Crise Democrática e Mudança Climática: um caminho para a solução

Por Renata Callaça Gadioli Dos Santos e Laís Vitória Cunha de Aguiar

 

‘Qual a solução para a crise democrática? Estamos agora elegendo democraticamente ditadores. É uma situação bizarra. Uma democracia real requer a participação de cidadãos, e os cidadãos devem ser capazes de entender as coisas. Os especialistas devem ser capazes de conseguir discutir com a população.’

Na tarde do dia 14 de dezembro, fomos ao hotel do cientista político Frank Fischer para entrevistá-lo. Este é o segundo ano consecutivo que o professor e cientista político, Frank Fischer, visita Brasília para participar como formador do Curso de Verão Internacional de Políticas Públicas (International Summer School on Public Policy). É a quarta edição do curso realizado pela EAP em parceria com Associação Internacional de Políticas Públicas (IPPA). Além do curso, o professor veio lançar seu recente livro em evento promovido pelo Curso de Gestão de Políticas Pùblicas da Universidade de Brasília, o qual trata do impacto da mudança climática na governança democrática e participativa. Tem como título Crise Climática e Prospecto Democrático: Governança Participativa em Comunidades Sustentáveis (Climate Crisis and the Democratic Prospect: Participatory Governance in Sustainable Communities).

Professor Frank Fischer é americano radicado na Alemanha, onde ministra aulas no Departamento de Ciências Políticas e Sociais, da Freie Universität Berlin. É o criador da teoria Virada Argumentativa, teoria de análise de políticas públicas que observa os dados a partir dos valores contidos nos argumentos emitidos pelos atores elaboradores das políticas públicas.

 

Estamos vivendo em um tempo no qual notícias e fatos falsos são levados igualmente a sério: algumas pessoas discutem se a Terra é redonda ou plana. Ou se o aquecimento global realmente existe. Muitos desses fatos são, porém, falsos. Os fatos falsos são também chamados corriqueiramente pela sua expressão em inglês: fake news.

Donald Trump e Steve Bannon
Foto: Mandel Ngan-AFP/Getty Images

Frank Fischer considera que as notícias falsas, que conduzem a política e as relações em toda parte do mundo, podem ser consideradas um perigoso e grande desafio para as ciências políticas e sociais, pois elas têm como objetivo criar fatos e verdades sórdidas. São como armadilhas criadas para nos negarmos. Entretanto, ele não acredita que nossa preocupação deva estar exatamente nos fatos falsos, mas em seus significados, o que eles alimentam e o que eles querem representar. A questão central está nas diferentes concepções de ver o mundo e os fatos falsos ajudam a nos dividir. Essas notícias fortalecem a divisão da população em dois grupos, esquerda e direita, que não conversam entre si e que não acreditam na possibilidade de o grupo oposto falar alguma verdade ou algo confiável. Foi o que aconteceu nas eleições dos Estados Unidos, quando Trump e Steve Bannon emergiram e fizeram a população acreditar que eles poderiam ser a voz que representava o desejo de um grupo.

 

FK: E você gostaria de me perguntar sobre o livro?

 

JL: Sim, mas antes gostaria de discutir sobre alguns pontos interessantes apontados pelo senhor, como por exemplo a questão do cidadão comum querer se sentir melhor representado. Acredito que alguns políticos da atualidade fizeram isso.

 

F.K.: Sim, políticos como Trump, e agora as pessoas estão começando a se arrepender, dizer: sinto muito por ter votado nele. Na minha família temos um grupo de primos que se reúne em um jantar uma vez por ano, mas temos que ter muito cuidado sobre o que falamos, porque começamos falando sobre os velhos tempos e acabamos falando sobre política e gritando uns com os outros, como se estivéssemos falando a partir do ponto de vista de nossos grupos políticos, não mais como família. Eu tenho uma prima que vive no Texas, e é muito conservadora, mas seu marido não. Eu não sei o porquê, mas eles foram ao Clube de Campo jantar, e lá estavam todo aquele grupo conservador, de direita. Eles defenderam tudo o que Trump fez, cada pequena coisa, foi horrível, e então o marido dela disse, como se para si mesmo, o cara é burro. Mas todos na mesa se viraram: o quê?! O cara é burro. Simples assim. Mas como, por quê? Eles questionaram, mas ele não quis ir a fundo e simplesmente fez um gesto para deixar de lado a questão. Enfim, quando vem um político e aponta tudo o que está faltando (trabalho, dinheiro), assim como os grupos ‘responsáveis’ pelos seus problemas (imigrantes), gerando um sentimento nacionalista, ele conquista a população sem esperança, eles acham que encontraram ‘o cara’ que irá resolver seus problemas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As questões centrais, porém, continuam sem o devido conhecimento. As temáticas da pós-verdade ainda são desconhecidas e estamos rodando em círculos na superfície. Precisamos reconhecer que as pessoas realmente sofrem e que muitas questões precisam ser levadas à sério. As pessoas realmente estão frustradas e raivosas. Podemos encontrar esse mesmo contexto na Inglaterra, com as questões relativas ao Brexit e também na Alemanha. Alguns acreditam que o livre comércio oportuniza o “modo de vida americano”. Uma parte do problema é que a pós-verdade tenta convencer os pobres de que eles podem ter privilégios se o livre comércio voltar. Não se mostram os problemas.

