ARTIGO
Abner F. Sótenos, doutorando da University California San Diego, e Daniel Pinha, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
George Floyd foi morto no último 25 de maio após detenção policial na cidade americana de Minneapolis no estado de Minnesota. Floyd era um homem negro de 46 anos, asfixiado por quase oito minutos após ter sido algemado e imobilizado pela polícia local. Um dos policiais, que é branco, ajoelhou sobre o pescoço de Floyd e, com as mãos nos bolsos, posava para as câmaras de celular que filmavam Floyd agonizando e implorando pela mãe e por ar. As últimas palavras de Floyd foram: “Eu não consigo respirar!”. Esta frase estampou cartazes e se tornou um dos lemas dos protestos antirracistas que varrem o país até hoje. Ao público brasileiro que acompanha este caso, surge a incômoda pergunta: se caso semelhante ocorresse no Brasil, como seria a repercussão e mobilização social?
O caso Floyd nos abre a possibilidade de pensar que o lema “Vida Negras Importam” não seja exclusivo dos negros. Nas ruas norte-americanas se observa a formação de uma frente multiétnica. Mais do que isso. Há o reconhecimento do privilégio branco a serviço da luta antirracista: mulheres brancas formaram cinturões humanos para proteger negros da ação policial nas manifestações. Importante lembrar, neste sentido, o papel dos movimentos sociais e black scholars na educação da população, na contínua mobilização de brancos e negros, após a frustração do resultado eleitoral de 2016. Este processo de formação fez com que a população não entendesse as lutas antirracistas atuais como separatistas ou supremacistas.
No Brasil, não identificamos ainda uma associação direta entre racismo e privilégio, ou seja, não há o reconhecimento de que brancos se beneficiam do racismo estrutural. Isso dificulta a formação de uma frente racial por aqui e o racismo é entendido como problema dos negros e marca de seu vitimismo. Negros são atingidos pelo racismo, mas não os causadores do racismo e não devem ser os únicos responsáveis por seu combate.
Racismo à brasileira
O racismo brasileiro é entendido geralmente como uma ação de indivíduos isolados considerados às vezes ignorantes, às vezes perversos, mas quase nunca inseridos numa lógica social. A violência do Estado contra pessoas negras e indígenas mobiliza muito pouco a opinião pública brasileira. Muitas vezes tais violências não são percebidas como racismo, ainda que sejam praticadas sistematicamente contra grupos específicos, negros e indígenas. O exemplo disso é a letalidade policial. A polícia mata quase que exclusivamente a população preta – negros e pardos. De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), no primeiro semestre 2019, cerca de 80 % das vítimas policiais no Rio de Janeiro eram pretas. Dados mais recentes, apontam que, entre janeiro e abril de 2020, houve aumento significativo no Brasil de assassinatos cometidos por policiais civis e militares. Somente em abril, em pleno período de quarentena, houve estados em que a letalidade policial aumentou mais de 53% quando comparado ao ano anterior. Ao mesmo tempo, estudos apontam que jovens negros são os alvos preferencias dos homicídios cometidos no país.
O racismo no caso brasileiro deve ser visto como ele funciona, operado pelas instituições públicas e privadas. Muitos casos ganharam dimensão nacional, mas não dispararam grandes mobilizações de rua, somente alguns atos na localidade em que a pessoa foi assassinada. Os assassinatos praticados entre 2019 e 2020 superam em muito os ocorridos nos Estados Unidos. Os exemplos se multiplicam, neste sentido.
O caso do músico Evaldo Rosa, assassinado no Rio de Janeiro com 80 tiros disparados pelas forças interventoras do Exército brasileiro na cidade. Já a menina Ágatha Félix, de 8 anos, também assassinada por forças policiais em 2019 na cidade do Rio de Janeiro. As investigações apontaram que Ágatha foi assassinada pela Polícia Militar, que atirou a esmo num motociclista desarmado; a bala atingiu a menina dentro do transporte onde ela estava junto com a mãe. O assassinato do adolescente João Pedro, morto pela PM em casa, em meio à pandemia, embora tenha causado muita revolta não parou o país. Agora, no último dia 24 de abril, o jovem David Nascimento dos Santos, de 23 anos, foi sequestrado pela PM paulista e encontrado morto tempos depois. David, que morava numa favela em Jaguaré, Zona Oeste de São Paulo, esperava seu lanche chegar depois de um pedido feito pelo aplicativo iFood. As imagens captadas por uma câmera da rua revelaram o sequestro. As circunstâncias da morte do jovem negro Pedro Henrique Gonzaga, em fevereiro de 2019, são ainda mais tragicamente próximas as de George Floyd: asfixiado até a morte por um golpe de “mata-leão”, realizado por um segurança da rede de supermercados Extra, no Rio de Janeiro, na presença da mãe e sob lentes filmadoras.
