisas que ele mais amava.

É tempo de renascer!

 

 

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Copa do Mundo

OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS – Morre um herói da nação brasileira, vítima da Covid-19

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OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS – 14/08/1939 – 10/04/2020

OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS 14/08/1939 – 10/04/2020

Nascido em 14 de Agosto de 1939, na Cidade de Arapuã, MG, Osvaldo Antônio dos Santos era filho de Gaspar Silvério de Oliveira e Maria Antônia dos Santos. Teve uma longa carreira profissional em várias empresas brasileiras e estrangeiras.

Militante da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, de Carlos Lamarca, Osvaldo “Portuga”, como Osvaldo Antônio dos Santos era conhecido, foi preso em 23 de janeiro de 1969 juntamente com Pedro Lobo de Oliveira, Ismael de Souza e Hermes Camargo em uma chácara nas proximidades de Itapecerica da Serra. No local, os quatro foram surpreendidos pela Polícia Militar de Itapecerica da Serra e levados ao Quartel do II Exército, no Ibirapuera.

Da prisão no quartel, Osvaldo Antônio dos Santos foi transferido para o DEOPS, onde permaneceu até 13 de novembro de 1969 quando, junto com outros detentos, deu entrada no Carandiru onde ficou até 8 de dezembro de 1969. A última escala foi no Presídio Tiradentes, de onde saiu no dia 16 de junho de 1970.

A liberdade, porém, não veio fácil. Em 11 de junho de 1970, enquanto as atenções do país estavam voltadas para a Copa do México, o embaixador da Alemanha Ocidental, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, era sequestrado no Rio de Janeiro, numa ação conjunta da Ação Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). As organizações guerrilheiras exigiram a libertação de 40 presos políticos, entre os quais estava o “Portuga”, que deveriam ser levados em voo fretado para a Argélia. Um manifesto contra a Ditadura foi divulgado em todas as redes de rádio e TV, furando a rigorosa censura imposta pelos militares.

 

Banido do território nacional, Osvaldo Antônio dos Santos chegou à Argélia e lá residiu por três meses. Posteriormente dirigiu-se a Cuba onde esteve de 1970 a 1971. Morou em Moçambique e na Alemanha. Retornou a Brasil com a Anistia Política. Foi casado com Denise Oliveira Lucena com quem teve dois filhos: Valter Bruno de Oliveira Santos e Renan Oliveira dos Santos.

Seu estado de saúde era delicado, pois teve câncer de próstata e apresentava um quadro de doença de Alzheimer. Faleceu nesta madrugada (10/04) vitimado pelo Covid-19. Estava internado no Hospital de Referência Emílio Ribas.

Não acontecerá o velório devido à letalidade da doença. O corpo de Osvaldo Antônio dos Santos será cremado em Embu das Artes, no Crematório Memorial Parque Paulista.

 

OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS, PRESENTE!

 

 

 

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Censura

Estado de Exceção avança com condenação de 23 manifestantes no Rio

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Por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá, da www.mediaquatro.com, para os Jornalistas Livres

O juiz federal Flavio Itabaiana condenou em primeira instância a penas entre 5 e 7 anos de regime fechado, 23 pessoas que participaram de manifestações entre 2013 e 2014. Entre eles não está nenhum apoiador do regime militar, ninguém que fez apologia a torturadores, nenhum político que votou pelo impeachment contra a corrupção ou flagrado combinando propinas e assassinato de parentes.

Manifestantes pedem a volta da ditadura na reedição da Marcha com Deus e a Família. 15/03/2014. Foto: www.mediaquatro.com

Mas há estudantes, professores, profissionais liberais, pessoas que tiveram a vida destruída por uma imagem de “black bloc” construída pela imprensa e até uma advogada que adotou um jovem durante esse processo. Há também dois jovens que estouraram um rojão numa manifestação matando um jornalista, mas que respondem a esse crime em outro processo e obviamente foram colocados nesse processo para qualificar todos como “quadrilha armada”, quando de fato nem se conheciam.

Black Blocs pixam fachada da Rede Globo em São Paulo. Junho de 2013. foto: www.mediaquatro.com

Entre junho de 2013 (veja aqui uma cronologia das principais manifestações daquele mês) e o agosto de 2014, milhões de jovens e nem tanto foram às ruas lutar, primeiro, por transportes dignos e, depois, por mais direitos, melhor educação, saúde, segurança pública, etc. As reivindicações iniciais eram TODAS de esquerda. 

Até o dia 13 de junho de 2013, a pauta única das manifestações era a diminuição das tarifas do transporte público e, invariavelmente, reprimidas com força excessiva pela PM. Avenida Paulista 13/06/2013. Foto: www.mediaquatro.com

Mas a direita, hábil e com apoio monumental da mídia hegemônica, transformou as manifestações em uma luta contra uma corrupção vaga que seria responsabilidade exclusiva da esquerda e especialmente do PT. Não faltaram declarações de que bastava tirar o PT do poder e voltaríamos ao paraíso da moralidade.

Em 17 de junho de 2013, a maior manifestação em décadas, mudou a pauta das reivindicações. Foto www.mediaquatro.com

A falta de senso de ridículo e pautas de direita como a redução nos impostos (o que inviabiliza as políticas públicas de educação e saúde, por exemplo) ganham as ruas. 17/06/2013. Foto: www.mediaquatro.com

Muitos petistas e aliados, por sua vez, passaram a ver nas manifestações uma luta contra o governo e não foram poucos os que apoiaram a repressão que, já em 2014 mas principalmente a partir de 2015, iria recair exatamente sobre as manifestações de corte à esquerda, enquanto as “sem partido”, as que exaltavam a ditadura militar etc passavam a ter selfies com a polícia ao invés de cassetetes e gás lacrimogêneo.