Os argumentos entre tribos diferentes gera o que Foucault chama de “regime da verdade”. Existem os fatos, mas eles pertencem a um sistema da verdade total. Alguns possuem certos fatos, que suportam um novo sistema neoliberal e não são rejeitados. Os fatos chamados de alternativos conduzem na direção que outras pessoas desejam ir. Qual fato é mais importante? A mídia e alguns cientistas sociais erram ao pensar que é preciso produzir mais fatos para contrapor à outros.

A população já está dividida e não é com mais e novos fatos que um grupo vai convencer o outro a mudar de opinião. Não há nada que altere o pensamento dos grupos, pois para eles não importa. A maior e mais importante questão é como que esses dois grupos, que não confiam um no outro, podem ter a confiança reconstruída. Como eles podem se unir novamente? Ninguém sabe quanto tempo esse distanciamento vai perdurar, pois a cultura política está fraturada. Essa junção dos grupos não será fácil e pode levar gerações. Talvez possamos começar conversando com essas pessoas, perguntando como é a vida delas, o que elas pensam, se é possível trocarmos pontos de vista tentando nos compreender melhor.

Somente depois os fatos podem ser inseridos no diálogo. Os liberais nunca se preocuparam em falar com essas pessoas, pois consideravam que elas não tinham diplomas acadêmicos. Esse tipo de pensamento dificulta o diálogo e podemos encontrar, até mesmo entre os liberais, neonazistas que exploram a situação para benefício próprio. Temos que saber para onde caminha a sociedade, onde achamos que queremos ir. Se os grupos querem ir para caminhos diferentes e até mesmo opostos é preciso encontrar um consenso.

Um dos esforços para construirmos políticas públicas que solucionem problemas nem sempre identificados pela comunidade, mas existentes, é realizado pelo movimento alternativo do campo das ciências sociais e das políticas públicas. Um movimento que busca interpretar as políticas estipuladas, as ações dos atores, as deliberações. Esse grupo busca promover a Análise Interpretativa de Políticas Públicas. Do interesse do grupo emergiu a Rede de Análises Interpretativas de Políticas Públicas (IPA). Este grupo vem organizando, desde 2006, conferências e cursos de formação que questionam os modelos de análise de políticas públicas existentes até então.

Analisam os valores das pessoas envolvidas na construção de políticas públicas, assim como os valores e as causas dos fatos que tem provocado no mundo diversas crises, perda de direitos civis e que fazem emergir diversos movimentos ambientais e movimento de mulheres dando a parecer que a sociedade está desmoronando. Os estudos mostram que somente pesquisas empíricas não podem mostrar as raízes dos problemas, elas não podem ser vistas. Os pesquisadores de metodologias empíricas só levam em consideração o que eles podem ver e muito do que se precisa entender deve ser escutado, está subentendido, que são os valores, como também as reais causas. A perspectiva interpretativa é um esforço para trazer a tona as pressuposições que existem por trás dos fatos, as suposições que estão escondidas. Trazê-las à tona para serem examinadas e discutidas. Frank Fischer complementa que a sociedade é construída por meio de significados sociais. Neste aspecto, mudança social envolve as mudanças de significados. Como exemplo, Frank Fischer cita as relações no passado entre brancos e negros, quando os brancos se sentiam no direito de dar ordens aos negros e estes os obedeciam. Estava definido nas relações sociais da época a possibilidade de um mandar e outro obedecer. Hoje não se pode mais dirigir a uma pessoa negra dessa forma. As próprias pessoas negras conseguiram alterar a forma como brancos deveriam se relacionar com elas. Elas mudaram os termos da relação. Os movimentos sociais lutam para mudar a definição das coisas. O movimento ambiental luta para mostrar que a natureza não é apenas um recurso a ser usado para nos fazer feliz e mesmo assim estamos nos matando.

Conectada com a primeira temática, das notícias falsas, o ponto central é entender a verdade e conhecer fatos alternativos. O problema para o mainstream de políticas públicas é que, uma vez que você entra no mundo dos significados sociais, você não pode construir uma ciência empírica, rigorosa e preditiva. Assim, a análise interpretativa busca fazer uma ciência social reflexiva. Nós nos juntamos para nos entendermos, compreendermos as suposições que cada grupo tem de si mesmos, do mundo e as deles sobre nós. Suposições sociais que cada um constrói, cotidianamente, em parte porque deseja que algo aconteça, em parte por interesses pessoais. Essas suposições são expressadas pelos argumentos que pessoas e grupos emitem ao interpretar os significados sociais.

Esses argumentos são construídos individualmente e coletivamente. Sim, a democracia está em crise. Na América Latina, na Europa, nos Estados Unidos da América. E aqui voltamos para o início do texto: qual a solução para a crise democrática?

