Conecte-se conosco

Missão com ministro da Defesa leva 66 mil comprimidos de cloroquina para indígenas de Roraima

Publicadoo

em

 Por:  Fábio Zuker 

 

O general Fernando Azevedo e Silva (de boné, na foto) participou da ação de combate a Covid-19. Medicamento é considerado por especialistas como prejudicial no tratamento do coronavírus e foi desaconselhado pela OMS (Foto: Ministério da Defesa)

 

Uma missão interministerial de emergência em saúde pública de combate à pandemia da Covid-19 em populações indígenas de Roraima, que contou com a presença do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e de representantes do Ministério da Saúde, levou 66 mil comprimidos de cloroquina 150 MG para o tratamento de indígenas de nove etnias das Terras Indígenas Yanomami e Raposa Serra do Sol. A ação entregou aos distritos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) como máscaras, luvas e aventais. Participaram da missão 24 profissionais de saúde das Forças Armadas e jornalistas de agências internacionais. Quatro aeronaves foram utilizadas pela ação.

A cloroquina vem sendo reivindicada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no tratamento da doença causada pelo novo coronavírus, embora o uso da droga seja desaconselhado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A entidade internacional suspendeu definitivamente os testes com hidroxicloroquina e nem sequer chegou a incluir a cloroquina em seu projeto de pesquisa internacional. Para a decisão, foram suficientes as conclusões negativas sobre efeitos adversos da cloroquina para um possível tratamento de Covid-19, conforme estudos de diversos países analisados pela OMS.

Em entrevista à agência Amazônia Real, o médico sanitarista Douglas Rodrigues, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), alertou para os perigos no uso da cloroquina entre indígenas: “a prudência, a ética, o bom-senso, falam pelo não uso. Mas, contra todas as evidências científicas, insistem em usar”, disse o especialista, que trabalha com populações indígenas e em isolamento voluntário na Amazônia há mais de 50 anos.

A missão interministerial de emergência em saúde pública de combate à pandemia da Covid-19 em populações indígenas de Roraima aconteceu entre segunda-feira (29 de junho) e quarta-feira (1º de julho). “Trouxemos cerca de 4 toneladas de materiais de saúde para atender à comunidade local. O governo está preocupado com a saúde do brasileiro”, declarou o general Fernando de Azevedo e Silva, em coletiva de imprensa em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami. De acordo com a nota divulgada pelo ministério, o general ressaltou que “nessa localidade não foi constatado nenhum caso de coronavírus entre indígenas”.

Em Boa Vista, o Ministério Público Federal (MPF) foi acionado por Júnior Hekurari Yanomami, Presidente do Conselho Distrital de Saúde indígena do Dsei Yanomami, que requisitou nesta quinta-feira (2) a instauração de um inquérito Policial Federal sobre a missão militar.

“O objetivo é apurar a distribuição de cloroquina às comunidades indígenas, o ingresso nos territórios sem prévia consulta de seus povos – em desrespeito à decisão de isolamento de muitas de suas comunidades -, a violação das regras de distanciamento social, a presença expressiva de meios de comunicação em contato com os indígenas e a eficiência de operação com vultoso gasto de recursos públicos”, disse o MPF em nota oficial.

A missão interministerial de emergência em saúde pública de combate à pandemia da Covid-19, acompanhada pelo general Fernando Azevedo e Silva, enviou aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas insumos para abastecer o Dsei Leste Roraima, para atender 49.706 indígenas de sete etnias dos 34 polos base de saúde, entre eles, Flexal e Ticoça; e de 37 polos do Dsei Yanomami para atender 25.486 indígenas em Surucucu, Auaris, Waikas e Maturacá.

Além dos 66 mil comprimidos de Cloroquina que foram distribuídos pelo governo federal entre os dois Dseis, a missão levou para o tratamento de Covid-19 em indígenas, mais 24.500 comprimidos de 150 MG de cloroquina, 15.708 comprimidos de Azitromicina 600 MG Frasco 15 ml; 10 mil comprimidos de Prednisona de 20 MG; 59.480 comprimidos de Prednisona de 05 MG, além de 78 mil comprimidos de Paracetamol 500 MG, entre outros remédios. Foram também distribuídos de 5.360 testes rápidos (268 kits) para coronavírus.

Os Dseis são estruturas federais vinculadas à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. No Brasil, a Sesai atende a população aldeia, um total de 760.350 pessoas através de 34 Dseis no país. Na Amazônia Legal, são 25 Dseis que dão assistência para uma população de 433.363 pessoas. O coordenador da Sesai, coronel da reserva Robson Santos Silva estava na comitiva, acompanhando o general Fernando Azevedo e Silva. Em seu site, a Sesai disse que, durante a ação, foram realizados testagem para Covid-19. “Todos os indígenas testados durante a missão deram resultado negativo”. Indígenas do Vale do Javari questionaram a viagem de Robson Silva ao território, no Amazonas.