Manifestação pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Av. Paulista 13/04/2015

Com a efetivação do golpe em 2016, a direita sumiu das ruas e a esquerda foi massacrada em atos como os contrários à PEC do Teto dos Gastos (veja aqui e aqui ).


Dezenas de feridos pela PM tiveram de ser carregados pelos manifestantes para longe das bombas de gás e cassetetes. Brasília, dezembro 2016. Foto: www.mediaquatro.com

Poucos resistiram até o fim, quando o mesmo número de deputados que derrubaram a Presidenta eleita aprovaram a PEC do Teto dos Gastos . Brasília, dezembro 2016. Foto: www.mediaquatro.com

Se ainda se faz necessária a autocrítica da esquerda sobre o governo de uma ex-guerrilheira que aprovou uma lei antiterrorismo num país sem terrorismo dentro de uma política de conciliação que nasce na campanha de Lula em 2002, também é fundamental repudiar a destruição do Estado de Direito. Aceitar a sentença surreal do juiz Itabaiana (disponível aqui ) é aceitar o Estado de Exceção que permitiu a prisão até hoje de Rafael Braga por portar desinfetante. E também a prisão de Lula por “ato de ofício indeterminado”. Aceitar essa condenação é permitir que QUALQUER UM DE NÓS seja o próximo preso político do Brasil.

Para alguns dos condenados, aliás, o pronunciamento da sentença nesse momento é um recado das forças conservadoras para que não se faça novas manifestações políticas às vésperas das eleições como, por exemplo, pela libertação do ex-presidente Lula e sua possibilidade de concorrer a um novo mandato. Por isso, 12 dos 23 condenados por Itabaiana divulgaram hoje uma Nota de Repúdio e Chamamento à Luta contra quem pretende criminalizar as manifestações populares e reinstalar a censura no país e encher novamente as prisões de presos políticos.

#EstadoDeExceção

#EuApoioOs23

#NãoÀsPrisõesPolíticas

 

Liberdade para Lula. Liberdade para Rafael. Liberdade para os 23!

NOTAS DOS ATIVISTAS CONDENADOS POR CONTA DAS MANIFESTAÇÕES DE 2013/2014

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América Latina e Mundo

Futebol e colonização simbólica

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Hoje jogam duas seleções europeias, das ex-metrópoles França e Bélgica, contra duas seleções sulamericanas, das ex-colônias Uruguai e Brasil. Será que superamos o colonialismo mental? Por: Liana de Paula, Professora de Sociologia da Unifesp
Tenho acompanhado a mídia esportiva e, por estar ainda finalizando um pós-doc na Inglaterra, lendo/vendo bastante coisa publicada por jornalistas ingleses e franceses. E me chama a atenção a cuidadosa construção de heróis e anti-heróis da Copa e sua relação com uma reiteração de lugares simbólicos de colonizados e colonizadores.
Primeiramente, campeonato de futebol não é uma academia de boas maneiras em que só os moralmente louváveis ganham o presente do Papai Noel (aquele senhor moralista) de levarem a taça por serem ‘bons meninos’. Assim fosse, nem precisa de campeonato. Uruguai seria campeão desta Copa.
Mas, evidentemente, a mídia esportiva inglesa – e francesa – não está a tecer loas para a equipe uruguaia por sua moral. O negócio é valorizar o produto europeu.
E, assim, a mídia esportiva inglesa apresenta Harry Kane como um dos grandes heróis: ele é o moço branco, inglês e londrino (um feito de fato, considerando a quantidade de imigrantes em Londres), ele é pai de família (segundo filho nasceu ou nascendo), e ele é o capitão do time. Percebem a associação simbólica? A mídia esportiva inglesa joga o tempo todo com essa imagem do craque inglês bom moço.
Já Lukaku e Mbappé são figuras heroicas menos óbvias e bem mais complexas por serem negros, de famílias vindas de ex-colônias africanas e pela delicada construção de identidade que representam. Mas a mídia esportiva inglesa e francesa os simplifica brutalmente e tenta apresentá-los como a possibilidade de redenção das ex-metrópoles, como se o drama da colonização pudesse ser resolvido a partir do bom desempenho deles nos gramados. Lukaku sabe disso, e já declarou que, quando joga bem, é belga, quando joga mal, é belga de origem congolesa.
Enfim, não podemos ter uma vida maniqueísta sem anti-herói e o escolhido do momento é o brasileiro Neymar. Neymar é pintado, na mídia esportiva inglesa e francesa, como o símbolo do ‘selvagem’ que justifica a colonização. É o colonizado mau caráter que simula sua dor, que tenta enganar para levar vantagem.
E assim, em pleno século XXI, temos recolocado em um campeonato de futebol toda a força da ideologia colonial, que quer impor a primazia do europeu dentro e fora do campo. Se o Brasil ganhar, sua vitória será diminuida pela construção de uma imagem colonizadora do mito do mau-Neymar.

PS: Neymar não é santo, longe disso. Kane, Lukaku e Mbappé também não são. E nenhum deles está ali buscando a beatificação. Minha crítica volta-se para a mídia esportiva, e seus moralismos coloniais.

PPS: Por tudo isso, achei ainda mais vergonhosa a fala do Osorio, técnico do México, reiterando para a mídia esportiva internacional que Neymar é um mau exemplo para as crianças. Juan Carlos Osorio foi o colonizado útil/subserviente nessa fala.

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