Corrupção dentro da PF leva à prisão de delegado e prefeito de Florianópolis
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Raquel Wandelli
VAZAMENTOS NA PF FAVORECIAM INVESTIGADOS EM OPERAÇÃO ALCATRAZ
Sete dirigentes da PF, PRF, governo do Estado de Santa Catarina e prefeitura de Florianópolis foram presos, acusados de participar de rede de corrupção em órgãos de inteligência e investigação da polícia. As informações alertando sobre diligências da Operação Alcatraz eram vendidas aos investigados como suborno em troca de pagamento em dinheiro, apadrinhamento e favores políticos, como blindagem nas investigações e empregos em cargos públicos.
O prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro, foi apontado como articulador dessa rede de contra informação em conluio com o delegado da PF, Fernando Amaro de Moraes Caieron, agentes policiais e dirigentes públicos, que só foi desbaratada por delação de um preso da Operação Alcatraz, ocorrida há 20 dias. Ao todo 30 mandados foram cumpridos hoje, 23 de busca e apreensão e sete de prisão temporária, expedidos pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em Porto Alegre (RS). O prefeito de Florianópolis Gean Loureiro e o policial rodoviário federal Marcelo Roberto Paiva Winter, diretor de comunicação do sindicato da categoria, foram soltos no início da noite, enquanto outros cinco detidos permanecem presos.

Polícia Federal entra em ação depois de ser delatado escândalo dentro de sua própria corporação
O prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro (eleito pelo MDB/SC), foi preso na manhã desta terça-feira (18), em Florianópolis pela Polícia Federal em sua casa, no bairro Jurerê, e afastado do cargo por 30 dias por ordem do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Ele está indiciado na Operação “Chabu”, desencadeada para desarticular uma organização que violava sigilo de operações policiais em Santa Catarina, incluindo as Operações Eclipse, Alcatraz e Ave de Rapina, todas ligadas à fraude de licitações e crimes fiscais. Entre os sete mandados de prisão temporária expedidos como parte da Operação Chabu está também o do delegado Fernando Caieron, da Polícia Federal em Florianópolis, preso em Porto Alegre, e o empresário da área de tecnologia José Augusto Alves, que atuaria como uma espécie de contrabandista de informações sigilosas obtidas junto à PF.
Foram presos temporariamente ainda o diretor de Comunicação do Sindicato dos Policiais Rodoviários de Santa Catarina (SINPRF-SC), Marcelo Roberto Paiva Winter, o colega Luciano da Cunha Teixeira, ex-secretário da Casa Civil no governo de Eduardo Moreira, Luciano Veloso Lima e Hélio Sant’Anna Silva Júnior, delegado aposentado da Polícia Federal. A prisão temporária tem duração de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco. Ao todo 30 mandados são cumpridos, 23 de busca e apreensão e sete de prisão temporária, expedidos pelo TRF4, em Porto Alegre (RS), na capital e municípios de Balneário Camboriú, Camboriú e Itajaí.
Após diligências iniciadas em agosto de 2018, dentro da Operação Eclipse, a Polícia Federal apurou que o grupo suspeito construiu uma rede composta por um núcleo político, empresários, e servidores da própria PF e da Polícia Rodoviária Federal (PRF) lotados em órgãos de inteligência e investigação. Seu objetivo seria atrapalhar ou embaçar o trabalho policial em andamento e proteger os investigados dentro da Operação Alcatraz e de várias outras, em troca de subornos financeiros ou de favores políticos, como empregos em cargos públicos. O próprio prefeito apadrinhava alguns membros desse grupo, segundo os vereadores. Ele pleiteou emprego para a esposa do policial rodoviário federal envolvido, Marcelo Roberto Paiva Winter, em cargo no governo estadual. A filha do empresário José Augusto Alves, o “José Mentira”, apontado como pivô da articulação criminosa, tem cargo de confiança no gabinete do prefeito.
