Do nordeste para o sudeste, a poesia de cordel no Festival da Reforma Agrária em BH

Gustavo Miranda/Sô Fotocoletivo

Os versos, e a rima em si, é uma característica marcante da poesia de cordel. Existem várias formas de estrofes e versos que se encaixam na produção cordelista. Constituída desde estrofes, com o mínimo de quatro versos a estrofes com mais de dez versos, a literatura de cordel tem forte presença no nordeste brasileiro. E foi na oralidade que o cordel teve seu início, sendo muitos repentistas exemplos de cordelistas.

A maioria dos poetas da literatura de cordel são nordestinos. Isso não significa a inexistência da poesia de cordel em outras regiões do país, mas sem sombra de dúvidas, os poetas cordelistas estão presentes em menor número no sudeste, no sul e no centro-oeste. A presença marcante do cordel na região nordeste explica-se desde a chegada da corte portuguesa em terras brasileiras. Sabe-se que se aportaram em Salvador e junto com os desejos de desbravar e conquistar novas terras, a literatura de cordel também desembarcou aqui, em terras tropicais. Dessa forma, já no século XVIII, encontrava-se literatura de cordel produzida pelo nosso povo brasileiro. E no século XIX já era marcante a presença do cordel com características essencialmente brasileiras.

Gustavo Miranda/Sô Fotocoletivo

 

Durante o Festival Nacional de Arte e Cultura da Reforma Agrária do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra), que aconteceu em Belo Horizonte entre os dias 20 e 24 de julho, a literatura de cordel marcou presença. Na programação oficial do evento, todos os dias ocorreram a Mostra de Poesia Luiz Beltrame, com apresentação de poemas e composições dos integrantes do MST. Beltrame é um poeta nordestino com mais de 100 anos de idade e integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra.

Além da programação oficial, havia ali, dependurados, apoiados em uma pilastra do Galpão da Serraria Souza Pinto, vários livros de poesia de cordel expostos. O preço? Baratinho. Dois reais apenas por uma literatura essencialmente nordestina. “Essa é a mercadoria mais barata do Festival. E aqui, nesse local, com certeza, tem em média 500 poetas, dentre escritores e compositores participando do evento”, enfatizou o poeta que expunha suas poesias de cordel.

 

Gustavo Ferreira / Sô Fotocoletivo
Gustavo Miranda/ Sô Fotocoletivo

Alexandre Salles, o poeta solitário, vindo de Gameleira, a 98Km da capital de Pernambuco, além de dependurar os livrinhos para serem vendidos, é também o autor das poesias. “Cheguei aqui e consegui um bom preço no xerox para produzir meus livros. Agora vou expor eles durante a feira”, contou Alexandre, enquanto dobrava e grampeava seus livros de cordel. O poeta afirma que, especialmente para o Festival da Reforma Agrária, ele produziu dois cordéis inéditos “A era LULA –  Tempos de Fartura” e “A Luta Pela Terra – É o dia a dia do Agricultor”. Vale ressaltar que, as publicações de cordel, quase sempre, são feitas pelos próprios poetas de maneira artesanal, em folhas de papel A4, partidas ao meio, dobradas e grampeadas. Os materiais essenciais para produzir os livros de cordel é uma guilhotina de cortar papel, um grampeador e a disposição em dobrar cada livrinho. “Pronto! Agora já estão todos à mostra e disponíveis para a venda”, completa Alexandre.

Gustavo Ferreira / Sô Fotocoletivo

 

Gustavo Ferreira / Sô Fotocoletivo
Gustavo Miranda / Sô Fotocoletivo

E ainda, falando-se da presença de poetas cordelistas no Festival da Reforma Agrária do MST em BH, José Paes de Lira, o Lirinha, poeta da cidade de Arco Verde, interior de Pernambuco, e ex-vocalista da extinta banda Cordel do Fogo Encantado, foi um dos convidados do evento. Quando chamado ao palco, ele expôs que sua paixão pelo cordel deu-se após conhecer as poesias de Ariano Suassuna, importante poeta cordelista nascido em João Pessoa, na Paraíba. E ali, acostumado com o palco, o pernambucano Lirinha demonstrou sua aproximação com o MST e a felicidade em participar daquele momento. Seus versos, declamados em tom forte e rimas cantadas, foram ouvidos pela plateia, que sentada no chão, próximo ao palco, permanecia com olhares fixos e ouvidos atentos às palavras declamadas.

