Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana
Cem dias e seis questões: Como a pandemia afeta o destino das democracias liberais? Como as novas direitas estão lidando com a revalorização da ciência e da curadoria jornalística? Quem herdará os estruturas de vigilância que estão se constituindo? Quem será mais capaz de combater a pandemia: as ditaduras ou as democracias? Por que demoramos tanto a aceitar que seríamos atingidos pela pandemia? O que o governo Bolsonaro ganha e perde com a pandemia?
Para pensar de forma livre sobre essas questões construímos uma espécie de diário dos 100 dias, desde que a China informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o novo vírus, no dia 31 de dezembro. Desde então, os eventos se agitam de tal forma que sem esse esforço de parada reflexiva somos apenas levados pelas atualizações. A nova direita global tem usado essa agitação das notícias para reforçar seu poder, o caminho progressista precisa ser outro.
A forma diário se inspira também no clima apocalíptico que temos vivido. Nos canais de streaming, filmes sobre epidemias, como Outbreak (1995), reforçam essa sensação de uma contagem progressiva em direção ao inevitável. Quando chegará entre nós o pico da epidemia? Quão severas serão suas consequências, agora agravadas pela imagem da segunda onda representada pelo colapso econômico. No filme de 1995, a origem do surto está em alguma república de bananas, em nossa história real ele se origina em uma cidade de 11 milhões de habitantes na segunda maior economia do mundo.
O que faremos adiante é escrever a história de como o Covid-19 foi se infiltrando em nossas vidas. Nosso objetivo, assim, é apresentar uma modesta e fragmentária compreensão cronológica dessa triste e catastrófica experiência histórica que estamos vivendo. Queremos pensar para além da agitação atualista as possibilidades do nosso futuro próximo, durante e após essa emergência. O “atualismo” tão bem explorado pelas direitas globais, é uma das consequências da explosão de notícias em fluxo contínuo, onde o valor de verdade parece ser confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida. Essa estrutura impede que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Por isso, políticos atualistas como Trump, Boris Johnson e Bolsonaro nunca admitem erros, eles apenas atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Os seus discursos mudaram em função da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da negação da realidade do dia anterior. Por isso o diário, a forma mais básica de organização do passado, volta a ter uma função crítica importante.
Ao navegar por esse diário, acreditamos que você, leitor ou leitora, poderá reviver e pensar sobre os momentos em que a pandemia deixava a sua condição latente para se tornar o evento reorganizador de nossas vidas.
1o dia – O algoritmo de Inteligência Artificial (IA) da empresa canadense BlueDot faz uma série sobre uma possível pandemia. Era 31 de dezembro de 2019 e a China acabava de alertar a OMS para casos de uma pneumonia incomum em Wuhan, cidade de 11 milhões de habitantes. Enquanto isso, em nosso grupo no Whatsapp discutíamos um dos assuntos que iria atormentar os governantes logo no início da epidemia no Brasil: o aumento do número de trabalhadores informais. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios mostrava o alto índice de desemprego e o aumento da informalidade do mercado de trabalho, que na época girava em torno de 40%. Não sem razão, é justamente para esse público que as principais disputas, propostas e ações políticas se dirigiriam adiante.
8o dia – Em 7 de janeiro 2020 o vírus foi identificado e batizado de SARS-CoV-2 e a doença por ele provocada de Covid-19, sigla para a expressão inglesa Doença do Vírus Corona de 2019. Neste momento os autores deste texto continuavam envolvidos em um projeto cuja temática tem nos absorvido há algum tempo: o bolsonarismo. A identificação do novo vírus como causador de uma Síndrome Respiratória Aguda Grave imediatamente trouxe à memória os eventos da SARS de 2002-2003, que teve um alcance limitado e foi rapidamente contida. Embora inevitável, entender a Covid-19 como uma SARS 2.0 seria um grande erro.
12o dia – Em 11 de janeiro, dois dias depois da divulgação do primeiro óbito causado pelo novo vírus, o que nos mobilizava era a pesquisa que mostrava o rosto negro e feminino dos evangélicos brasileiros. Perguntávamos sobre os discursos e práticas que os setores progressistas poderiam construir para essa parte fundamental do eleitorado hoje, em especial como afastar certos eleitores da zona de encantamento da chamada pauta de costumes da direita, que capturou valores e sentimentos dessas pessoas. Ou, ainda, como dar um significado emancipador a uma determinada parte desses valores.
14o dia – Em 13 de janeiro foi registrado, na Tailândia, o primeiro caso de contágio do vírus fora da China.