Os efeitos da cloroquina

 

Militares atendem indígenas na Terra indígena Yanomami (Foto: Agência Saúde)

 

médico Douglas Rodrigues explica que os efeitos colaterais da cloroquina podem inclusive ser prejudiciais ao paciente acometido por Covid-19, pois enfraquecem ainda mais o corpo já sob ataque do novo coronavírus: “a cloroquina tem efeitos colaterais importantes. É um remédio horrível de se tomar. A pessoa passa muito mal, náuseas, dor de cabeça… São transitórios, embora como não tem um remédio que mate o vírus, quem tem que matar é você, o seu sistema imunológico. Você tem que estar bem, pois está sob ataque. Por isso, esses efeitos colaterais, mesmo que leves, tendem a piorar”.

Além dos riscos gerados ao corpo da pessoa contaminada por debilitar sistema imunológico, o médico ressalta os possíveis danos causados pelo uso de cloroquina ao coração. Rodrigues afirma que “o mais sério dos efeitos colaterais é do lado das arritmias cardíacas. Aqui em São Paulo, todos os hospitais retiraram a cloroquina, inclusive para pacientes internados. O Hospital Albert Einstein soltou uma nota, de que estão convictos desta decisão”.

O médico Douglas Rodrigues na Base do Xinane da Funai, em 2014 (Foto: Arquivo pessoal)

 

A cloroquina é um medicamento utilizado normalmente para o tratamento da malária, e que em um primeiro momento da pandemia de Covid-19 mostrou-se promissora no tratamento da nova doença. Mas devido aos efeitos colaterais de testes realizados em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, o medicamento têm tido seu uso desaconselhado. Além do Hospital Israelita Albert Einstein que recomendou a não utilização de cloroquina para o tratamento da Covid-19, outras entidades médicas pediram a suspensão do uso do medicamento para casos leves de Covid-19, como fez o Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Pelas consequências possivelmente letais do uso de cloroquina, Douglas Rodrigues não mede palavras: “eu acho uma doideira fazer isso em área indígena. Você não tem como monitorar. É um efeito colateral relativamente raro, mas eu não consigo fazer nem um eletrocardiograma básico para afirmar que a pessoa pode ter uma predisposição à arritmia”.

Para o médico Paulo Basta, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, o uso da cloroquina em populações indígenas “vai amplificar a vulnerabilidade por conta da restrição de acesso, do isolamento geográfico, a falta de um médico especialista, a falta de  um leito de um hospital disponível e a falta de monitoramento das funções cardíacas”.

Paulo Basta ressalta que “existem estudos que afirmam que o uso da cloroquina, ou associado a outros antibióticos, como a azitromicina, esteve relacionado ao aumento no número de mortes por Covid-19”. Segundo o médico, existem ainda outras consequências graves quanto ao uso inadvertido da cloroquina para o tratamento da Covid-19. Como a cloroquina é utilizada usualmente para tratar da malária, com o seu uso generalizado para tratar a Covid-19 “corre-se  o risco de ocasionar uma seleção dos microrganismos”.

“Eles [os microrganismos que causam a malária] podem sofrer mutações, e se criar uma situação em que a malária vivax, a forma mais comum da doença no país, se torne mais resistente à cloroquina. Um medicamento relativamente barato, produzido no país, pode se tornar ineficaz ao tratamento da malária”, alerta Basta.

Outro efeito negativo ao qual o médico Paulo Basta chama atenção é a possibilidade de que o uso ampliado da cloroquina para a Covid-19 possa dificultar o diagnóstico da própria malária: “se o medicamento não for utilizado adequadamente, ele pode ocultar a malária. Porque os sintomas foram ocultados pelo uso da cloroquina”, reflete o médico.

Paulo Basta também é taxativo: “a cloroquina como indicação terapêutica para a Covid-19 já se mostrou claramente ineficaz. E além de ineficaz, coloca o paciente em risco”.

Outro medicamento enviado pela missão que recebe crítica de Paulo Basta é a prednisona. Trata-se de um corticoide da mesma classe da dexametasona, que, conforme estudos da Universidade de Oxford (Inglaterra), reduziram o percentual de mortes em casos graves de pacientes contaminados pela Covid-19. A missão interministerial enviada às terras indígenas de Roraima pretende distribuir 10 mil comprimidos de prednisona 20 mg e 59.48 comprimidos de prednisona 5mg.

