A crise do capitalismo brasileiro

Almoço do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social. Foto: Beto Barata/PR

Para compor esse artigo, foram selecionados trechos do texto para discussão do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro: A Guerra de Todos contra Todos: A Crise Brasileira, que analisa a atual crise brasileira em três dimensões interdependentes: acumulação, cena política e relação entre o bloco no poder e o Estado. Os trechos são apresentados na forma de perguntas e respostas.

1 Quem está em crise no Brasil: a política, a economia ou o capitalismo?
O capitalismo brasileiro atravessa uma de suas maiores crises. Uma crise que ocorre simultaneamente em três dimensões:
i0 acumulação;
ii) cena política (sistema partidário, partidos e representação); e
iii) relação entre o bloco no poder e o Estado.

2 O que é “centro de poder” e quem o detém hoje no Brasil?
Os aparelhos, órgãos e instâncias que concentram a capacidade de decidir (“poder efetivo”) são os “centros de poder” do Estado. A operação Lava Jato – aparato institucional que investiga práticas de corrupção na Petrobras e em outros órgãos governamentais – deslocou o “centro de poder” do Estado brasileiro para suas mãos. A megaoperação é conduzida por segmentos da alta classe média – juízes, procuradores e delegados federais [….].

3 O que a Lava Jato expôs?
Esta condução expôs as vísceras da relação entre o Estado e sua burocracia e parte do bloco no poder (frações de classe proprietárias de grandes corporações) do capitalismo brasileiro. Tais vínculos têm sido historicamente marcados por relações não republicanas envolvendo financiamento de campanha partidária, obras públicas e mudanças regulatórias em prol dos interesses capitalistas em suas relações com a cena política e o Estado.

4 Essas relações não republicanas são exclusivas do capitalismo brasileiro?
É preciso alertar que esse tipo de relação entre o bloco no poder e o Estado não se restringe ao capitalismo brasileiro, pois sempre há uma relação intrínseca entre o bloco no poder, a cena política e o Estado; uma vez que este último (suas políticas e regulamentações) é um elemento intrínseco/endógeno ao processo de acumulação do capital e de dominação de classe por meio do binômio repressão/ideologia.

5 Como se iniciou a crise de acumulação?
A acumulação de capital travou em 2015 e continuou travada em 2016.
[…]
A queda das taxas de rentabilidade, com a elevação dos salários, reascendeu o conflito distributivo entre capital e trabalho, o qual fora amenizado durante o governo Lula, em virtude da conjuntura internacional extremamente favorável (dado o efeito China) que possibilitou um período atípico, marcado por maiores taxas de acumulação (crescimento do PIB e das taxas de rentabilidades) e, ao mesmo tempo, a configuração de um “jogo de ganha-ganha” – materializado pela busca de coalizões de interesses entre as burguesias (industrial, financeira e agrícola) e o movimento sindical e popular.

6 De que forma se explicita o aumento do conflito distributivo?
O aumento do conflito distributivo e a dificuldade da gestão petista em controlar os conflitos
provocaram uma paulatina desconfiança do bloco no poder da forma petista de governar (“jogo de
ganha-ganha”), que já tinha aparecido, em menor grau, nas eleições de 2014 e, em maior grau, com
o apoio dos segmentos dominantes ao impedimento da presidenta Dilma no final de 2015.

7 Como reagem as frações dominantes do bloco do poder?
[…] frações do bloco no poder começaram, em momentos diferentes, a defender a redução do conflito distributivo por meio da redução dos custos da força de trabalho (reforma trabalhista e da terceirização) e da reforma da previdência, abrindo novos espaços de acumulação via previdência privada e a redução dos gastos públicos.

8 Como o bloco no poder induz à inevitabilidade das reformas?
[…] não surpreende que a partir desse cenário o bloco no poder e suas frações (inclusive
as vinculadas às atividades de comunicação e jornalismo) tenham passado a patrocinar de forma
explícita, publicamente, e junto aos seus representantes no Congresso, a tese da inevitabilidade das
reformas que, na verdade, visa a realização de um enorme ajuste acerca da remuneração do trabalho e dos gastos do Estado (em especial os sociais) argumentando que tais medidas poderiam destravar a acumulação.