Gustavo Ferreira / Sô Fotocoletivo
Gustavo Miranda / Sô Fotocoletivo

Ai! Se sêsse!…

Se um dia nós se gostasse;
Se um dia nós se queresse;
Se nós dos se impariásse,
Se juntinho nós dois vivesse!
Se juntinho nós dois morasse
Se juntinho nós dois drumisse;
Se juntinho nós dois morresse!
Se pro céu nós assubisse?
Mas porém, se acontecesse
qui São Pêdo não abrisse
as portas do céu e fosse,
te dizê quarqué toulíce?
E se eu me arriminasse
e tu cum insistisse,
prá qui eu me arrezorvesse
e a minha faca puxasse,
e o buxo do céu furasse?…
Tarvez qui nós dois ficasse
tarvez qui nós dois caísse
e o céu furado arriasse
e as virge tôdas fugisse!!!


*Poeta: Zé da Luz

No improviso com as palavras, o cordelista tira seus versos ou, que sejam versos e estrofes pensadas e escritas, para depois ser inseridas nos livros. Temas sobre o amor, a solidão, a vida sertaneja, a cultura nordestina, as aventuras, além de ficções e fatos jornalísticos estão presentes na literatura de cordel. Em uma conversa franca e descolada com o poeta, músico e compositor Lirinha, a caráter de exemplo, ele cita como o cordel, ainda antes da televisão e do rádio, servia para levar informação à sociedade.  “Contaram-me que, quando Getúlio Vargas se suicidou, por volta  de 8h30 da manhã, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, às duas horas da tarde já tinha na feira de Campina Grande a morte de Getúlio em um folheto de cordel, escrito com as características que definem a literatura cordelista.”

Gustavo Ferreira / Sô Fotocoletivo
Gustavo Miranda / Sô Fotocoletivo

 

Segundo Lirinha, a literatura de cordel teve seu auge por um contexto histórico: nas décadas de 30 e 40, a poesia de cordel era o jornal do sertão nordestino e também o entretenimento.  “Naquela época, os folhetins, ou cordel, eram o que equivale hoje às novelas. Naquelas décadas, o cordel significava o encontro pós janta para a leitura de poesia ao redor do fogo”, argumenta Lirinha.

Alexandre Salles, o poeta solitário, integra o MST e participa do Festival com a sua banca de frutas, legumes e verduras, vindas diretamente de Gameleira/PE, e aproveita para expor e vender seus livros de poesia.  Alexandre conta que sua missão é não deixar morrer a poesia de cordel. E mesmo que ela não lhe dê renda para sobreviver, não a deixará. “A nossa cultura está ameaçada de morte. Nós, cordelistas, estamos entrando em extinção. E eu, que sou jovem, tenho a missão de carregar a poesia de cordel até o futuro. Nós, nordestinos, carregamos nossa cultura no DNA”, afirma o poeta solitário, de 28 anos. Alexandre vende, juntamente com sua família, às margens da BR 101, no KM159, o que produz e tira da terra: frutas, legumes e verduras. Na barraca de alimentos agroecológicos, ele aproveita para vender suas poesias.

Sobre a luta pela poesia de cordel e sua obstinação em estimular e levar a leitura às pessoas, o poeta solitário conta que “uma vez, um caminhoneiro falou que não ia comprar os livros porque ele dirigia muito e não teria tempo de ler. Mas eu insisti e ele levou. E não é que, depois quando o vi novamente, ele disse que leu meus cordéis. Teve uma paralisação na estrada por onde ele viajava, daí contou que em 30 minutos leu as poesias que tinha comprado comigo”, relata Alexandre, sobre suas experiências em vender seus livros.

Gustavo Ferreira / Sô Fotocoletivo
Gustavo Miranda / Sô Fotocoletivo

Salles também conta a dificuldade que existe onde mora, para digitar e imprimir seus cordéis. “Lá em Gameleira, as lan-house não querem digitar as poesias, porque não dá lucro para eles. Além do xerox também ser muito caro. Aqui consegui a 0,05 centavos, acima de 100 cópias, onde moro, é 25 centavos acima de 100”, desabafa Alexandre, que também afirma ser avesso à tecnologia. “Não tenho computador, não tenho celular, não uso internet. Sou do tempo do bilhete e da carta, sou da moda antiga”, esclarece o poeta, que também reconhece que, para ele, a tecnologia não é só coisa ruim. “Na verdade, a tecnologia oferece coisas boas e você pode usar a seu favor. Mas, no Brasil muita gente a usa de maneira errada”, completa Alexandre, que ainda depois dessa afirmação finaliza: “Sou da idade da pedra. Sou Alexandre Salles, o poeta solitário.”

