“A terra é para todos. Nenhum de vocês deve ter ciúme da terra”

 

A data de reintegração de posse da aldeia Guarani de Itakupe, no Jaraguá, já está marcada: acontecerá entre 25 e 29 de maio se não houver decisão de suspensão da liminar cujo recurso tramita no Supremo Tribunal Federal ou assinatura do ministro Eduardo Cardozo na portaria que dá prosseguimento à demarcação das terras.

Do lado de fora do 49 Batalhão da Polícia Militar de Vila Clarice, na região noroeste de São Paulo, um círculo de Guarani Mbya se forma. Começam a cantar ao som de violão e viola.

Eles estão rezando. A Nhanderú, o “Deus Verdadeiro”, aquele que disse: “A terra é para todos. Nenhum de vocês deve ter ciúme da terra”. A fumaça dos petengua, o cachimbo tradicional, faz parte do ritual. Estão rezando porque lá dentro, em uma sala do batalhão, seus líderes estão reunidos com advogados, oficial de justiça, representantes da PM e com o homem que alega ser dono das terras onde eles vivem e plantam. É o ex-prefeito de São Bernardo do Campo, Antonio Tito Costa, que chegou acompanhado de dois filhos. Está lá também o secretário dos Direitos Humanos de São Paulo, Eduardo Suplicy.

Enquanto os Guarani cantam, ouve-se das matas que cercam o batalhão o grito dos PMs que participam de um treinamento ali perto. Geni, sentada na grama aperta as mãos nervosa: “São meus filhos que estão aqui lutando ao lado do avô (o Cacique Ari) para não tirarem a nossa terra”. Ao lado dela, Richard, de apenas 12 anos, acompanha tudo com ar tranquilo. Mas só na aparência. Na primeira reunião realizada no Batalhão há duas semanas, era ele que esperava na aldeia e que perguntava ansioso: “Quando a PM vai vir tirar a gente daqui?”. Richard e Geni, para que fique bem claro, são seus “apelidos” em português. Todos os Guarani Mbya do Jaraguá tem seus nomes na cultura original, mas adotam os “apelidos” para facilitar a convivência com os “juruá”, como são chamados os não-indios.

Hoje veio a resposta para a pergunta de Richard. Os PMS irão a Itakupe — que para Antonio Tito Costa chama-se Gleba Jaraguá — entre 25 e 29 de maio para executar a ordem de reintegração de posse. O resultado da reunião desta terça-feira só muda se houver suspensão da liminar que autorizou a reintegração e a decisão para tanto está nas mãos do Ministro Ricardo Lewandowiski no Supremo Tribunal Federal. O resultado também muda se o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assinar a portaria declaratória que dá prosseguimento à demarcação dos 532 hectares reconhecidos pela Funai como Terra Indígena (TI) tradicional dos guarani, fundamentada em um estudo de 10 mil páginas divulgado em 2013 depois de 11 anos de estudos. A “Gleba Jaraguá” , que inclui a área de moradias e plantação em Itakupe, se constitui de 72 hectares dentro da TI.

Todos os Guarani, e não só os do Jaraguá, dizem que vão resistir à retomada das terras se a reintegração de fato acontecer. “Somos dois mil Guarani Mbya em São Paulo e vamos resistir”, diz David Martim, um dos líderes, ao sair da reunião. Enquanto David fala, Antonio Tito Costa vai saindo pela lateral, mas é parado pelos jornalistas. Repete o que disse na reunião anterior, que não pretende construir “condomínio de luxo” na região, que está fazendo estudos sobre o que fazer com as terras, talvez uma plantação de eucaliptos (um de seus filhos já é dono de uma empresa de cultivo de eucaliptos em Torrinha, cidade natal de Tito Costa, no interior paulista). “Mas os eucaliptos secam as nascentes e deixam as matas sem vida”, diz o ativista Adriano Sampaio. “Não vou ficar aqui discutindo com vocês”, diz Tito Costa, já de saída.

Eduardo Suplicy também sai para dar entrevista e diz que esteve tanto na aldeia conversando com o Cacique Ari quanto na casa de Antonio Tito Costa, buscando um entendimento. Disse que está em conversas com o ministro Eduardo Cardozo, procurando uma solução.

A questão é que o tempo é curto. Os Guarani tem apoio de seus parentes de outras aldeias. E de um grupo de juruás também. Mas as vozes precisam crescer. Não só no Jaraguá, mas em todas as terras habitadas pelas diversas etnias indígenas brasileiras, os juruás parecem dar pouca atenção aos gritos de socorro que vêm das aldeias. Onde se perdem terras, onde se perdem vidas, onde se perde a saúde, onde o preconceito, a violência e a intimidação imperam. Essa pouca atenção faz pensar na frase que o ex-presidente Jânio Quadros teria dito ao indigenista Orlando Villas Boas, cena que aparece no filme Xingu, de Cao Hamburguer: “No Brasil ninguém gosta de índio”.