17o dia – O Ministério da Saúde do Japão relatava seu primeiro caso no dia 16 de janeiro. As duas vítimas eram pessoas que haviam visitado Wuhan. Como se vê, na primeira quinzena de janeiro, o SARS-CoV-2 ainda não era uma preocupação que estava em nosso radar. Talvez porque parte do “Ocidente” ainda operava sob as referências do Corona 1.0. Ao que parece, havia a ilusão de que a epidemia ficaria, praticamente, restrita à Ásia e de que o vírus “desapareceria”.
21o dia – Em 20 de janeiro, a China registrava a terceira morte e mais de 200 infecções. Alguns desses casos foram identificados fora da província de Hubei onde se localiza Wuhan. Nesse dia, analisávamos os dados de uma pesquisa que mostrava que Bolsonaro era o político com mais interações nas redes sociais e no Youtube. Em 2019, ele havia postado 5.708 vezes e havia tido 731,4 milhões de reações, comentários e compartilhamentos. A média de “interações” de uma postagem dele era de 128 mil. O que mostra que, naquele momento suas ações seguiam a lógica das redes.
22o dia – Na segunda quinzena de janeiro, porém, ia ficando claro para o mundo que o vírus não ia estacionar na Ásia, como foi a experiência com a versão anterior, SARS-Corona 1.0. Logo no início da quinzena os Estados Unidos, o Nepal, assim como França, Austrália, Malásia, Cingapura, Coreia do Sul, Vietnã e Taiwan apresentavam os seus primeiros casos. Uma reportagem da revista Exame do dia 21 destacava que já havia mais de 7 mil pessoas infectadas e a doença ultrapassava as fronteiras chinesas. A rapidez de transmissão era relativizada pelo fato das taxas de mortalidade serem mais baixas do que a de outros vírus, até mesmo do Corona 1.0.
24o dia – A essa altura o número de mortos na China só aumentava e, em 23 de janeiro, Wuhan é colocada em quarentena efetiva, com a suspensão dos transportes aéreos e ferroviários. Além de Wuhan, Xiantao e Chibi, outras duas cidades da província de Hubei, também entraram em quarentena efetiva. No dia seguinte iniciava o feriado (de 24 a 30 de janeiro que comemora o Ano Novo chinês). Milhões de pessoas saíram em viagem para dentro e fora do país. Ao mesmo tempo, Pequim cancelava as festividades na tentativa de conter a propagação do vírus.
Àquela altura, as notícias publicadas na China indicavam 25 mortes e 600 infectados. Para a OMS, o surto ainda não constituía uma emergência pública de preocupação internacional, pois não havia evidências de que o vírus se espalharia fora da China. Por outro lado, era a primeira vez que percebíamos os riscos crescentes de uma pandemia global a partir da reportagem intitulada “Por que o Coronavírus desperta o temor de uma pandemia”, publicada no Nexo Jornal. A notícia se valia ainda da comparação histórica entre a SARS de 2002-2003 e a de 2019. Nessa mesma reportagem, há a indicação de uma possível vítima da Covid-19 em Belo Horizonte.
31o dia – No dia 30 de janeiro, a OMS declarou o novo coronavírus uma emergência global, pois o número de mortos na China saltou para 170, com 7.711 casos relatados em todo o país. Índia e Filipinas confirmavam, também, seus primeiros casos. Nossas preocupações, nesse momento, eram com o crescimento do prestígio de Damares, ministra dos Direitos Humanos, entre os mais pobres e, ao mesmo tempo, acompanhávamos com entusiasmo o crescimento do “Movimento das Sardinhas”, na Itália.
Nesse dia, eram publicadas várias reportagens sobre a Inteligência Artificial (IA) que havia antecipado a possibilidade da pandemia. Por meio do acesso às passagens aéreas, a IA canadense, BlueDot, conseguiu “prever”, com muita certeza, a disseminação do vírus fora da China. A esse respeito, o fundador e CEO da BlueDot, afirmou: ”Sabemos que não se pode confiar nos governos para fornecer informações em tempo hábil. Podemos captar notícias de possíveis surtos, pequenos murmúrios, fóruns ou blogs com indicações de algum tipo de evento incomum acontecendo”. Basicamente, a IA cria alertas a partir de notícias, em 65 idiomas, dados de companhias aéreas e notícias de surtos de doenças em animais. A empresa foi fundada em 2014 e o seu fundador, com capital inicial de US$ 9,4 milhões, era especialista em doenças infecciosas em Toronto, tendo trabalhado, inclusive, durante a epidemia de SARS-COVID 1.0 em 2003, que também atingiu o Canadá infectando 375 pessoas em Toronto, matando 44. Para o “dono” da IA, a solução para as pandemias é a antecipação proporcionada pelas Inteligências Artificiais.
