Brasília 2016: quando 1964 se repete

Texto e fotos por Isis Medeiros, especial para os Jornalistas Livres

Já faz alguns dias desde que chegamos de Brasília, mas só hoje percebi que a ficha tinha caído. Depois de acordar de um sono turbulento, eu me assustava com um barulho qualquer dentro do quarto e então senti dores por todo o corpo. Vivi os últimos dias como se fossem um só porque o sentimento é de como se aquele pesadelo de horror visto na última terça-feira (29), em Brasília, ainda não tivesse acabado – e sabemos que de fato  ele não acabou! É mais real do que imaginávamos, mas só me dei conta da dimensão daquela violência e o quanto a aprovação do Proposta de Emenda Constitucional 55 está sendo escondido pela mídia tradicional por seus velhos métodos, que insistem em mostrar somente os estragos físicos deixados naquele cenário, julgando os manifestantes como vândalos, responsáveis por toda violência. Bateram na tecla em mostrar para a população que os danos aos monumentos públicos foram os maiores estragos daquele dia, desconsiderando a pauta mais importante e escondendo a gravidade da aprovação da votação em primeiro turno do “pacote da desigualdade”, que vai congelar por 20 anos os investimentos sociais e  acentuar, gradualmente, a desigualdade social no país sem que as pessoas saibam a origem de tamanho retrocesso.

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Enquanto lá de dentro do Congresso Nacional faziam coquetéis luxuosos, do lado de fora milhares de secundaristas, universitários, professores de inúmeras instituições de ensino, movimentos sociais, partidos políticos e outros grupos organizados de todo país, manifestavam contra a medida proposta. Estavam ali reunidos, em grande maioria, estudantes que ocuparam mais de mil escolas, universidades públicas e instituições de ensino em todo o Brasil. Grande parte desses espaços educativos ocupados nos últimos meses tiveram aulas convencionais suspensas e deram espaço à resistência de jovens cidadãos que forjaram dia a dia um novo cenário nunca visto antes na história do país. Alunos e professores saíram das salas de aulas e se abriram para a maior experiência de troca de saberes ao debater sobre a politica nacional, cultura, esporte, alimentação, lazer, questões ideológicas de gênero, além das opressões estruturais como racismo, machismo, lgbtfobias e, principalmente, sobre os novos rumos do ensino médio, com a MP 746 proposta pelo Ministério da Educação.

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Passavam dias em convívio, experimentando formas de socialização e organização, como nunca feito antes. Os estudantes foram os únicos capazes de nacionalizar a pauta da educação, provocando o questionamento dentro e fora das salas de aula. No último dia 29, não foi diferente em Brasília. A votação da PEC 55 trouxe jovens de todo Brasil para acompanharem de perto os desdobramentos da votação da medida que coloca em risco direitos previstos pela Constituição de 1988. 

A PEC proposta não atinge somente a educação pública e gratuita, mas também a saúde pública e todos os programas de incentivo à pesquisa, ciência e tecnologia, bem como políticas sociais criadas na gestão dos governos anteriores como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Pronatec, Fies, Prouni e mais adiante Previdência Social, também alvo de futuras reformas prejudiciais ao povo trabalhador.

Já se sabia que barrar a aprovação de tal medida no atual cenário de golpe não seria fácil! Temer já demonstrou que não governa para o povo, mas prioriza a iniciativa privada, os grandes bancos e empresários. Muito tem se ouvido do atual governo e de seus aliados que “A Constituição não cabe no orçamento”. Usam esse argumento como pretexto para cortar do povo garantias de direitos básicos conquistados, agravando cada vez mais as desigualdades.

Está aí o grande motivo de se intensificarem as lutas e disputas contra o atual governo, não eleito por voto popular. O que os estudantes logo compreenderam é que quando se mexe em direitos, as áreas da saúde e educação são as primeiras a sofrerem cortes. Essa instabilidade e ameaça levaram milhares de jovens, professores, profissionais de diversas áreas da educação à Brasília.

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O dia começou animado com concentração em frente ao Ministério da Educação e lá elas e eles se prepararam durante todo o dia com bandeiras, camisetas, adesivos, ensaiavam músicas, batuques e performances artísticas, compartilhavam alimentos, gritavam palavras de ordem e cantavam marchinhas com a temática que denunciava a PEC e os retrocessos do governo ilegítimo.

Corria tudo bem e animado, uma alegria natural da juventude. Do Museu ao Congresso, as organizações gritavam juntas por uma única causa: “Barrem essa PEC ou paramos o Brasil!” Não se sabe ao certo o número de manifestantes que marchavam juntos, mas o que se viu foi o preenchimento rápido e colorido de todo o gramado em frente ao Congresso Nacional.

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E, por poucos minutos, permanecemos ali diante dos inúmeros cordões policiais da Força Nacional, que já cercavam todos os espaços de acesso à Casa.