No mesmo filme, um capanga diz a Orlando que “branco que ajuda índio é ‘pior’ que índio”. É essa a sensação de quem procura apoiar os Guarani e encontra pouco eco dos outros “juruás”. Somos ‘pior’ que índio, somos os ecochatos, somos os ‘assistencialistas’. Não são muitos que vêm valor naqueles que se preocupam com a sobrevivência das tantas culturas indígenas assim como com o futuro do pouco que resta da nossa Mata Atlântica, ameaçado de virar um deserto de eucaliptos.

Atualmente existem três aldeias da etnia Guarani Mbya no bairro do Jaraguá. São elas Tekoa Ytu, Tekoa Pyau e Tekoa Itakupe. Apenas uma delas, Ytu, foi demarcada até hoje, com 1,7 hectare: trata-se da menor área demarcada em todo o país. Nas demais, pesam sobre os Guarani processos que podem leva-los a perder as terras. Tekoa Itakupe é o único local que a comunidade de 800 pessoas tem para plantação de subsistência e para água limpa. Isso porque nas demais aldeias, já em área urbanizada, falta saneamento básico, os córregos estão poluídos e o abastecimento de água tem sido interrompido com frequência. Essa situação tem levado a inúmeros problemas de saúde, especialmente entre as crianças, que sofrem de desidratação e desinteria.

Tito Costa, de 92 anos, alega que a chamada “Gleba Jaraguá” seria sua por herança de sua falecida esposa, Léa Nunes Costa. Esta, por sua vez seria dona do local em condomínio com outras pessoas, todas já falecidas. Apesar da “propriedade” coletiva, o juízo da 10 Vara Federal de SP aceitou que Tito Costa movesse sozinho a ação contra os Guarani e autorizou em medida liminar a reintegração de posse.

As informações disponíveis sobre Tito Costa dão conta de que ele nasceu em 31 de dezembro de 1922 na cidade de Torrinha, que ironicamente faz parte da chamada Chapada Guarani, no interior de São Paulo e que ele teria cursado o seminário por três anos antes de se mudar para a capital paulista. Formou-se em Direito na Faculdade do Largo São Francisco, USP, em 1950.

Sua carreira começou como advogado e procurador da prefeitura de São Bernardo do Campo. Em 1953, casou-se como Léa Nunes Costa, com quem teve cinco filhos. Foi vereador em Torrinha e prefeito de São Bernardo do Campo entre 1977 e 1983. Foi deputado federal constituinte pelo PMDB entre 1987 e 1990. E vice-prefeito de SBC na gestão de Walter Demarchi, de 1993 a 1996. Também já ocupou o cargo de vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seccional de São Paulo.

Em fevereiro de 2015, a Justiça do Estado de São Paulo condenou Antonio Tito Costa, juntamente com o ex-prefeito de Osasco Francisco Rossi de Almeida, o advogado Aymoré de Mello Dias e o também advogado José Daniel Farat Junior ao pagamento de R$848.455,15 na Ação Civil Pública (processo número 0015717–46.1996.8.26.0405 ) de Improbidade Administrativa. O motivo foi a prestação de serviços de advocacia à prefeitura de Osasco sem ter passado por licitação.

No fim de semana passado, quando os “juruás” apoiadores dos Guarani estiveram em Itakupe para uma mobilização em favor da manutenção das terras, um menino guarani se aproximou e falou baixinho: “Você viu o que o Tito Costa fala da gente?”. Sim, a gente viu, ou melhor, leu, em uma reportagem. “Os índios estão lá, alvoroçados. Meia dúzia de índios desocupados. Porque há um acampamento de índios próximo dali. Lá eles recebem cesta básica, ajuda do Estado. E tem uma mulherada barriguda dançando pra lá e pra cá. Criança suja. Não fazem nada, mas vivem lá. E agora querem invadir outras áreas para continuar não fazendo nada”, disse ele à reportagem do site R7. Nos autos da ação de reintegração de posse, os advogados de Tito Costa alegam que os “posseiros” não são índios, mas pessoas “ridiculamente fantasiadas”.

Desabafo

Minha militância na causa indígena não é longa, mas suficiente para perceber que a raiz dos problemas que vivemos hoje em relação às comunidades indígenas parece estar no preconceito e no profundo desconhecimento sobre a história, os costumes e a cultura desses povos. Somos um bando de juruás que dizemos “programa de índio” quando nos referimos a um entretenimento ruim. Que diminuímos nossa cultura brasileira chamando-a de “tupiniquim”. Somos um bando de juruás que não saberiam citar mais do que três nomes de etnias indígenas brasileiras. Que estudam na escola tudo sobre a Grécia Antiga e nada sobre nossos povos originários. “Nossas crianças não são sujas. A sujeira está na cabeça do branco. Nossas crianças pisam com os pés descalços na terra. Seus pés estão “sujos” de terra. Tito Costa chama a terra que ele tanto quer para si de suja”, diz David Martim.

Saiba mais sobre a causa Guarani:

Comissão Guarani Yvyrupa — CGY

Resistência Guarani SP — Campanha: assina logo, Cardoso!

No Facebook: https://www.facebook.com/yvyrupa

 

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS