ARTIGO
Daniel Pinha, professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Na última semana assistimos à queda de dois personagens importantes da cena política brasileira. Na mesma quinta-feira, 18 de junho, Abraham Weintraub era demitido do Ministério da Educação e Fabrício Queiroz, amigo e empregado da família Bolsonaro, preso. Cada um ao seu modo, representam faces do bolsonarismo: o lunático-antidemocrático-clássico (Weintraub) e seu discurso de ódio à democracia; o miliciano (Queiroz), em sua prática violenta de controle territorial urbano utilizando-se da inserção no aparelho estatal.
A derrocada deles abre caminho para colocar Bolsonaro contra o bolsonarismo. E não porque o “bolsorista-raiz” tenha se decepcionado com a incompetência de Weintraub ou os diversos crimes cometidos por Queiroz. A queda dos dois revela as profundas dificuldades de Bolsonaro em cumprir a utopia autoritária que tanto promete a seus seguidores. O bolsonarismo é um fenômeno político e cultural que não se resume à figura de Jair Bolsonaro. Tal fenômeno carrega traços de duração mais longa, remetendo a uma cultura política autoritária formada ao longo da nossa experiência republicana, intensificada no contexto da Ditadura Militar brasileira. Ao mesmo tempo, dá vazão a sentimentos antidemocráticos que remetem à experiência da crise democrática contemporânea.
Bolsonaro deu voz e coesão a segmentos sociais que converteram a tendência anti-sistêmica de uma crise representativa em sentimento antidemocrático. Em junho de 2013 o problema central era o sistema representativo e não a democracia. A necessidade de alargamento democrático por meio de melhor funcionamento dos serviços do Estado (“padrão FIFA”), maior participação da sociedade civil nas decisões políticas e combate à corrupção, bandeiras mestras em 2013, não atacavam diretamente princípios democráticos.
Em 2020, o bolsonarismo manifestado nas redes e ruas desloca o problema, da representação ao próprio sistema democrático. O combate é ao Congresso e ao STF enquanto instituições, criando um clima de ameaça constante de golpe. O objetivo é dar super-poderes a quem já é Chefe do Estado, isto é, o presidente da República. Ou ainda, restaurar o projeto de 64, com os militares no poder, Bolsonaro à frente. Em um caso e no outro, o maior objeto de desejo dos bolsonaristas é canalizar a representação em um (um sujeito ou uma corporação), realizando o sonho autoritário de um governo livre das diferenças. Somente assim, seria possível realizar a outra parte da utopia autoritária: o saneamento moral da política brasileira, em nome do fim da corrupção e restauração do ordenamento moral da família tradicional.
As quedas de Weintraub e Queiroz tornam essa utopia muito mais distante. Estes casos colocam o bolsonarista na incômoda condição de ver sua principal liderança negociar no interior deste sistema democrático, que é o atual. Uma negociação nada virtuosa, diga-se de passagem. Weintraub é uma figura popular entre os bolsonaristas não por suas realizações à frente do Ministério da Educação. Nem mesmo um projeto de desmonte do modelo atual ele conseguir desenvolver. Em sua última ação, revogou cotas para negros e indígenas na pós-graduação, medida já suspensa pelo próprio MEC. Nesta e em outras ações ele gritou, mais do que agiu – para a sorte da educação no país. Mesmo assim, entre os apoiadores de Bolsonaro, Weintraub saiu do governo sendo considerado um ícone, por suas polêmicas, movimentação debochada na conta do Twitter, pela declaração que se tornou pública na reunião ministerial, de que “prenderia todo mundo, a começar pelo STF”.
O bolsonarista identificava em Weintraub um igual a ele: governando com um celular na mão, mais ocupado em denunciar e destruir “o sistema” do que em edificar algo. Ainda assim, foi demitido. Foi demitido como qualquer eleitor radical bolsonarista seria. E por quais motivos? Porque Bolsonaro cedeu às pressões do Congresso e do STF. Porque Bolsonaro utilizou cargos do Ministério da Educação para negociar com os deputados do “Centrão”, em busca de uma base parlamentar mínima para se manter no governo. Porque Bolsonaro não quis se indispor com o STF por Weintraub, como o fez na proteção de seus filhos, assumindo uma queda de braço com Moro. A fidelidade ideológica de Weintraub não foi suficiente para deixá-lo no cargo, tampouco sua disposição para o combate. A utopia autoritária manifestada na voz de Weintraub se mostrou uma quimera, uma fantasia irrealizável.
No caso de Queiroz, a situação é ainda mais delicada. Ele encarna a presença das práticas corruptas no interior da família Bolsonaro. O bolsonarista-raiz costuma se vangloriar de que não há escândalos de corrupção no governo, entendendo corrupção em sentido estrito, isto é, práticas de enriquecimento ilícito pelo ato de roubar dinheiro público. Incentivar o ódio e a violência na política não é um problema. Aparelhar Polícia Federal para proteção de filhos, não é problema. Incentivar invasão a hospitais em meio a uma pandemia, com mais de mil mortes por dia, também não é problema. Problema é “roubar”. Com Queiroz, este sentido estrito de “roubo” fica evidente.
Escancarado
A imprensa trata o Caso Queiroz como “escândalo das rachadinhas”, isto é, repasse obrigatório de parte do salário dos assessores parlamentares ao partido, de modo que o mandato possa se manter forte em suas bases eleitorais. Uma prática corrupta, que se torna ainda mais grave quando as investigações indicam o destino do dinheiro. O dinheiro das “rachadinhas”, segundo denúncia do Ministério Público, pagou mensalidade escolar e plano de saúde das filhas de Flávio Bolsonaro. E isto para citar apenas um exemplo, sem detalhar o quanto estes recursos serviram para fortalecer a atuação das milícias nas bases eleitorais dos Bolsonaros. Estamos falando, portanto, da prática corrupta circunscrita aos limites do entendimento de corrupção definidos pelo próprio bolsonarismo. Para completar a situação: Queiroz foi encontrado na casa do advogado de Flávio e Jair Bolsonaro. Ainda vem muita coisa por ai.
O caso Queiroz expõe a inviabilidade do projeto de saneamento moral anticorrupção por meio do governo Bolsonaro. E coloca em xeque, ainda, a situação dos militares no governo: por que os militares apoiariam um golpe para fortalecer Bolsonaro no poder, em meio ao escândalo do caso Queiroz? Ao contrário do caso Moro, que fez os generais do governo se unirem em torno do governo – já que também eles estavam implicados em prática criminosa, tendo que assegurar a versão do presidente para salvar a própria pele – o caso Queiroz isola a família Bolsonaro e seus vínculos com as milícias. O avanço das investigações tornará ainda mais insustentável a retórica de saneamento moral anticorrupção endossada pelos militares.
Estarão os militares dispostos a levar até o limite o apoio a um governo corrupto e clara vinculação com milicianos? Se este quadro acarretará em perda de apoio ao presidente, ainda é impossível prever. O recuo de um bolsonarista-raiz demandaria revisão de práticas que lhe conferem não apenas uma identidade política, mas também, pessoal; uma identidade que lhes constitui enquanto sujeito no mundo. Este é um movimento possível, mas lento e gradual.
O saldo, entretanto, é negativo para o presidente. E estamos só no começo. A queda de Weintraub e a prisão de Queiroz coloca o Bolsonaro contra o bolsonarismo, deixando ainda mais evidente que ele é incapaz de realizar o projeto de futuro que desperta em seus seguidores, a utopia autoritária que sustenta sua retórica antidemocrática no presente.
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