32o dia – Em 31/1/2020, o correspondente canadense do The New York Times perguntava: “SARS foi mortal no Canadá. O país está preparado para o Coronavírus?” Para ele, o sistema de saúde de Toronto ficou caótico e confuso durante o surto de SARS, há 17 anos. Ele afirmava que as mudanças, motivadas por aquela crise, provavelmente seriam testadas novamente. Assim, ao final de janeiro, em muitos smartphones se podia jogar o Plague Inc e também acompanhar em tempo real o número de casos e vítimas do Sars-Covid 2.0 confirmados no mundo. Um site elaborado pela Johns Hopkins monitorava a propagação da doença.
Ainda pairava a ilusão de que a Sars-Covid 2.0 fosse permanecer confinada na Ásia. Além disso, apostava-se que a taxa de letalidade da Sars-Covid 2.0 seria menor do que o Sars-Covid 1.0. Mas, uma reportagem do site da Revista Piauí, também publicada no último dia de janeiro, alertava: “A menor letalidade do vírus é uma boa notícia para quem estiver infectado, mas não necessariamente é algo positivo do ponto de vista da saúde pública.” A mesma reportagem sinalizava para um dos principais riscos trazidos pelo vírus: “Há uma variável silenciosa que pode dificultar a estratégia de contenção do novo coronavírus, baseada em quarentena e isolamento: a capacidade de transmissão da doença por pessoas que, embora infectadas, não apresentam sintomas”. E essa era uma das grandes diferenças da versão 2.0 para a 1.0 da doença. Ao mesmo tempo, a reportagem relativizava a preocupação com a epidemia, pois se dizia que no Brasil era mais provável contrair sarampo. Ao longo de fevereiro muito se falou que era mais fácil pegar dengue do que o novo vírus.
35o dia – Em 3 de fevereiro era provável que até as autoridades chinesas acreditassem na capacidade de contenção da epidemia. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China acusava os EUA de gerar e espalhar pânico em relação ao novo coronavírus.
41o dia – Em 9 de fevereiro, um dia depois da entrega do segundo hospital para atender pacientes infectados pelo vírus, construído em tempo recorde pelo governo chinês, a possibilidade do SARS-COVID 2.0 ser menos letal começava a desmoronar. O número de mortos na China chegava a 811 e superava o total global da epidemia da SARS de 2002-2003.
53o dia – Em 20 de fevereiro, 87% dos novos casos estavam na China, com mais de 2 mil mortes e 74 mil infectados. Mas, os dados das autoridades mostravam que, ainda assim, o número de contágios estava diminuindo. O vírus tinha se espalhado e surtos iniciavam-se em alguns países, como Coreia do Sul, Irã e Itália. Nesse dia, a Coreia do Sul anunciou sua primeira morte.
54o dia – O Governo italiano anunciava o início da quarentena de 50 mil pessoas. Era 21 de fevereiro e a Itália registrava o seu primeiro óbito. No dia seguinte todos os principais jornais italianos estampavam manchetes alarmantes: “O vírus na Itália: um morto no Vêneto” (Corriere Della Sera); “Virus, o Norte com medo” (la Repubblica); “Vírus na Itália, quarentena para 50 mil” (24 Ore); “Coronavírus, primeiro morto na Itália” (La Stampa); “Avança o vírus, Norte em quarentena” (Il Messaggero); “Itália infectada” (il Giornale); “Para tudo” (Il Manifesto). Para muitos italianos essas manchetes não passavam de um alarmismo exagerado e de um exagero desnecessário.
58o dia – No dia 26 de fevereiro, a Folha de São Paulo publicava uma entrevista com o epidemiologista Wanderson Oliveira cujo título era: “Secretário do Ministério da Saúde alerta para ‘infodemia’ sobre coronavírus”. O epidemiologista, responsável pelo coronavírus no Brasil pelo Ministério da Saúde, afirmava que estávamos vivendo uma “infodemia”. Para os representantes estaduais, com ele reunidos, as informações eram perecíveis porque “não dá tempo para o sistema se adaptar às novas evidências, pois logo em seguida surgem outras”. Do ponto de vista das notícias, e da própria dinâmica da pandemia, as lógicas atualistas parecem se aprofundar. Segundo Oliveira, os dados escorrem pelas mãos, pois estamos vivendo uma epidemia em tempo real.