De acordo com o mandado, as diligências apontam prática de crimes de associação criminosa, corrupção passiva, violação de sigilo funcional, tráfico de influência, corrupção ativa, além da tentativa de interferir em investigação penal envolvendo organização criminosa, segundo nota da PF. “Durante as investigações foram apuradas práticas ilícitas, dentre as quais envolve o vazamento de informações a respeito de operações policiais a serem deflagradas até o contrabando de equipamentos de contra inteligência para montar ‘salas seguras’ à prova de monitoramento em órgãos públicos e empresas”, diz ainda a nota PF. Os agentes realizaram uma busca no Grupo Nexxera por mais de três horas, quando apreenderam documentos na empresa especializada em elaborar plataformas integradas de serviços de automação bancária, gestão de cobranças e soluções de tecnologia. O objetivo foi confirmar a suspeita de associação criminosa e corrupção passiva por parte de agentes públicos e empresas.
O significado de “Chabu”, que nomeia a operação, é provocar falha no sistema, usado para descrever, por exemplo, falha em fogos de artifício. Segundo a PF, o termo era empregado por alguns dos investigados para alertar sobre a existência de operações policiais antes de ocorrerem. A operação é mantida em segredo de justiça, sem maiores explicações, sob a relatoria do desembargador federal Leandro Paulsen. É o desembargador quem vai decidir se o prefeito será substituído por seu vice João Batista Nunes.

Prefeito Gean Loureiro e secretário ex-secretário estadual da Casa Civil, Luciano Veloso Lima agiriam juntos. Foto: James Tavares/Secom
PLANOS DE REELEIÇÃO AMEAÇADOS
Eleito pelo MDB/SC, com pretensões à reeleição em 2020, Gean Loureiro, 47 anos, formado em Direito, se desfiliou do partido em 28 de maio por insatisfações com a cúpula. Ainda está sendo cogitada sua filiação para partidos da base governista federal, como PSD e PRB. Ele prestou depoimento à PF, e teve sua prisão relaxada no início da noite de hoje (18/6), mas permanece suspenso do cargo durante os próximos 30 dias, e proibido de retornar à prefeitura ou de conversar com qualquer envolvido na operação.
Às 21h30, o prefeito deu entrevista coletiva no escritório do seu advogado Dido Ptsica, quando se disse vítima da pior injustiça da sua vida e afirmou não ter qualquer envolvimento com os suspeitos, assim como negou que a sala segura à prova de monitoramento, onde seria vazadas as informações tenha sido instalada no seu gabinete.
O policial rodoviário federal Marcelo Roberto Paiva Winter, diretor de comunicação do sindicato da categoria (SINPRF-SC), preso igualmente de forma temporária, também foi liberado na noite de hoje. Os demais cinco detidos continuam presos.
ALCATRAZ: NEGÓCIOS COM EMPRESAS LARANJA LESAM COFRES PÚBLICOS EM R$ 130 MILHÕES
Ontem a juíza Janaína Cassol Machado, que está a frente do processo criminal da Operação Alcatraz pela Justiça Federal em Santa Catarina, autorizou a prorrogação por 15 dias do prazo para a conclusão do inquérito da Operação. A Alcatraz envolve desvio de recursos, fraudes em licitações e crimes tributários praticados por órgãos de Santa Catarina e de Florianópolis, como a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), Secretaria de Estado da Administração e outras empresas terceirizadas. O presidente da Assembléia Legislativa, deputado Júlio Garcia (PSD) também é citado muitas vezes no pedido de prisão de 11 acusados, detidos no dia 31 de maio deste ano, quatro deles em Florianópolis; quatro em São José; um em Antônio Carlos; um em Ituporanga e um em Vinhedo (SP).
Os indiciados permanecem presos e fazendo delações entre empresários e agentes públicos investigados por suspeita de envolvimento em esquema de fraude em licitações e contratos. Um dos presos é Nelson Castello Branco Nappi, considerado o cabeça do esquema que fraudava licitações. Os danos aos cofres públicos se aproximam de R$ 30 milhões, segundo estimativas da PF e de mais de R$ 100 milhões em sonegação de impostos, segunda avaliação da Receita Federal.