Basta chama atenção para os perigos do uso do medicamento: “o uso de corticosteróide é indicado só quando o paciente está [em estado] grave, e está iniciando um quadro de falência respiratória. Aí sim tem a indicação de fazer uso do corticosteróide e nesse sentido foi confirmado que ele salvou vidas. Mas usar prednisona de maneira profilática, como no caso da cloroquina, isso é o absurdo do absurdo: esse medicamento, se ele for utilizado de maneira crônica, sem acompanhamento, ele compromete o sistema imunológico”.

Assim como alertou Douglas Rodrigues, para Paulo Basta, “o que a pessoa precisa é ter o sistema imune forte, para combater o vírus”.

 

MPF questiona fala de general

 

Militares levam medicamentos e insumos de combate à Covid-19 para indígenas
(Foto: Agência Saúde)

 

Nesta quinta-feira (2), Júnior Hekurari Yanomami, Presidente do Conselho Distrital de Saúde indígena do Dsei Yanomami, requisitou junto ao Ministério Público Federal a instauração de um inquérito Policial Federal sobre a missão militar. No ofício, ele solicita a averiguação “sobre a distribuição de cloroquina para tratamento de supostos contaminados por Covid-19”.

Júnior Yanomami expôs preocupação com a entrada dos membros da missão interministerial na terra indígena. “Ao tempo em que solicito informar também a este órgão do Ministério Público Federal que, o Secretário Especial de Saúde Indígena e Coordenador da Funai de Brasília, estiveram presentes no Hospital de Campanha – APC, e no dia seguinte deram entrada na Terra Yanomami, o que nos causa preocupação, devido ser um local de tratamento para contaminados do Covid-19”.

O ofício enviado ao Ministério Público Federal questiona também a realização dos testes dos membros da missão: “alegaram a realização do teste rápido para Covid-19 em todas as pessoas que participaram da ação, incluindo jornalistas que vieram de outros países, porém o teste rápido é indicado apenas entre o sétimo e décimo dia do início dos sintomas, como febre e tosse. Não é recomendado para uso em toda a população, uma vez que não consegue diagnosticar o início da doença, como explica o ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta”.

Em nota, também publicada hoje, o MPF expressou preocupação com a fala do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, de que a pandemia está controlada na Terra Indígena Yanomami e com a ausência de qualquer medida de proteção territorial em operação que supostamente busca enfrentar a disseminação da Covid-19, cujo principal fator de risco é o garimpo ilegal.

“Diante da aparente tentativa de minimizar a gravidade da pandemia que se alastra diariamente na Terra Indígena Yanomami, o MPF ressalta que aguarda decisão do Tribunal Regional Federal da 1a. Região em recurso interposto na ação civil pública que busca obrigar o Poder Executivo Federal à única medida eficiente de proteção: a elaboração de um plano emergencial de ações para monitoramento territorial efetivo da Terra Indígena Yanomami, combate a ilícitos ambientais e extrusão de infratores ambientais que possam transmitir a Covid-19, inclusive à comunidade isolada Moxihatëtea, está exposta a um risco concreto de genocídio”, disse o MPF.

A Polícia Federal já investiga um conflito, que aconteceu no dia 14 de junho, quando dois indígenas Yanomami foram mortos por garimpeiros na comunidade Xaruna, que fica região da Serra do Parima, município de Alto Alegre, em Roraima.  Segundo a Associação Hurukara, 20 mil garimpeiros estão dentro do território ilegalmente.

 

O que diz o governo federal

 

Jornalistas internacionais acompanharam a missão interministerial de combate à Covid-19 (Foto: Agência Saúde)

 

A reportagem da Amazônia Real procurou os ministérios da Saúde e da Defesa para esclarecer o envio da medicação cloroquina aos povos indígena de Roraima e o questionamento do MPF sobre o ingresso dos militares sem a anuência dos povos indígenas de Roraima. Em resposta, o Ministério da Defesa disse “que não tem qualquer conhecimento sobre  o procedimento aberto pelo Ministério Público Federal em Roraima”.

Sobre o envio da medicação Cloroquina pela missão interministerial de reforço no combate à Covid-19 em populações indígenas de Roraima, o Ministério da Defesa disse que, em parceria com o Ministério da Saúde e a Funai, vem realizando importantes ações de apoio à saúde dos indígenas, com atendimento médico e entrega de mais de quatro toneladas de material de saúde, e confirmou a entrega da medicação. “Os comprimidos de cloroquina, medicamento usado há mais de 70 anos para o tratamento da malária, doença infecciosa, que nos seis primeiros meses de 2020, já registra 48.681 casos só na região Amazônica”.