Infodemia é uma das palavras do momento. A partir de seu uso por Oliveira verificamos que havia uma reportagem do The New York Times, de 7 de fevereiro de 2020 dizendo que a OMS estava trabalhando com as redes sociais (Facebook, Twitter etc) e o Google para combater a disseminação de fake news sobre a doença. A reportagem citava o uso da palavra para lidar com a situação. Até então, só há na Wikipedia verbetes sobre a palavra em catalão e finlandês. A página em catalão afirma que o termo “é utilizado OMS para referenciar-se à sobrecarga de informação falsa, à desinformação que gera alarde generalizado e às teorias conspiratórias. O fenômeno está relacionado com as fake news e com a ausência de checagem das informações antes do compartilhamento.” Na Wikipédia lusófona, a página que trata da questão se chama: “Desinformação na pandemia de Covid-19”. A página finlandesa afirma que a palavra foi usada no jornal The Washington Post no contexto da epidemia de SARS, em 2003. O acrônimo significaria uma enorme quantidade de informações certas ou erradas, mas que, muitas vezes, pouco agregam valor informativo.
59o dia – Em 27 de fevereiro o prefeito de Milão compartilhou o vídeo “Milão não para”, desafiando a política de quarentena. No mesmo dia a Itália registrava 14 mortes pelo Covid-19 e 528 casos confirmados. Mais ou menos um mês depois, a cidade já tinha mais de 4 mil mortes por covid-19 e o prefeito pedia desculpas. Enquanto isso, no Brasil, ao longo de fevereiro, discutia-se se a esquerda teria morrido e se o PT estava obsoleto. O ex-presidente Lula se encontrava com o Papa, Bolsonaro liderava as pesquisas para a eleição de 2022 e cresciam as especulações sobre a possível candidatura de Luciano Huck. Além disso, os planos golpistas de Bolsonaro estariam em curso. No cenário internacional, o destaque político eram as especulações em torno do sucesso de Bernie Sanders nas primárias democratas na corrida presidencial dos EUA. Havia casos de contágio pelo vírus na maioria dos países do mundo.
66o dia – Em 5 de março, a Europa já contabilizava 41% dos novos casos.
67o dia – A imprensa noticia a chegada da comitiva brasileira no sábado, 7 de março, ao estado da Flórida, em visita oficial que incluía um encontro com o presidente Trump. Na primeira página da Folha o destaque é a crise na Bolsa, e a pandemia no Brasil ocupa ainda um lugar modesto, com um pequeno box lateral que informava serem 13 casos no Brasil. No noticiário político predomina o ato contra o STF e o Congresso convocado por grupos bolsonaristas.
68o dia – Um dos virologistas responsáveis pelo descobrimento do Zica Vírus relativizava o impacto da pandemia no Brasil e destacava, em 8 de março, que o SARS-Covid 2.0 não ia conseguir sobreviver no calor.
72o dia –Em 11 de março, a principal manchete da Folha é sobre o risco do colapso do sistema de saúde no Brasil. Neste mesmo dia a OMS declarava a existência de uma pandemia global de Covid-19. Desde então a pandemia seria matéria para todas as principais manchetes da Folha até o momento em que escrevemos este texto.
75o dia – Em 14 de março, com o risco eminente do alastramento da epidemia, a imprensa brasileira destaca que os especialistas recomendam: o Brasil deve parar.
77o dia – 16 de março, segunda-feira. No dia anterior Mateus voltava de sua viagem de estudos de seis meses em Bolonha, na Itália, estávamos ansiosos para nos reencontrar. O Brasil tem 15 casos de Sars-Covid-19. A imprensa cobre o ato contra o STF e o Congresso Nacional, realizado no domingo, com a presença de Bolsonaro, apesar dos riscos de contaminação. Desde o dia 11 de março repercute as contaminações de membros da comitiva da viagem do presidente aos Estados Unidos, tendo o primeiro caso sido confirmado já no dia 12. Até agora Bolsonaro não divulgou os exames que confirmariam que ele mesmo não teria sido contaminado. Ou teria o presidente se contaminado, mas se curado com o tratamento da hidroxicloroquina, por entre tantos fakes, como saber? Nesse dia, disse a respeito da pandemia, em sua peculiar linguagem fragmentada: “Foi surpreendente o que aconteceu na rua até com esse superdimensionamento. Que vai ter problema vai ter, quem é idoso, [quem] está com problema, [quem tem] alguma deficiência, mas não é tudo isso que dizem. Até a China já praticamente está acabando.”
78o dia – 17 de março. A Europa responde por 74% dos novos casos. À noite, no Brasil, pode-se ouvir o primeiro “panelaço” contra o governo de Jair Bolsonaro. Ficava pronto o livro organizado por nós (e por Bruna Stutz): “Do Fake ao fato: desatualizando Bolsonaro”. Ainda acreditávamos que faríamos lançamentos presenciais. Era uma só uma ilusão.