No Brasil, assassinar negros e negras virou algo cotidiano e naturalizado. O caso Floyd parece ter mobilizado mais a imprensa brasileira do que casos ocorridos aqui. A distância parece trazer uma espécie de conforto e a segurança de que a cobertura não incitará maiores riscos sociais ou uma espécie de chamado às ruas. Grosso modo, a imprensa tem apoiado não só a causa, mas as manifestações. O caso Floyd trouxe à tona a necessidade de negros conduzirem o debate sobre racismo na TV. Exemplo emblemático neste sentido foi a postura do canal de TV por assinatura Globo News que, após receber uma série de críticas nas redes sociais, trocou uma bancada de comentaristas formada por jornalistas brancos, por outra formada por negros, para tratar do caso. Ou seja, a própria forma de contar se tornou um fato digno de nota, mostrando o quanto a perspectiva anterior revelava o ponto de vista branco pretensamente universal.
De orientação liberal, a abordagem da grande imprensa evita relacionar racismo estrutural e capitalismo. Reformas liberais, como a previdenciária, trabalhista e a PEC do Teto dos Gastos, amplamente endossadas pela grande imprensa, atacaram diretamente direitos dos trabalhadores. Sobretudo os negros, submetidos às condições de maior vulnerabilidade social. Exemplo disto ocorre no contexto da pandemia de Covid-19, em que negros ocupam as ruas a trabalho, fazendo entregas, transportando pessoas, vendendo máscaras, dentre outras atividades que põem suas vidas em risco.
A morte trágica do menino Miguel evidenciou estas condições vulneráveis do trabalho negro em meio à pandemia: sua mãe, dona Mirtes, trabalhadora doméstica, não teve a “escolha” de aderir à campanha do “Fique em casa”. E se dona Mirtes descuidasse do filho da patroa branca, quais não teriam sido as consequências para ela?
Floyd em meio ao racismo-neofascista
A luta antirracista no Brasil é histórica, mas encontra no contexto atual obstáculos ainda maiores. O processo de “fascistização de setores sociais” torna as circunstâncias de reprodução do racismo ainda mais perversas. Em primeiro lugar, discursos em defesa da ação violenta da polícia são amplamente aceitos e aplaudidos por parcelas significativas da sociedade que, nas últimas eleições de 2018, elegeram não apenas um presidente com histórico de declarações racistas, mas também governadores e parlamentares que se vangloriavam de discursos em defesa do “homem de bem” branco. Será que, por exemplo, o discurso em defesa do porte de armas imagina que negros possam utilizá-las para defesa de incursões policiais em suas residências?
Em segundo lugar, há o que podemos chamar de “negacionismo do racismo”. Não se trata apenas de disseminar o falso discurso de igualdade e democracia racial, tentando impor o esquecimento do trauma da escravidão. Mas agora esta modalidade negacionista é mais contundente. Ataca símbolos das lutas do movimento negro, aponta dimensões positivas da escravidão, reduz o problema estrutural do racismo ao chamado “mimimi”. O atual presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, é o caso mais exemplar em relação a isso. Ele é pago pelo Estado, com recursos de homens e mulheres negras, para negar a existência do racismo, invertendo inteiramente o propósito de seu cargo.
Por fim, se George Floyd fosse brasileiro, o raciocínio racista-neofascista traria para primeiro plano a cínica afirmação feita em tantos casos: “Mas também, alguma coisa ele deve ter feito para merecer aquilo”. Uma afirmação, por vezes silenciosa, por vezes explícita, que revela o extravasamento do racismo praticado aqui. Aliás, nunca foi tão questionável a afirmação de que por aqui o racismo é velado, silencioso. Aqui se pratica política de morte, posta à prova de maneira contundente contra o corpo negro, acertado pela bala ou pelo joelho de um policial. Depois, atingido pela narrativa que banaliza e justifica sua morte, normaliza a violência, relativiza a brutalidade dos assassinos.
Se George Floyd fosse brasileiro, seu corpo negro seria alvo da política de morte praticada aqui e a barbárie racista-neofascista trataria de liquidar não só seu corpo, mas sua memória. Por aqui, mais do que nunca, está muito difícil respirar… Por isso, no Brasil de hoje, uma premissa é inescapável: qualquer iniciativa de luta democrática e antifascista só será efetiva se for antirracista.
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5 respostas
Bem legal e interessante, adorei o conteúdo.
Agora temos um George Floyd brasileiro com o assassinato no Carrefour. A carne mais barata no mercado é q negra.