O sem-terra e poeta pernambucano conta que a solidão é a grande companheira do cordelista. “O cordel surgiu para mim através da solidão e também por meio do MST. Na época eu fazia parte da base de militância Pé no Chão, em Caruaru/PE.  De lá, veio a vontade de fazer poesia, pois a solidão era minha companheira.”

Sentado à beira da cama

Sozinho me ponho a pensar

Será q existe mulher que me ama

Se existe aonde está

Da cama vou para a sala

Da janela começo a olhar

Toda essa solidão me abala

Da vontade de chorar

Da sala eu vou pro terraço

As estrelas começo a contar

Ás vezes preciso de um  abraço

E não tenho ninguém  pra me dar

Do terraço eu vou pra cozinha

Vou tentando disfarçar

São tantas mulheres sozinhas

Mas a minha aonde está?

Da cozinha entro no banheiro

Ali eu tomo meu banho

Meu coraçãoo tá solteiro

procurando alguém do seu tamanho

Onde será que está ela…..

Poeta: A. Salles, o poeta solitário

 

Hoje, a literatura de cordel segue viva, mas não tão viva assim, pois na era de computadores, internet e comércio de livros caros, o cordel pode ser que passe despercebido. Porém, os lutadores da poesia, cordelistas de coração, escrevem e produzem seus próprios livros e saem às vendas, a exemplo do Poeta solitário. Com uma postura firme na fala e o sotaque pernambucano, ele conta que gostou de Belo Horizonte. “Aqui as pessoas parecem ser muito acolhedoras. E de agora em diante eu não perco mais nenhuma feira dessa. Isso é bom demais!” Para completar sua satisfação, Salles conta que todos os exemplares do título “A era LULA –  Tempos de Fartura” foram vendidos, e àquela altura, na manhã de domingo do último dia do Festival da Reforma Agrária do MST, ele já tinha procurado pelo centro de Belo Horizonte, algum local onde pudesse fazer mais cópias para vender.

Gustavo Ferreira / Sô Fotocoletivo
Gustavo Miranda / Sô Fotocoletivo

 

O trânsito da poesia de cordel

Ali, bem à porta  da Serraria Souza Pinto, onde durante quatro dias aconteceu o Festival da Reforma Agrária do MST, rolava um rap. Era domingo, 24 de julho, e era dia de Duelo de MC’s, evento realizado pelo coletivo Família de Rua, que promove batalhas de freestyle entre os mc’s que animam se inscrever e competir, em que vencem as melhores rimas.

Gustavo Ferreira / Sô Fotocoletivo
Gustavo Miranda / Sô Fotocoletivo

 

Batalha essa que é feita de palavras. Palavras essas que compõem versos e formam poemas. O mestre de cerimônia, o rapper Douglas Din, com o boné aba reta do MST na cabeça, pede licença à geral do rap, e disse que ali estava para apresentar um poeta. Nesse momento, rolava um break, que foi interrompido para prestigiarem a poesia. Especificamente a poesia de cordel.

“Peço licença para apresentar um cara referência na poesia pra mim. E o rap é composto de poesia. Com vocês, Lirinha, vocalista  da banda Cordel do Fogo Encantado”, bradou ao microfone Douglas Din. Daí em diante, no palco do rap, no Viaduto Santa Tereza, o que rolou foi poesia de cordel e todos atônitos, prestando atenção às palavras que Lirinha entoava para a crew do hip hop do Duelo de MC’s.

 

Gustavo Miranda/Sô Fotocoletivo

 

À frente de Lirinha, centenas de pessoas o fitavam ao final dos versos, gritos de wow e assovios de exaltação devido às poesias declamadas, eram entoados pela galera do Duelo.

Depois da inserção poética de cordel no palco do rap, o poeta solitário, Alexandre Salles,  ao encontrar com o repórter aqui, disse que já estava de partida. Dali a pouco o ônibus da galera do MST de Pernambuco já seguiria rumo ao nordeste. Enquanto isso, o poeta solitário sempre frisava, ao ver caixotes, garrafas e embalagens sendo descartadas, que aquilo tudo, em Gameleira/PE, viraria arte. É assim a cabeça de quem pensa e vive poesia, sempre quer construir algo e transformar seu entorno. Salve salve a poesia de cordel.

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS