“Viemos aqui falar para vocês da outra tragédia que iremos lutar para evitar: a perda do nosso território e da nossa vida. Nós não viemos negociar com vocês, porque não se negocia nem território nem vida. Nós somos contra a construção de barragens que matam a terra indígena, porque elas matam a cultura quando matam o peixe e afogam a terra. E isso mata a gente sem precisar de arma. Vocês continuam matando muito. Vocês simplesmente matam muito. Vocês já mataram demais, faz 513 anos.”. 4 de junho de 2013, Vitória do Xingu, Carta número 9: Tragédias e barragens (a luta não acaba nem lá nem aqui) O texto acima é parte de um conjunto de dez cartas endereçadas ao governo federal escritas por lideranças indígenas Munduruku e de outras etnias a partir do canteiro de obras da usina hidrelétrica de Belo Monte, que na ocasião foi ocupado por cerca de um mês em protesto contra a construção de uma série de hidrelétricas nos rios Xingu, Teles Pires e Tapajós. Elas são fruto de um processo de resistência encabeçado por diversos povos nativos do Brasil em defesa de seu território e de seu modo de vida contra grandes empreendimentos do governo previstos na Amazônia. Foram escritas para dar voz à gente que vive nos rios em que o governo está construindo barragens: Munduruku, Juruna, Kayapó, Xipaya, Kuruaya, Asurini, Parakanã, Arara, pescadores e ribeirinhos. “Nós somos da Amazônia e queremos ela em pé. Nós somos brasileiros”, diz trecho da primeira carta divulgada durante a ocupação. Os rios que cortam a Amazônia são fundamentais para os habitantes da floresta. O regime de seca e cheia das águas moldou a vida dessas populações ao longo de centenas de anos. Além de principal fonte de alimentação e meio de transporte, os rios fazem parte da cosmologia dos povos que vivem ali. Interferir nessa dinâmica é interferir brutalmente na forma como eles vivem, e até na sua sobrevivência. É o que tenta explicar aos “pariwat” (como os Munduruku chamam os não-índios), o historiador Munduruku Jairo Saw: “O rio faz parte de nós porque nos dá vida. Os nossos antepassados deixaram esse patrimônio pra gente, por isso temos que cuidar. A natureza tem uma lei, se a gente violar, teremos consequências. Os pariwat nunca vão entender. O impacto é também cultural, psicológico e espiritual. Pra nós [a construção de barragens] é uma ofensa, uma violação dos nossos direitos”, afirma Saw.
De 1970 até hoje, a Amazônia já perdeu 19% de sua floresta. Após diversos momentos de exploração da região, como a borracha, a extração de ouro e minérios, a comercialização de madeira e a expansão do agronegócio, vivemos hoje uma nova fronteira de exploração da Amazônia: a construção de usinas hidrelétricas. Os impactos socioambientais das barragens são inúmeros e vêm sendo comprovados a cada nova grande obra erguida no meio da Amazônia. Perda da biodiversidade, desmatamento, inchaço populacional de cidades e comunidades locais, serviços públicos insuficientes, poluição de rios e igarapés, violência, prostituição, tráfico de drogas, deslocamento de populações tradicionais, mudança no curso natural dos rios, perda de meios de sobrevivência com pesca são alguns dos mais dramáticos impactos registrados obra após obra. É o que tem acontecido em Altamira, onde está sendo construída Belo Monte, que tece o exemplo para o Tapajós. Para discutir os paralelos entre as duas obras, lideranças Munduruku se encontraram no final de março com Antonia Melo, liderança do Movimento Xingu Vivo, e Dom Erwin Kräutler, bispo da prelazia do Xingu que mora há mais de 30 anos na Amazônia e é uma referência para os movimentos sociais na região na luta contra Belo Monte. A conversa faz parte de uma articulação entre os povos da Amazônia para denunciar as ameaças ao seu modo de vida e aos seus territórios causada pelas hidrelétricas. Ambos contaram aos Munduruku os problemas que os índios do Xingu vêm sofrendo com a construção das barragens, como igarapés que começaram a secar, forçando a abertura de estradas que promovem a invasão das terras indígenas, e a dependência alimentar, que segue cada vez maior, com os índios deixando de produzir suas roças e dependendo de alimentos que vem de fora, podendo causar doenças comuns em brancos mas antes desconhecidas pelos índios, como diabetes e obesidade. “É como se direitos fundamentais garantidos na Constituição tivessem se tornado moeda de troca”, afirmou Dom Erwin. Para facilitar a aceitação de empreendimentos como esses pelas populações locais, saúde, educação e infraestrutura passam a ser oferecidos pelas empresas construtoras como favores, enquanto o Estado negligencia um papel que deveria ser seu. “Essa ideia de energia limpa tem que ser repensada. Energia de hidrelétrica não é limpa se está sendo construída em cima do sangue dos povos” afirma o religioso. “O debate não é Belo Monte, o debate é a sobrevivência dos povos indígenas”. Na linha de frente dessa batalha de David contra Golias pela sobrevivência, ou, do jabuti contra a anta (para falar a partir da cosmologia indígena) está o povo Munduruku: mais de 12 mil pessoas que habitam a região do rio Tapajós, no Pará e que são os protagonistas da luta contra as obras no rio que lhes dá vida. “Nós fazemos parte da natureza, não queremos que nosso conhecimento desapareça, nossa forma de vida, de organização. Queremos que nos respeitem, que o mundo saiba o que estamos sentindo”, diz Jairo Saw.PARTE I
A morte dos rios
Não é contra as hidrelétricas, é pelos direitos indígenas
Saiba mais sobre os Munduruku e a luta pela demarcação de suas terras na próxima reportagem.
Originally published at www.greenpeace.org.