Minha arma, sua vida em risco: o forte mais fortão que o fraco armado

Disse o presidente: “Toda a política desarmamentista que começou lá atrás no Fernando Henrique Cardoso até hoje, o resultado foi a explosão do número de homicídios e mortes por arma de fogo. Com toda certeza, dessa maneira, nós vamos botar um freio nisso”.

Infelizmente, o presidente está sendo mal assessorado por alisadores de maçaneta que parecem explorar sua ingenuidade ou mesmo boa fé. O projeto de flexibilização do porte de armas proposto não tem como colocar freio na violência.

Ao contrário, poderá destravar a economia do crime, uma vez que a flexibilização do porte de armas reduz os custos da atividade criminosa barateando as formas de acesso, seus meios e modos de ação. Fará a felicidade dos consultores de armas que operam nas fronteiras entre o clandestino, o ilegal e o informal. Os domínios armados tendem a ficar mais animados já que a corrida armamentista para sustentar seus monopólios político-criminosos ficará mais barata, permitindo maximizar o potencial opressivo com menor gasto nos confrontos armados entre eles e deles com a milícia e a polícia. Poderá, assim, estimular o empreendedorismo criminoso, incluindo aí as consultorias dadas ao crime por agentes da lei e por oportunistas que fazem dos tiroteios a publicidade macabra dos seus negócios da insegurança.

Pode-se abrir novas frentes de exploração no mercado de ilícitos, que se estruturam na produção armada de ameaças para vender proteção, sabotando os esforços de produção de segurança pública. Poderá, também, facilitar a instauração de um regime de convivência, conveniência e conivência com a corrupção e, por óbvio, o fortalecimento de governos autônomos ilegais que já exercem o controle armado sobre territórios e exploram, em acordo com integrantes das forças públicas, os serviços essenciais (luz, água, gás, internet, transporte, etc.). Favorecerá a vigilância clandestina, um tipo “uberização da segurança particular” promovendo ainda mais a precarização do trabalho de vigilância privada.
Tenderá a aumentar os riscos de vitimização fatal, uma vez que o cidadão armado, reativo e em situação de defesa, está sempre em desvantagem tática diante do ataque surpresa de um criminoso. A arma na mão do cidadão só dá vantagem quando ele se torna proativo, provocativo e ainda tem a surpresa ao seu favor já que ele mesmo criou a situação na qual vai intervir. Assim, a vantagem no uso da arma pessoal para uma pessoa comum só acontece quando ela responde à bala àquelas situações que ocorrem em um perímetro bem pequeno, com boa visibilidade e pouca movimentação. Estas situações são exatamente os conflitos interpessoais envolvendo conhecidos, parentes e próximos, em casa, na vizinhança, arredores, etc., nas quais se tem tempo para construir soluções não violentas que não seja a da valentia com arma na mão. O próprio presidente sabe disso, uma vez que, mesmo armado, foi rendido durante o assalto que sofreu.

A cidadania armada não tem como produzir equivalência de força entre os indivíduos que são desiguais em direitos e no acesso aos recursos de defesa pessoal. No Brasil, a arma seguirá tendo classe, renda, cor, gênero, etc. E, por isso, servirá, sobretudo, para afirmar privilégios constituídos e garantir que o mais forte siga ainda mais fortão do que o fraco armado. Cabe lembrar, por exemplo, que a convivência no trânsito no Brasil já é violenta e poderá se tornar ainda mais violenta com motoristas armados de cabeça quente, corações aflitos e dedos nervosos. A cidadania armada no Brasil tende a produzir soluções ainda mais violentas uma vez que no dia a dia os cidadãos são vistos e se percebem como desiguais. Tal decreto ilude o cidadão e faz a festa da indústria da arma, do “crime organizado”, dos agentes da lei oportunistas que usam o mandato público para os seus fins privados, e daqueles valentões que acham que são donos de pessoas, lugares e coisas e que podem mandar bala a quem se opuser ao seu mandonismo.

Armar o cidadão permitirá uma escalada crescente de força pela polícia. Diante da reação armada ou da expectativa da reação de qualquer cidadão, a polícia estará previamente autorizada a subir os gradientes de força antecipadamente para garantir proporcionalidade no emprego de meios diante da ameaça posta e para sustentar sua sobrepujança repressiva. A polícia acumulará mais trabalho diante do aumento de ocorrências críticas envolvendo armas de fogo e, com isso, incapacidade de pronta resposta a estas situações diante da sobrecarga de trabalho. Tende a se tornar cada vez mais uma polícia do depois que a troca de tiros aconteceu. E, mais, tenderá a exaurir mais rapidamente seus recursos e capacidade repressivos, tornando-se pouco capaz de responder às situações de risco, incerteza e perigo nas ruas ou nas casas.

A professora Jaqueline Muniz

E, não menos importante, o decreto desvaloriza a polícia como instituição profissional no uso potencial e concreto de força comedida, ao mesmo tempo que exalta e sobrevaloriza aqueles integrantes que odeiam a polícia porque odeiam os limites que o estado da arte da profissão policial e da governança de polícia impõem. Estes oportunistas, promotores da máxima “quanto mais tiro, porra e bomba melhor para nós” são aqueles que querem “mais liberdade para agir”, isto é, querem estar mais livres para transformarem a carteira de polícia e o poder de polícia concedidos pela sociedade em uma fonte de negócios particulares e ilegais, como as milícias e os consórcios com grupos criminosos. Em verdade, o decreto favorece aqueles grupelhos de agentes da lei que necessitam que a polícia se enfraqueça e se desmoralize, que precisam que a segurança pública siga como um desastre para que possam ampliar sua influência e seus lucros no promissor mercado da insegurança chancelado poder público e, ainda de quebra, posarem de heróis dos crimes que eles mesmos inventaram, ganhando medalhas de honra ao mérito.

Jacqueline Muniz – professora do DSP/INEAC/UFF

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