9 Quais foram os acordos entre o bloco no poder e a classe política?
[…] o presidente do Senado, Renan Calheiros, propôs a Agenda Brasil (no final de 2015) fortemente alinhada com o ajuste fiscal e com a ideia de reformas em prol dos empresários. A Agenda Brasil desdobrou-se no documento Uma Ponte para o Futuro, adotado por toda a cúpula do PMDB, como o programa de governo para desbloquear a acumulação.
[…] parar a Lava Jato era a outra parte do acordo (com o bloco no poder e os partidos políticos) do PMDB para alcançar a presidência por meio do impeachment. Pelo lado do bloco no poder (grandes empresários), interromper a Lava Jato significaria restabelecer as relações entre o bloco no poder e o Estado de forma mais tradicional e estável.

10 Existia uma coordenação entre as forças sociais (grandes empresários, imprensa, políticos, burocracia e Lava Jato) que se uniram pelo impedimento?
É evidente que, por conveniências próprias, essas forças sociais se uniram pela remoção do PT e de Dilma, mas cada uma delas mirando demandas específicas buscando reforçar seus poderes particulares, a saber:
i) O bloco no poder procura implementar as reformas para destravar a acumulação, enquadrando o trabalho e os mais pobres, e restabelecer a relação entre o bloco no poder e o Estado com a suposta desaceleração da Lava Jato prometida pelo PMDB;
ii) A grande mídia tem por finalidade defender as reformas e, principalmente, aumentar seu poder econômico e político, diante das outras forças sociais do bloco no poder e do Estado, por meio do vazamento das informações da Operação Lava Jato;
iii) Os políticos, especialmente os do PSDB, visam eliminar, ou reduzir, o PT da cena política e, sobretudo, interromper a Lava Jato através do governo Temer.
iv) A Lava Jato ambiciona aumentar seu poder e legitimidade – por meio dos vazamentos para diversos órgãos da grande imprensa e da consequente deslegitimação do sistema político – junto à opinião pública em busca da continuação de sua empreitada messiânica contra a corrupção.

11 Qual é a estratégia da Lava Jato? Ela foi modificada após o impedimento de Dilma?
O governo Temer viveu a sua primeira crise política que, inclusive, implicou a saída do Senador Romero Jucá do cargo de ministro do Planejamento. A Lava Jato continuava com sua estratégia: vazamento/publicidade → instabilidade → deslegitimação política → legitimidade da operação junto à opinião pública e, sob pressão, às instâncias superiores do judiciário, em especial o STF.
A partir dessa crise ficava claro que não havia uma coordenação entre os segmentos dominantes, grande imprensa, os políticos, parte da burocracia, judiciário e a Lava Jato.

12 Qual é a avaliação que podemos fazer desse primeiro semestre de 2017?
Os interesses imediatos do bloco do poder (poder de classe) estão desvinculados temporariamente do centro de poder do Estado brasileiro (poder de Estado) que hoje se encontra na Lava Jato (lócus institucional) e que representa interesses e identidades próprias da classe média alta brasileira. Com isso, a dinâmica política e econômica atual é fortemente influenciada, por um lado, pelo avanço dessa operação sobre os políticos e os empresários de diversos ramos, e, por outro, pelas reações do sistema político, empresarial e de parte do STF na tentativa de conter o poder da Lava Jato. Esse “jogo” de ataques e contra ataques é retroalimentado pelos vazamentos seletivos que os agentes da Lava Jato divulgam com o propósito de obstaculizar os que tentam refreá-los.

13 A Lava Jato Vem dificultando as reformas?
Considerando que inicialmente os interesses da Lava Jato convergiam para os desses segmentos dominantes (impulsionamento do impedimento da presidenta Dilma), agora a Lava Jato dificulta em muitos momentos as reformas em virtude da instabilidade política criada pelos vazamentos. Ademais, também desfruta do poder de encarcerar boa parte dos políticos e empresários do capitalismo brasileiro – os quais sempre utilizaram o expediente do caixa dois no financiamento de campanhas.

14 De onde surge a guerra em curso?
Cabe enfatizar que a gênese desse processo descoordenado e semelhante a uma guerra fratricida antecede o governo interino de Temer. Na verdade, decorre do consórcio de poder que se formou entre, por um lado, a PGR/República do Paraná e, por outro, os grandes meios de comunicação, num cenário de crise de acumulação e de ruptura das relações entre o bloco no poder e o Estado. Com base em princípios supostamente éticos, empreende-se a completa criminalização dessa relação, que ocupa um lugar central dentro da “normalidade” da reprodução do capital, supondo-se que seria necessária e possível uma completa separação entre interesses privados e públicos.
[…]
Refundar o capitalismo brasileiro patrimonialista seria a missão.

