Como a cobra que morde o próprio rabo e se cria e recria, um ônibus corta terra infinda. Há artista, há metalúrgico, há rastafari, há pastor, há senhoras. Pela estrada novamente vamos à Brasília. Eu aos índios acampados, nós à ela, à presidenta que impedem em duro momento seu bailado.
Dessa vez muitos homens acompanham as mulheres e o liberto pastor em nosso ônibus se apresenta em benção, prece e anúncio: Nossa Senhora foi mãe de Jesus, que estava entre os pobres, se ela, a presidenta, é pelos pobres, eu estarei com ela amanhã, conclui o religioso.
Nessa noite longa, enquanto os senadores votam, nosso sono se estende na estrada e revemos nossos sonhos em curtos desabafos e expectativas. Não seremos nunca mais os jovens de 78 após esse dia, me dizem os velhos moços, que na década de 80 brotaram em partido. Aqui todos os passageiros trazem os movimentos sociais em pele e gesto.
Na alvorada já sabíamos do resultado da votação favorável ao afastamento da presidenta. Estacionamos sob a paineira rosa na rodoviária e ao longe víamos a nave que agora pousa no Senado como cunha que partiu um laço. Os olhares maduros do grupo guardam certa lágrima, mas se põem em marcha ao palácio, a expor e recepcionar corações valentes de uma geração.
Muitos indígenas, acampados em Brasília pela salvaguarda de seus direitos, se fazem presentes na multidão, quieta e saudosa a aguardar a mulher diante da rampa. Em aplausos e saudações valentes explodem à aparição . O ex-presidente ao seu lado traz o olhar cansado e ausente, como ocos de favo de mel. A mulher, tão firme, sorri andando ao resguardo . Paradoxal sensação entre choro e risadas, entre abraço e despedidas. A presidenta tão próxima e solidária nesse momento, confirma que a luta continua. Todos partem quietos com suas explosivas passividades, bandeiras se dobram, olhares se dispersam.
Caminho para o acampamento indígena, ao encontro de meus amigos em mobilização. Em clima de aldeia e rio alguns se banham na cascata do Itamaraty, são rasas as consolações em tarde quente. Em torno de circo cheio de tons está a aldeia improvisada em centena de barracas. São calmas as discussões após o almoço e há no ar de toda capital uma ressaca em todos pairada. Serão moucos os alentos nesse instante. Como índio sei que sempre é necessário celebrar os momentos determinantes nessa vida e procuro uma velha índia para me pintar. Abrigado encontro Tuíra Metuktire, mulher Kayapó brava, um doce de pessoa. Ela se propõe a me pintar e com palavras efusivas me penetra fundo nos olhos e meus ouvidos escutam firme tradução: você sabe por que gosto da Dilma? Porque ela é mulher. Não é como homem que faz a gente doer. Ela é mulher, deveria governar para mulher. Vocês homens que fiquem com o presidente, finaliza Paulo Paiakan traduzindo em risos. Tuíra não está com o facão nas mãos, mas brande em alto tom sua lucidez, como perdão nesse momento. Suave segura meu braço ao palito fino de taqüara a desenhar o leve traço de sua dor por Belo Monte. Tuíra Metuktire e Dilma Roussef tem muitas histórias a nos contar um dia.
Em alma definitiva voltamos todos a seus cantos, apenas com a democracia e direitos como estrela guia. Tudo segue quando cai a lágrima, consente o riso e lavam-se as mãos. Como canto de louvor seguimos mais fortes.
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