Segundo apurou a operação, de 2012 a 2015 a MAAB, empresa do ramo publicitário, emitiu notas frias em nome de empresas de fachada na área de segurança do grupo Ondrepsb e a Orcali, que por sua vez repassariam os valores para agentes públicos do Estado. Já há presos preventivamente na ação. Janaína é a mesma que autorizou a prisão do reitor Luiz Carlos Cancellier. O delegado Igor Gervini pediu a extensão da investigação para que os agentes tenham até o final de junho para concluir o inquérito.
Atualização:
Na quarta-feira (19/6), os advogados do prefeito tentaram suspender o seu afastamento no TRF4, mas não obtiveram êxito. Os quatro vereadores da oposição, Afrânio Boppré (PSoL), Marquito (PSoL), Lino Peres (PT) e Vanderlei Farias, o Lela (PDT), já emitiram duas notas conjuntas reivindicando informações da Polícia Federal para se posicionarem com mais clareza sobre o assunto, e evitar julgamentos ou absolvições sem profundidade. Por enquanto quem administra a capital é o vice-prefeito José Batista Nunes (PSDB).
Em live veiculada nesta sexta-feira, 21, na página do Facebook de Boppré, ele e o vereador Lino Peres afirmam que a oposição está muito apreensiva porque Gean Loureiro tem frequentado a Câmara de Vereadores e o seu gabinete, de onde entra e sai levando pastas e documentos. Querem saber que informações há nos equipamentos e celulares apreendidos e o possível envolvimento de outros funcionários públicos municipais nessa rede de tráfico de informações. “Se Gean diz que é vítima de uma armação, queremos saber quem é esse agente oculto que tem tanto poder e influência na vida da cidade”, afirma Boppré. Por que o prefeito, sendo apontado como o articulador da “Orcrim”, foi solto no mesmo dia da prisão e continua livre para passear no seu gabinete e recolher provas?
Nesta quinta-feira, 20/6, a revista Isto É publicou reportagem de capa na edição do fim de semana, intitulada “Cerco aos hackers” , afirmando que a PF está investigando as “possíveis ligações” entre a Operação Chabu, a Vaza Jato e a atuação de agentes cibernéticos em Santa Catarina, no Brasil, Dubai e Emirados Árabes. Segundo “investigações preliminares”, a PF teria encontrado conexões entre o jornalista investigativo Glenn Greenwald, do The Intercept, Edward Snowden, refugiado na Rússia, com os irmãos bilionários Nikolai e Pavel Durov. Os Durov são proprietários do programa de conversação em chat, o Telegram, de onde vazaram os diálogos entre o ministro da Justiça Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, revelados por Greenwald e sua equipe no escândalo conhecido também como Brasilgate. Finalmente, a PF teria encontrado ligações com Evgeniy Mikhailovich Bogachev, conhecido como Slavic, procurado pelo FBI sob a acusação de cometer crimes cibernéticos, que criou o vírus Cryptolocker e o código Zeus.
Conforme o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, o órgão “acredita ter se aproximado dos hackers que invadiram a privacidade dos procuradores”. A relação conspiratória, clara tentativa de criminalizar os jornalistas do The Intercept e levar os denunciadores da tribuna para o banco dos réus, foi levianamente lançada em veículos brasileiros de direita desde o início da semana. Estão aí todas as tintas de mais uma farsa do ex-juiz que fraudou a justiça com seus processos persecutórios e seletivos, baseados numa relação de influência ilícita sobre os procuradores da Lava Jato e na manipulação dos autos de acusação para condenar em tempo record o ex-presidente Lula à prisão. Emparedado pelas revelações do site The Intercept, trazidas a conta-gotas, como uma morte lenta, Sérgio Moro precisa com urgência de qualquer subterfúgio pra sair da berlinda e partir para a ofensiva.
O único indício apontado pela revista de que a relação apontada por um perfil anônimo no twitter de forma grotesca pode merecer a credibilidade dos seus leitores é o fato de a PF dar importância a ela (SIC). “Embora parecesse inverossímil num primeiro momento, por conter erros de grafia e tradução, ISTOÉ confirmou que a PF segue sim o rastro da pista, considerada importante pelos agentes hoje à frente do caso.” Os métodos caluniosos e fantasiosos são os já conhecidos da sua lavra. Enquanto a PF sege as pistas do “Pavão Misterioso”, em Santa Catarina, ninguém entende os rastros da polícia, que parece encobrir na Operação Chabu a sua própria corrupção interna.
