Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
O exercício da comparação histórica é fundamental para a compreensão da realidade. Assim, conseguimos visualizar o que uma determinada experiência tem de específico e o que herdou de experiências passadas.
É exatamente isso que tento fazer neste ensaio: uma comparação entre o governo de Bolsonaro e a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985.
O interesse em comparar a ditadura com o governo de Bolsonaro, por si só, sugere alguma semelhança entre as duas experiências: o protagonismo político dos militares. A semelhança, no entanto, acaba aí.
O protagonismo não é o mesmo. O vínculo das forças armadas com o governo não é o mesmo e, principalmente, o projeto de desenvolvimento não é o mesmo.
O golpe de Estado sempre é trabalho de equipe. Sozinho, nenhum grupo consegue usurpar o poder. O golpe de 1964 foi o resultado de articulações que já estavam sendo costuradas entre o generalato das forças armadas e parte da elite política civil desde a década de 1950.
A oposição civil ao projeto político getulista era representada pela UDN. Grosso modo, esse grupo tinha como projeto retirar do Estado o controle do desenvolvimento nacional, entregando-o ao mercado. Como o getulismo era eleitoralmente imbatível, as lideranças da UDN constantemente flertavam com os quartéis, buscando apoio dos generais para a pavimentação de um atalho para o poder, de uma via de acesso que não passasse pelas urnas.
O golpe de 1964, portanto, foi civil-militar.
É fato que foram os militares que colocaram os canhões nas ruas em 31 de março. Mas a conspiração somente teve sucesso porque foi apoiada por parte da elite civil nacional e internacional.
Governadores de Estado, empresários, o Departamento de Estado dos EUA. Naquele momento, todos tinham o mesmo objetivo: derrubar João Goulart e o projeto desenvolvimentista estatista e redistributivo que seu governo tentava colocar em prática.
É importante lembrar que as forças armadas também estavam divididas. O marechal Henrique Lott, por exemplo, liderou em 1955 o movimento que evitou o golpe que impediria a posse de Juscelino Kubitschek. Em 1960, Lott foi lançado pela coligação getulista como candidato à Presidência da República. A biografia política de Henrique Lott mostra que, em algum momento, as esquerdas também tiveram seus quadros militares. Durante a ditadura, esses quadros foram perseguidos, expulsos das suas corporações. Alguns foram torturados e mortos.
Já a ascensão de Bolsonaro não foi impulsionada por um movimento militar orgânico. Bolsonaro não é um militar orgânico. Aqui, podemos perceber um dos principais pontos de distinção entre a ditadura e o atual governo.
A vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018, em síntese, foi o resultado da combinação entre dois fatores: a crise da representação política institucional que vem se avolumando no Brasil desde 2013 e a retirada de Lula da corrida eleitoral.
Até houve uma conspiração, até houve um golpe de Estado, mas tiveram dinâmicas bem diferentes dos eventos que aconteceram na década de 1960. O golpe que derrubou Dilma em 2016 foi o resultado da aliança entre o sistema de Justiça e o PSDB, novamente com o apoio do Departamento de Estado dos EUA. O objetivo não era eleger Bolsonaro. O objetivo não era promover o retorno parcial dos militares ao poder.
Digo “parcial” porque o núcleo militar é apenas um entre tantos outros que estão disputando o governo. Na altura em que escrevo este texto, o núcleo militar não tem hegemonia.
A hegemonia está com o núcleo ideológico, liderado por Olavo de Carvalho e operacionalizado dentro do governo por Ernesto Araújo (chanceler), por Abraham Weintraub (ministro da Educação), por Damares Alves (ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos) e por Eduardo, Carlos e Flávio Bolsonaro, os príncipes presidenciais.
Frequentemente, Olavo de Carvalho, com a conivência do presidente da República, utiliza o Twitter para ofender os generais do Exército.
Carlos Bolsonaro, orientado por Olavo de Carvalho, questiona a lealdade do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República. É razoável pensar que essa situação de tensão entre os núcleos ideológico e militar abala a confiança do generalato em Jair Bolsonaro.
Segundo o jornalista Luís Nassif, o decreto das armas, assinado pelo presidente em 8 de maio, faz parte da estratégia de miliciarização da sociedade. Ao facilitar a compra de armas, o presidente estaria potencializando a formação de milícias privadas, o que diminuiria sua dependência em relação às forças armadas. Bolsonaro teria, assim, seu próprio braço militar, que seria bastante útil caso os generais cansem de serem expostos, ofendidos e humilhados.
A hipótese de Nassif é tão assustadora quanto astuta. Não é de hoje que Nassif é um dos melhores intérpretes da crise brasileira.
Também na agenda desenvolvimentista, o governo de Bolsonaro é muito diferente da ditadura militar. Muito diferente mesmo.
Na década de 1960, as forças armadas não cumpriram o acordo feito com a UDN, o que fez com que Carlos Lacerda, principal liderança udenista, rompesse com a ditadura já em 1965. No que se refere à agenda de desenvolvimento, a ditadura esteve mais próxima do programa getulista do que do projeto udenista. O Estado continuou sendo o principal tutor do desenvolvimento nacional.
A BR Distribuidora, as Usinas Nucleares de Angra 1 e Angra 2 foram criadas durante a ditadura.
Em 1968, a ditadura fez a reforma universitária que, entre outras coisas, criou a autonomia dos departamentos e o regime de dedicação exclusiva para os professores das universidades públicas. Em 1975, a ditadura promulgou o I Plano Nacional de Pós-Graduação, que fundou a estrutura de pesquisa científica e inovação tecnológica que existe até hoje. A ditadura sabia que não era possível pensar o progresso nacional sem fortalecer o sistema universitário.
Bolsonaro vem fazendo exatamente o contrário: as riquezas nacionais estão sendo entregues a preço da banana, utilizadas como moeda de troca em uma política externa submissa que apequena o Brasil no concerto das nações. Está em curso um projeto deliberado de destruição da universidade pública, o que terá impactos desastrosos na soberania nacional e na competividade do Brasil nos mercados interno e externo.
Se a ditadura teve um projeto de desenvolvimento nacional, o governo de Bolsonaro é caracterizado pelo entreguismo mais vulgar. Se a ditadura foi comandada por generais formados na Escola Superior de Guerra, a ESG, o governo de Bolsonaro é chefiado por um oficial de baixa patente com trajetória militar medíocre e reformado precocemente sob circunstâncias que até hoje não foram devidamente esclarecidas.
Bolsonaro passou mais tempo no Congresso Nacional como deputado de baixo clero do que no Exército como capitão de Artilharia.
Longe de mim elogiar a ditadura. O tal projeto de desenvolvimento nacional de que falei há pouco não apaga, e nem atenua, os crimes contra a humanidade cometidos pelo regime. Os responsáveis pelas torturas e assassinatos deveriam ter sido julgados e punidos.
Eu só quis mostrar que da comparação entre a ditadura e o governo de Bolsonaro, a conclusão é a pior possível: as coisas sempre podem piorar.