15 A Lava Jato está vinculada aos interesses dos segmentos dominantes?
[…] a Operação Lava Jato – o atual centro de poder do estado brasileiro – encontra-se desvinculada diretamente dos interesses imediatos do bloco do poder em sua busca pela recuperação da acumulação de capital vias reformas neoliberais.

16 Os membros da Lava Jato têm um projeto de país?
Pelo contrário, à medida que avança, ele retroalimenta a instabilidade, inclusive de forma premeditada, e trava ainda mais a acumulação em virtude da manutenção da ruptura da relação entre o bloco no poder e o Estado.

17 Há participação estrangeira nesse processo? Há interesses estrangeiros?
Para muitos analistas internacionais (BANDEIRA, 2016; METRI, 2016; ROCHA, 2016), as primeiras informações sobre a corrupção na Petrobras e suas conexões com as empresas líderes da construção civil nacional, obtidas pelo juiz Sérgio Moro, teriam sido, provavelmente, repassadas pela Agência Nacional de Segurança (NSA) – que monitorou/espionou de forma sistemática as comunicações da Petrobras, interessados na exploração em águas profundas da camada pré-sal – via Departamento de Justiça americano.

18 Quais seriam os interesses dos agentes externos?
Essa desestruturação das bases produtivas e institucionais brasileiras interessa sim aos agentes externos, especialmente os norte-americanos, pois isso (i) possibilita a abertura da exploração do pré-sal para as empresas estrangeiras; (ii) retarda/paralisa o projeto nuclear brasileiro; (iii) desestabiliza o engajamento do Brasil aos arranjos configurados pelos BRICS; e (iv) desestabiliza a presença das empresas de construção civil nacional na América Latina e África, abrindo mercados para novos entrantes (BANDEIRA, 2016; METRI, 2016; ROCHA, 2016).

19 Quais os efeitos da combinação da criminalização do capitalismo brasileiro com as reformas neoliberais?
O rastro de degradação produtiva e institucional em curso, vinculado à criminalização completa da maneira como funciona o capitalismo brasileiro, ganha ainda mais força – tornando-se um verdadeiro rastilho de pólvora – com o consenso da insensatez que se formou entre o bloco no poder, o sistema político e o governo atual em torno do ajuste recessivo e das reformas neoliberais como o caminho para a recuperação do crescimento.
Um claro caminho de irracionalidade, dado que até mesmo o FMI, em documentos recentes, admitiu a necessidade de realização de políticas anticíclicas em momento de recessão. Não há nenhum “motor do crescimento” funcionando hoje no Brasil.
[…]
Vivemos uma luta de todos contra todos, em que pedaços da Constituição são rasgados a cada dia ao sabor dos vários eventos […].

20 O capitalismo brasileiro está sendo refundado?
A criação da instabilidade e a total criminalização da forma brasileira de acumular (relação
entre o bloco no poder e o Estado) não necessariamente significará refundar o capitalismo brasileiro
como quer o consórcio PRG/República do Paraná e a grande mídia. Os efeitos colaterais da
manutenção da “caixa de pandora”, aberta por tanto tempo, são imprevisíveis. Por enquanto,
provavelmente, apenas os interesses externos saíram beneficiados nesse atual processo insano.

Nota
A íntegra do texto para discussão A Guerra de Todos contra Todos: A Crise Brasileira, fevereiro, 2017, está disponível em http://www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/discussao/2017/tdie0062017pinto-et-al.pdf . Esse texto também foi discutido no XXII Encontro Nacional de Economia Política (XXII ENEP).
Os autores são: 1 Eduardo Costa Pinto – Professor(a) do Instituto de Economia da UFRJ; 2 José Paulo Guedes Pinto – Professor do Bacharelado de Relações Internacionais UFABC; 3 Alexis Saludjian – Professor do IE da UFRJ; 4 Isabela Nogueira – Professora do IE da UFRJ; 5 Paulo Balanco – Professor da Faculdade de Economia da UFBA; 6 Carlos Schonerwald – Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS; 7 Grasiela Baruco – Professora da UFRRJ.

 

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