PRISÃO DE GEAN LOUREIRO: OPOSIÇÃO SE MANIFESTA (NOTA)
Florianópolis amanheceu com a notícia de que o Prefeito Gean Loureiro (sem partido) foi preso por fazer parte de uma suposta organização criminosa articulada para atrapalhar e impedir investigações da Polícia Federal.
Os vereadores signatários desta nota assumem o dever legal de se manifestarem publicamente nos termos do art. 37 da Constituição Federal. Somos sabedores que o método Gean de fazer política é questionável. Sem juízo definitivo, sua prisão indica que temos à frente da administração municipal um agente político que construiu sua trajetória por meios duvidosos e com provável quebra de princípio basilar da ética e da honestidade, agindo de modo incompatível com a dignidade e o decoro dos cargos.
Sua desvinculação recente das fileiras partidárias do MDB foi anunciada como decisão positiva para se afastar dos escândalos promovidos pelo seu partido. Para nós, essa decisão sempre representou mais uma estratégia eleitoral do que uma decisão sincera e de combate aos mal feitos de seu renegado partido.
Exerceremos nossa função parlamentar de fiscalização e estaremos atentos e vigilantes no nosso dever legal. Não tomaremos decisões por impulsos e nem por motivações midiáticas.
Certos que preparados estamos para qualquer desafio, buscaremos estar sintonizados com o sentimento de justiça, representando os interesses do povo florianopolitano.”
Afrânio Boppré – Vereador PSOL
Lino Peres – Vereador PT
Marquito – Vereador PSOL
Vanderlei Farias – Vereador PDT
NOTA DO PARTIDO DOS TRABALHADORES DE FLORIANÓPOLIS SOBRE A PRISÃO DO PREFEITO GEAN LOUREIRO
O Partido dos Trabalhadores de Florianópolis mantém sistemática oposição ao governo de Gean Loureiro, uma vez que a política implementada pelo prefeito é diametralmente oposta à visão de mundo defendida por nosso Partido, tanto que nossa bancada atua como oposição ao paço municipal, com responsabilidade e de forma sempre propositiva, fato é que nosso projeto de cidade não cabe neste projeto implementado por Gean.
Contudo, mantemos a responsabilidade e coerência na defesa intransigente do estado democrático de direito, rechaçando práticas que ferem o princípio da presunção de inocência, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, para dizer o mínimo.
As prisões pirotécnicas como método tem sido a arma do estado policialesco que tanto combatemos nesses últimos tempos de nítido obscurantismo.
Que as investigações apurem adequadamente as respectivas responsabilidades cíveis, criminais e administrativas, mas sempre sob o holofote das regras do jogo democrático e das garantias e direitos individuais.
Vários são os exemplos de excessos cometidos pelas autoridades investigativas do Estado pelo País afora, sendo que em Santa Catarina, por exemplo, passamos pelo fatídico episódio que vitimou o Reitor Cancelier, cujo inquérito recém finalizado conclui sua total inocência.
Independente de apoiar ou não determinada figura pública e sua política, o foco deste tipo de ação policialesca espetacularizada precisa ser necessariamente pensada a partir do cabimento da prisão, seja ela flagrante, preventiva ou temporária, e o consequente risco que um Chefe do Executivo tem de fuga ou destruição de provas do eventual ilícito. Nesse caso, faz-se necessária uma rápida manifestação da Justiça Federal a respeito. A cidade, tanto quanto os indiciados e presos, merecem saber quais os motivos das suas prisões.
Florianópolis 18 de Junho de 2019
Executiva Municipal do Partido dos Trabalhadores de Florianópolis
https://www.facebook.com/afranioboppre50/videos/438509180323097/?t=1

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
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5 anos atrásem
07/11/20
O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
O show de Trump: renovação ou cancelamento?
A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista
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5 anos atrásem
06/11/20por
Aloisio Morais
Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
Feminismo
Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?
Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros
Publicadoo
5 anos atrásem
05/11/20
A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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