79o dia – 18 de março. Os jornais noticiam a primeira morte pelo vírus em São Paulo. O presidente do Senado e dois ministros de Bolsonaro testaram positivo para a Covid-19. Reportagem do site Outras Palavras perguntava: “Coronavírus impulsionará impeachment?”. Uma brasileira, diretora-assistente da OMS, afirma que os brasileiros estavam minimizando o risco do coronavírus. Médico que tratou o primeiro paciente morto no Brasil faz apelo para que pessoas fiquem em casa. O site Intercept noticia que a empresa Riachuelo mantinha funcionários em escritório mesmo com casos de coronavírus confirmados. De noite, mais panelaços contra o governo. Eles são vistos pelos autores com esperança. Reportagem do ConJur afirma que corte de jornada e salários proposto pelo governo divide advogados.
80o dia – 19 de março. Nas esquerdas aumenta a preocupação com as periferias e os mais vulneráveis durante a epidemia. A Embaixada da China no Brasil responde o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) e filho do presidente, que acusou, no dia anterior, o país asiático de omitir informações sobre a pandemia: “As suas palavras são extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. Não deixam de ser uma imitação dos seus queridos amigos. Ao voltar de Miami, contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando a amizades entre os nossos povos”. Economistas apontavam para o risco de depressão e do aumento da pobreza em função da pandemia. Alguns argumentos diziam que o Brasil estava a cerca de dez dias atrás da Itália no ritmo da epidemia.
83o dia – 22 de março. No dia anterior marcamos um churrasco para nos encontrarmos, isto depois de muito debate, Valdei tem histórico de asma e não sabe ainda se está no grupo risco. Na manhã deste domingo Mateus acorda com tosse, fadiga e febre: churrasco e reencontro adiados sem data. De noite, após ter áudio de conversa em Whastsup vazada em que chamava de histéricas as preocupações com a epidemia, o empresário Roberto Justus sofre com protestos no Twitter e em outras redes sociais. Alinha-se com outros empresários bolsonaristas que argumentavam na mesma direção, como os donos da Madero, Havan e Riachuelo.
84o dia – 23 de março, segunda-feira. Boris Johnson reconhece a gravidade da crise no Reino Unido e muda o discurso e as ações que vinha adotando. Em 3 de março, em entrevista, se gabava de continuar a apertar as mãos da vítimas da Covid-19.
85o dia – 24 de março. Ao mesmo tempo que Bolsonaro recua na medida provisória sobre o corte de salários, o Banco Central libera mais de 1 trilhão de reais para os bancos. Reportagens denunciam que o empresário, dono da Madeiro, afirma que a economia não pode parar em função de 5 ou 7 mil mortes. Renda Familiar de Emergência era anunciada na Argentina. Bolsonaro fez um pronunciamento que difere em substância de seus dois anteriores, nos dias 6 e 12 de março. No fatídico discurso de 24 de março, o presidente minimiza a doença, criticando as medidas de isolamento. Apesar de breves elogios ao ministro da Saúde, faz apelos para que as pessoas voltem à normalidade, contrariando o próprio ministro. Critica o que ele denominou de histeria da imprensa, argumentando que o caso da Itália só seguiu os rumos que conhecemos, pelo elevado número de idosos do país, além do seu clima frio, e que, portanto, não poderia servir de exemplo ao Brasil. Questiona o fechamento de escolas e sugere que apenas pessoas do grupo de risco deviam se confinar. Critica duramente os governadores de estados, os quais acusa de estarem levando a economia ao colapso. Nomeia os efeitos do Coronavírus de “gripezinha”, se vangloria de seu histórico de atleta e ainda especula sobre o tratamento com a hidroxicloroquina. Mais panelaços durante o pronunciamento. E muitas reações imediatas, inclusive do presidente do Senado, que pede liderança séria para lidar com a crise. O premiê do Japão pede o adiamento dos jogos olímpicos de Tóquio por um ano. Médica e enfermeira do SUS de Ouro Preto faz visita domiciliar a Mateus para avaliar se o caso era suspeito de Covid-19. OMS vê potencial para que os EUA se tornem o novo epicentro da crise.
86o dia – 25 de março. Outra enfermeira da cidade de Ouro Preto recolhe três amostras, nas narinas e na garganta de Mateus. O exame é enviado para a Fundação Ezequiel Dias em Belo Horizonte, Minas Gerais. Neste dia, 25 de março, a febre cede.