“Assim, causaria profunda estranheza que o Ministério [MPF], que muito devia se preocupar com o bem-estar dos indígenas, busque criar obstáculos a tal apoio”.

Em relação ao questionamento do MPF do ingresso em território indígena, o Ministério da Defesa disse que a comitiva esteve “em visita oficial ao Pelotão Especial de Fronteira Surucucu, Organização Militar do Exército Brasileiro, na qual acompanharam o atendimento aos indígenas, antes da visita ao Hospital de Campanha de Boa Vista. Além disso,  todos os integrantes da comitiva foram previamente testados por PCR e sorologia, com resultados comprovadamente negativos,  antes da realização da visita ao Pelotão”, finalizou a nota. (Colaborou Emily Costa e Kátia Brasil)

 

https://www.facebook.com/RedeProYanomamiYekwana/videos/860117771178021/

Continue Lendo
1 Comment

1 Comments

  1. Dalton Catunda Rocha

    04/07/20 at 13:17

    Veja a principal origem da fé cega de Bolsonaro, nos (falsos) poderes da cloroquina, contra o coronavírus. É o bruxo Olavo de Carvalho: https://www.youtube.com/watch?v=YwRf9ms_Cwo

    ****************

    Se você quer boas fontes dignas, sobre a cloroquina, abaixo estão doze boas fontes, sobre o que a cloroquina faz mesmo, no tratamento do coronavírus:

    1- “Estudo aponta que hidroxicloroquina é ineficaz contra coronavírus” > https://istoe.com.br/estudo-aponta-que-hidroxicloroquina-e-ineficaz-contra-coronavirus/

    2- “Pesquisadores franceses não veem eficácia da cloroquina no tratamento de coronavírus” > https://br.noticias.yahoo.com/pesquisadores-franceses-nao-veem-eficacia-cloroquina-tratamento-coronavirus-140510020.html

    3- Estudo de Manaus, sobre a cloroquina: https://veja.abril.com.br/saude/coronavirus-cloroquina-desaconselhada/

    4- “Hospitais da Suécia suspendem uso de cloroquina em pacientes com coronavírus devido a efeitos colaterais” > http://www.rfi.fr/br/europa/20200410-hospitais-da-su%C3%A9cia-suspendem-uso-de-cloroquina-em-pacientes-com-coronav%C3%ADrus-devido-a-efeitos-colaterais

    5- “Debate sobre cloroquina acabou no mundo e só segue no Brasil, diz cientista” > https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/20/debate-sobre-cloroquina-acabou-no-mundo-e-so-segue-no-brasil-diz-cientista.htm

    6- “Nos EUA, 60% tiveram piora na saúde após uso da cloroquina” > https://www.poder360.com.br/coronavirus/nos-eua-60-tiveram-piora-na-saude-apos-uso-da-cloroquina/

    7- “Dois estudos atestam ineficácia de hidroxicloroquina contra o coronavírus” > https://istoe.com.br/dois-estudos-atestam-ineficacia-de-hidroxicloroquina-contra-o-coronavirus/

    8- “Hospital do Piauí não esvaziou UTI após tratamento só com cloroquina” > https://exame.abril.com.br/brasil/hospital-do-piaui-nao-esvaziou-uti-apos-tratamento-so-com-cloroquina/

    9- “Conselho de Medicina não recomenda cloroquina, como diz Bolsonaro” > https://epoca.globo.com/guilherme-amado/conselho-de-medicina-nao-recomenda-cloroquina-como-diz-bolsonaro-24427567

    10- Portugal proibiu uso da hidroxicloroquina, contra o coronavírus: https://www.dn.pt/pais/infarmed-suspende-tratamento-com-hidroxicloroquina-a-doentes-covid-12250257.html

    11- E por sinal, França e ItáIia também proibiram uso da hidroxicloroquina, para tratar o coronavírus > https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/27/franca-proibe-uso-da-hidroxicloroquina-para-tratar-a-covid-19.ghtml

    12- “Hospitais dos EUA têm forte queda no uso da hidroxicloroquina para covid-19” > https://www.uol.com.br/vivabem/reuters/2020/05/29/hospitais-dos-eua-tem-forte-queda-no-uso-da-hidroxicloroquina-para-covid-19.htm

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Publicadoo

em

O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

Continue Lendo

O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

Publicadoo

em

Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

Continue Lendo

Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

Publicadoo

em

Mariana Ferrer chora durante julgamento em que foi humilhada o ofendida

A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

Continue Lendo

Trending