Uma democracia real requer a participação dos cidadãos, que devem ser capazes de entender os fatos, e os especialistas devem ser capazes de entrar em um tipo de discussão com os cidadãos. Assim o grupo de pesquisa de Frank Fisher desenvolveu o que é chamado Análise Interpretativa de Políticas Públicas (Deliberative Policy Analysis), que é uma forma de estudar os fatos, mas trazendo em conjunto todas as questões. Um exemplo: eu sento com os cidadãos para discutir os fatos, o que vocês acham? Poderia significar isso, isso e isso. Como nós queremos pensar sobre isso? Como vamos nos orientar em relação aos fatos?

Essa é uma parte importante, mas nós também desenvolvemos uma teoria para governança, que nós chamamos de Governança Participativa (Participatory Governance), que é uma forma muito mais radical de ação-tenha cuidado com a palavra radical, o entrevistado nos pediu. Ele foi para Índia estudar um projeto no qual o governo pede às pessoas para que elaborem planos sociais. Foi ao Nepal e visitou um local no qual a comunidade que vive das florestas criou uma rede ligada a um tipo de hierarquia que vai até o governo federal, e debate com o Ministério das Florestas e Conservação do Solo (Ministry of Forests and Soil Conservation) a situação das florestas. O ministério vê tudo como ciência, considera que tem maior conhecimento do que aqueles aos quais escutam, nos relatou o professor, que disse veementemente: mas aquelas pessoas sabem do que estão falando, elas vivem nas florestas! Esse projeto submerge como produto da luta para trazer a democracia no Nepal, primeiro eles tiveram o rei e depois o governo maoísta. Quando ele esteve nas florestas encontrei um homem desse grupo, Maoístas (houve uma guerra entre o Partido Comunista do Nepal e o governo nepalês entre 1996 e 2006, que se tornou uma guerra civil). Ele me disse: uma das coisas que costumávamos fazer era vir as vilas com armas, mas depois percebemos que isso não funciona, que deveríamos conversar. Isso pode parecer óbvio para nós, mas eles são um grupo de guerrilhas, acostumados a isso, porém entenderam que se você quer dar uma boa impressão, você não mostra suas armas. Trazer armas é um gatilho para acabar com a discussão. O interessante é que esses projetos não aparecem nos países que são considerados as lideranças democráticas do mundo.

Nepal – Foto: Dilvigação

Existem outras iniciativas, como orçamento participativo, que fortalecem a democracia. Esse foco democrático procura encontrar Inovações Deliberativas Orientadas (Deliberative Orientated Inovations) que podem nos unir, trazer um diálogo significativo, sem distúrbios comunicativos. Normalmente existe uma propensão ideológica por trás dos discursos. A ideia é como identificar as ideias tendenciosas nos discursos, mas isso também é sobre poder, quem tem esse discurso tendencioso se beneficia disso, e não facilmente desistem. Mas existem experiências e projetos que provam que as pessoas conseguem fazer isso, elas não precisam ir até um gabinete para perguntar ao político o que eles estão fazendo. Elas não precisam saber sobre a equação, elas precisam saber sobre a aplicação da equação em seu cotidiano. Eu não quero saber toda a planta de uma usina nuclear, todos seus canos, eu quero saber o que significa quando você coloca uma usina nuclear no meu quintal. É uma discussão diferente. E nesse caso os cientistas não têm nenhuma posição privilegiada, eles são como qualquer outro cidadão.

Frank Fischer foi visitar outro projeto, o Conselho Dinamarquês de Tecnologia (Danish Board of Technology), em que ao invés de somente contratar especialistas para fazer a análise técnica, eles iriam começar o que chamaram de Função Iluminadora da População (Public Enlightenment Function), trazendo cidadãos e cientistas juntos para pensar na análise: os cientistas dariam tempo para os cidadãos lerem, refletirem, e os cidadãos, com o tempo, poderiam fazer questões aos especialistas, mas os cientistas não poderiam dizer: não, não, você não sabe isso e isso, deveria saber. Eles deveriam somente responder às questões. Ao final eles realizaram uma conferência no Parlamento (com a TV nacional presente), e os cidadãos discutiram manipulação genética de alimentos, se queriam ou não. Até um certo ponto os cientistas puderam falar um pouco, mas não poderiam dominar a discussão. Depois de muitos dias de escuta, o entrevistado percebeu que estava realmente apreciando a discussão. Primeiro porque não pensou que eles não conseguiriam fazer, em segundo porque a escolha dos cidadãos foi aleatória, então havia um assistente social, um médico aposentado. Era um grupo bem misturado que normalmente não se uniria.

O interessante, ele descreveu, foi que ao final esses relatórios, normalmente em linguagem inacessível a população, estavam acessíveis, em uma linguagem que nós podemos entender. Mas os conservadores voltaram ao governo e fecharam esse projeto, porque afinal eles não querem esse tipo de discussão. O projeto não está completamente parado, pode voltar, mas ao menos pôde mostrar que essas coisas podem acontecer. O entrevistado refletiu que o que devemos pensar é em como fazer esses arranjos para que uma política participativa ocorra com uma parcela maior da sociedade, incluindo o setor judicial, que se tornou manipulado por esses demagogos, e trazê-los para a discussão, fazer com que eles se sintam parte dela.

 

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