87o dia – Em 26 de março, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos afirma que a ultra-direita fracassa no combate ao vírus. Ao mesmo tempo, pesquisa do instituto Gallup indica que a provação de Trump subia para o maior nível do seu mandato. Mais de 1.000 mortos nos EUA pelo coronavírus. A epidemia avança na Espanha, com mais de 4.000 mortos e 56 mil casos confirmados. Na América Latina, medidas rígidas são adotadas pela maiorias dos governos. Para Trump a Covid-19 ainda é como uma gripe e os casos nos EUA estavam caindo.
88o dia – 27 de março. Bolsonaro lança campanha publicitária com o slogan #OBrasilNãoPodeParar e o site Intercep mostra que há certa adesão social a esse discurso. A OMS afirma que a evolução da pandemia na África é gravíssima. Nos chegam relatos de que em condomínios de luxo em bairros nobres de Vitória ( ES) os cuidados com o vírus são minuciosos, com funcionários, não dispensados, higienizando três vezes ao dia os espaços comuns. Na tarde dessa sexta-feira, alguns moradores desses prédios devem ter se juntado à carreata que no final da tarde pedia a reabertura do comércio em Vitória e Vila Velha, #OBrasilNãoPodeParar. O papa Francisco produz uma das imagens mais icônicas ao caminhar pela Praça de São Pedro vazia, levava consigo um crucifixo que a tradição diz ter salvado a cidade de Roma da peste negra em 1522.
89o dia – 28 de março. A manchete de um jornal português sintetiza a preocupação do país com o alastramento do vírus: “Covid-19 em Portugal. A caminho do desconhecido e a tentar atrasar o passo”. Uma manchete, uma síntese, uma constatação: a de que vivemos um momento em que atrasar o passo pode ser mais prudente do que a chegada rápida a um certo futuro. Mas quem decide como e quanto atrasar? Quem paga a conta? Questões da boa e velha política.
90o dia – 29 de março. A manchete da Folha afirma que moradores passam fome nas favelas e começam a sair às ruas. Trump agora refere-se “a gripe” como pandemia e prolonga o isolamento nos EUA. Ele se diz preocupado: “Eu só via essas coisas em países distantes, nunca no nosso”. Enquanto isso, Bolsonaro passeava pelas ruas do Distrito Federal estimulando as pessoas a irem às ruas. Em decisão inédita, as postagens com os vídeos do presidente foram removidos de sua conta pelo Twitter no mesmo dia. Nesse momento, as declarações de Bolsonaro passam a se distanciar um pouco das de Trump, embora o repertório comum seja vasto. Continua a se contrapor à maioria dos prefeitos e governadores do país, bem como ao seu ministro da Saúde, que reforçava as políticas de isolamento.
91o dia – 30 de março, segunda-feira. O Parlamento Húngaro, sob justificativa de combater o coronavírus, dá poderes quase ilimitados ao primeiro-ministro Viktor Orbán, dentre eles, a possibilidade de censura.
92o dia – 31 de março. Os ministros da Justiça e Economia se opõem a Bolsonaro e apoiam o ministro da Saúde. O isolamento social é respeitado por 60% das pessoas no Brasil, mostra software. Quinze estados brasileiros usam a tecnologia que mapeia comportamento individual através de sinais de dispositivo de rede sem fio. O site O antagonista resume o novo pronunciamento do presidente da seguinte forma: “Jair Murphy Bolsonaro. Se algo pode dar errado, é porque vai dar errado”. Vice-presidente exalta Ditadura Militar (1964-1985) no dia do aniversário do golpe de Estado de 31 de março de 1964. Os autores passam o dia envolvidos com a campanha #DitaduraNuncaMais. Mateus continua com febre e tosse. Ainda sem resultado do exame.
93o dia – 01 de abril. Às 7h45 a Prefeitura de Mariana confirma a primeira morte pelo covid-19 na cidade, um homem de 44 anos, sem comorbidades e com provável contaminação local. Não sem alguma ironia, a Folha noticia que no pronunciamento do dia anterior o presidente teria mudado o tom buscando a conciliação. Dia da mentira? Ele e seu grupo político continuam a guerra de desinformação contra o seu próprio ministério da Saúde. O país já registra 42 mortes. Bolsonaro compartilha vídeo falso a fim de sugerir que o isolamento social pode gerar uma crise de desabastecimento. Depois que a farsa foi denunciada ele pede desculpas, gesto raríssimo que talvez demonstre o quanto se sente isolado. Como muitos estudiosos diziam: a luta é contra a pandemia e a infodemia, ao mesmo tempo. As notícias falsas e o vírus competem para ver quem viraliza mais, isto é, quem sofre mais mutações atualizantes.