Dezenas deles cercavam os prédios, já preparados para atacar à qualquer sinal de afronta. Vi aquela cena toda se formando de cima do gramado e me preenchi por uns segundos de orgulho por ver a juventude, que há anos não se envolvia em questões políticas, unida por um motivo tão importante, definidora dos próximos 20 anos.

Pensei no quanto aquele movimento poderia ser ainda maior se a maioria da população que terá seus direitos arrancados estivessem conscientes dessa ameaça.

Não teria espaço naquela cidade para comportar tanta gente contra essa aprovação. Foi nesse momento que me despertei para o primeiro estrondo, e outro e mais um… Até que vi um carro da TV Record tombado longo em frente ao espelho d’agua.

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A Polícia disparava bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta. As pessoas corriam desesperadas de um lado para o outro, gritando assustadas e sem rumo, em busca de refúgio onde pudessem escapar das bombas e dos tiros que eram disparados por todos os lados. Eu não acreditava no que via. Essa não foi a primeira, nem segunda, nem milésima manifestação em que eu faço cobertura fotográfica na rua, mas sem dúvidas foi a mais rápida até o início da repressão policial. A multidão corria, as mães arrastavam os filhos pequenos tentando protegê-los enquanto várias pessoas ficavam para trás sem conseguir correr e sair dali. Outros caíam pelo chão quase asfixiados com o gás e eram carregados por outros que prestavam socorro e tentavam acordá-los. Grupos que não se afastaram da zona principal de atuação dos policiais cercavam a área e distraiam o efetivo para que não avançassem mais sobre os manifestantes.

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Utilizavam então cones de trânsito, placas, paus, grades e tudo que encontravam pela frente para criarem barricadas de proteção aos atingidos que se encontravam feridos e sem consciência pelo gramado. Quem passava inocentemente pelo local também era abordado, agredido e preso de forma violenta pela polícia. Vi naquele momento cenas inesquecíveis de solidariedade e atenção entre as pessoas, principalmente os mais jovens que socorriam crianças, idosos e mulheres. Muitos colocavam a vida em risco na tarefa de resgatar nos próprios ombros os que encontravam desacordados pelo gramado passando mal com o efeito dos gases, dos estilhaços e do descontrole psicológico de uma grande parte que corria atordoada com a explosão das bombas.

Definitivamente, não havia espaço para o diálogo e negociação e isso foi algo também inédito diante de tudo que já vi. Em quase todos os atos em que estive fotografando, inclusive os que tiveram ação truculenta da polícia, houve diálogo para cessar a ação e recuo dos manifestantes, sempre acordada entre comandante da Polícia e dirigentes das organizações e movimento sociais. Dessa vez não houve. O que vimos foi uma ação desmedida, irracional e extremamente truculenta da Polícia contra todos aqueles que, minutos atrás, lutavam juntos por direitos, inclusive o de manifestar democraticamente.

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Acima de nossas cabeças, três helicópteros sobrevoavam com um barulho ensurdecedor. De todos os lados policiais cercavam o pátio de guerra e, a frente, viam-se o Congresso e os Ministérios cobertos por uma fumaça preta. Por onde eu corria para me esconder encontrava grupos de pessoas assustadas chorando, uma correria sem fim.

Não vi ambulâncias, não encontrei nenhum parlamentar vindo dialogar com a Polícia para cessar aquela barbaridade, nem mesmo vi alguém vindo prestar socorro às vítimas, além dos próprios jovens e professores que iam recolhendo os alunos que encontravam pelo caminho.

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Ao mesmo tempo, a Polícia avançava em direção aos manifestantes que esperavam de longe alguma notícia e formas de sair daquela zona. Já estávamos há quase um quilômetro fugindo daquele ataque incessante e covarde e eles ainda cercavam a passagem para que ninguém pudesse passar em direção ao Congresso. As bombas não paravam de estourar por todos os lados. Listas e listas circulavam nas mãos de diversas pessoas à procura dos desaparecidos e foi aí que começaram a ir até delegacias e hospitais à procura deles.

Até quando vamos esperar uma tragédia maior acontecer para que o povo seja ouvido?

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Brasília virou um cenário de um Brasil que eu só tive oportunidade de conhecer através dos livros de história e fotografias que resgatam tempos de ditadura e censura militar.

Ao ver diante dos meus próprios olhos aquele cenário de guerra se materializando, ficavam passando na cabeça, o tempo todo, filmes de um passado não tão distante, com cenas de repressão e tortura, que já assisti anos atrás, mas que a cada dia se fazem mais presente.

O que restavam ali eram estilhaços de bombas por todos os lados, um cenário em chamas, tudo cinza, morto! E toda falta de cor daquelas paredes do cenário monumental projetado por Niemeyer deu lugar à indignação das frases de denúncias e revoltas desenhadas nas paredes, uma denúncia pelo desejo de um povo que não aceita mais o silêncio diante da perda de direitos e liberdade.

Falta pouco menos de um mês para que a PEC 55 seja então aprovada pelo Senado. Há alguns que acreditam que já está dado o fim, mas pra essa nova juventude que se formou, essa história de luta está só começando.

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