94o dia – 2 de abril. As notícias sobre subnotificação ganham as manchetes. Governo anuncia redução e suspensão de salários durante a pandemia. O jornal El País afirma que o Brasil tem sido preterido por fornecedores para obter material médico contra o coronavírus. Usar ou não usar as máscaras? Eis a questão?
95o dia – 3 de abril. Os casos globais chegam a 1 milhão. No Brasil, Bolsonaro continua em rota de colisão com o seu ministro da Saúde. Equador entra em colapso sanitário. O país tem a oitava população do continente, mas já registrava o segundo maior número de mortes. Covid-19 acaba com 10 milhões de empregos nos EUA. Profissionais da saúde no Brasil denunciam a precarização das condições de trabalho em tempos de pandemia. O bolsonarismo dissemina diversas narrativas eficazes, em especial, entre a população evangélica. O ministro da Saúde, Mandetta, é o principal alvo das milícias digitais: Quantos são robôs? Quem financia? Qual o papel da leniência de Facebook, Twitter e Google com essas práticas? É divulgada uma pesquisa feita com dados do Twitter do dia 15 de março, quando a #BolsonaroDay subiu, apontando que 55% das postagem nessa hashtag haviam sido feitas por robôs. O Judiciário e o Legislativo assistem a tudo impassíveis: bilontras ou bestializados?
96o dia – 4 de abril. Todas as chamadas da primeira página da Folha são dedicadas à pandemia, sem exceção. Chega em nosso Zap, enviado por uma amiga do Rio Grande do Norte, um áudio convocando para o jejum e oração do domingo que começava pedindo a “proibição e criminalização do socialismo, comunismo e marxismo cultura dentro do Brasil”. A atriz (?) continuava sua fala – com um sotaque nordestino genérico – pedindo a destruição do Foro de São Paulo, que estaria por trás da grande conspiração para quebrar o Brasil, e explicava: “A China comprou a Itália, com isso, no fim do ano a Itália ficou cheia de jovens chineses que cuspiam e tossiam em tudo para espalhar o vírus”. Continua: “A Itália tem 30% de velhos e é fria, por isso houve aquela matança generalizada. O vírus só gosta de frio, segundo, a cloroquina está sendo muito eficaz na cura da Covid-19, os governos estaduais de esquerda estão usando a quarentena para quebrar o Brasil, com o país parado, com demissões em massa, o povo vai ficar sem dinheiro e com fome, a Europa pode fazer quarentena por ter lastro da moeda em Ouro, a do Brasil não, esse é o plano dos comunistas para tomar o poder no Brasil, estão soltando presos. Tudo isso para levar ao impeachment de Bolsonaro, mas se ele cair, o Mourão não vai poder assumir, porque houve uma PEC37 em 2019 que vetaria, haveria nova eleição e Ciro Gomes – que está sendo financiado pelo governo Chinês, pois o país asiático quer comprar todas a empresas brasileiras a preço de banana. A assim, o Brasil se torna socialista”. Um certo desespero de professor: como se combate esse tipo de narrativa? Podemos descobrir a cura para a pandemia, mas a infodemia será o novo normal?
97o dia – 5 de abril. Bolsonaro e apoiadores fazem jejum religioso contra o novo coronavírus – e o plano comunista para dominar o Brasil. Olavo de Carvalho, guru do presidente, defende em seu perfil no Facebook a demissão de Mandetta usando um desrespeitoso trocadilho: “Fora, ministro Punhetta”. O ministro seria o “exemplo típico do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros ‘critérios técnicos’, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica”. O guro do governo ainda afirma que “tudo o que os comunistas mais desejam é que o adversário tente vencê-los fugindo da briga ideológica”.
98o dia – 6 de abril, segunda-feira. A imprensa internacional anuncia o agravamento da situação de saúde de Boris Johnson, premier britânico da nova direita global que, inicialmente, fez coro com os que minimizam os efeitos da pandemia. O pensador indígena brasileiro, Ailton Krenak, afirma que “voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Que devemos seguir nos devorando”. O ministro Mandetta quase cai ao longo do dia. Um amigo envia um e-mail no fim da noite: “Estamos sendo atualizados no papel de transmissores passivos de vírus, sem alma e sem coração”. Em função da pressão de Bolsonaro, o Ministério da Saúde adotará na próxima semana a arriscada estratégia do distanciamento social ampliado, isto é, reduzir o isolamento em cidades e estados com 50% da capacidade de saúde vaga. Fato que, segundo o próprio Ministério, aumentará o número de infectados. Finalmente, a OMS divulga um documento sobre o uso das máscaras, que tinham ido do inferno ao céu, durante a pandemia. No mesmo dia, uma reportagem afirmava: “Mortes por coronavírus se concentram em poucas cidades no mundo: Nova York tem 29% dos mortos pela Covid-19 nos EUA e se tornou o epicentro da doença. São Paulo reúne 40% dos óbitos do Brasil”. São Paulo estará a caminho de ser um epicentro global?
99o dia – 7 de abril. Estimativas apontam para o fato de que a pandemia iria elevar em até 22 mil as pessoas em condições de extrema pobreza na América Latina. Na África, os casos confirmados passam de 10 mil. A maioria dos 54 países já havia tido um caso. A África do Sul, o país mais atingido, já tinha 1.700 doentes. Brasil tem 114 mortes por coronavírus em 24h, a maior cifra em um dia. O total de mortes chega a 667. O Datafolha divulga pesquisa mostrando que 28% dos brasileiros não fazem isolamento, uma porcentagem parecida com o apoio quase incondicional do presidente: as narrativas do zap estariam funcionando? Ao mesmo tempo, a Folha afirma que o remédio defendido pelo governo pode não ser a salvação esperada por muitos bolsonaristas: “Taxa de mortes com cloroquina equivale à de quem não usa, diz estudo preliminar da Fiocruz”. O Whatsapp limita o envio de mensagens para combater a infodemia: todos se perguntam se o limite vale também para os robôs e empresas de impulsionamento? Morre de covid-19 o pastor norte-americano Landon Spradlin, que ficou famoso por chamar a pandemia de histeria. Nova York tem mais mortes por covid-19 do que no 11 de setembro. Os EUA lideram o número de casos no mundo, sendo que registraram o maior número de mortes por coronavírus em um único dia, com mais de 1.800 mortes. No Twitter, Trump ataca a OMS e a China. O site O antagonista registra que por razões econômicas o presidente da Turquia, “Erdogan, rejeita o isolamento, e o vírus avança na Turquia”. “Erdogan tem resistido aos apelos dos médicos e da oposição para que ordene às pessoas a permanência em casa – ele insiste que ‘as rodas da economia precisam continuar girando’”. No Twitter, Bolsonaro envia votos de recuperação a Boris Johnson. A CEF libera aplicativo para pedidos do apoio de 600 reais aprovado pelo Congresso.
100o dia – Dia 8 de abril, agora. A cidade que foi o epicentro original, Wuhan, recebe de presente sua “liberdade”. Depois de 11 semanas, 76 dias, o bloqueio da cidade chega ao fim. Há receios, no entanto, de ondas de recontaminação na China. The Guardian: “Cidade chinesa de Wuhan reabre quando Boris Johnson passa a segunda noite em terapia intensiva”. Casos globais atingem 1,4 milhão de pessoas. O teste feito por Mateus ainda não está pronto, mas a recuperação é visível. Valdei segue em isolamento em Padre Viegas, distrito de Mariana, cidade em que as mineradoras não pararam suas atividades. A cada dia ônibus repletos de trabalhadores circulam entre as minas e os bairros e distritos. Quem pode imaginar como serão os próximos 100 dias? O Globo noticia que o pacote de 600 reais de ajuda exclui 21 milhöes de trabalhadores necessitados.
Deixemos para a próxima coluna, para não nos alongar mais, a pausa reflexiva para pensarmos nas respostas às muitas perguntas que esses 100 dias deixam em aberto. Até breve! Fiquem em casa!
2 respostas
Pois é, dormíamos, acordávamos com o pesadelo que parecia não ter mais fim, e ainda parece, com as investidas da extrema direita no Brasil e em boa parte do planeta, enquanto o inimigo mortífero e implacável adentrava silencioso e voraz, porta adentro. Vem em boa hora, o convite à reflexão, ausente em nossas mídias oficiais, que nos levam a colar os olhos 24 horas ininterruptas nas telas sedutoras das TVs, na expectativa de ouvir a boa nova, a cura e o cessar dos prenúncios do fim. Submetidos que estamos e agora inexoravelmente, posto que em regime de isolamento social, as atualizações feitas pelos “Arautos das multidões”, os ancoras glamourosos e sua gleba de comentaristas de plantão. Dá asco, ver uma Monica Woldvogel jornalista da GloboNews, recorrer a página da cartilha da lei de oferta e procura, que reza no mundo capitalista de mercado, quando do episódio da venda sobre tarifada de insumos e equipamentos pela China ao resto do mundo em tempos da Pandemia CORVI19, que tudo indica ter começado por lá.
Então ela disse: ” Pois é gente, é assim mesmo que funciona” e nada mais.