A ÁGUA PASSA, A AREIA FICA

A tarde segue quente e o corpo pede pensamentos, ideias, sugestões ou segredos. Dentro do carro, na rua Rangel Pestana, vou vendo pelas calçadas tantos pretos, tão grandes, tão pretos, tão fortes, resolutos. Tantos imigrantes e o país inteiro parece andar na calçada, entre lojas, bancos, bares e igrejas. Sinto-me num cais, todos querendo viver, lançar-se.

Buscando também, meti-me na Marginal e cheguei à USP LESTE, a universidade nos limites da cidade. O solo aqui, ouvi dizer, é contaminado, mas escola se fez e chama. Vim ao encontro de  Ailton Krenak, índio das margens do Watu, o Rio Doce do Espírito Santo, das Minas Gerais, que tingiram de vermelho sangue do ferro.  Enferrujaram o rio até o mar, lágrima salgada, tingiram a água na cor da vergonha. A vergonha talvez tenha a cor da política desse momento, esse tom meio sujo que emudece e arregala os olhos.

Ai, dói, a parte da ideologia colonial entrou como um vento forte no território de nossas almas. Meu Brasil é sim o irmão mais velho do colonialismo, diz Ailton Krenak, o país não sabe conviver com a ideia de autonomia dos territórios indígenas ou toda diversidade sábia de nossos padrões ancestrais. Krenak é pensador,  esse tipo de gente que te descompassa e te encaixa em outras vias, tal guia, tal vento transcontinental que remete palavras aos ouvidos como areia entre eixos, pedra nos sapatos.

Em toda desconexão que a vida agora apresenta, em que falecidos comportamentos ressuscitam, um país obsceno entre temerosas transações nos assola, mas também por isso sonha-se aqui. Gravados a fogo, temos que nos descorromper, inventar palavras, projetar um olhar infantil para detrás dos montes, por mais inútil que seja pensar em uma sociedade alternativa hoje. Uma nação é mais que um território, ouço no auditório. Ainda caminhamos em esforços de inclusão, cotas. Paralisamo-nos em nossa capacidade de indignação. Somos uma sociedade tão discricionária que damos à inclusão o status de direito.  As falsas garantias do Estado e o falso sorriso da cordialidade nos condenam, todos. Tudo garante a desigualdade, pois os territórios gritam contra a uniformidade. É o veneno e o remédio, todos seguem reféns do mercado. Krenak afirma que o uso comum do território é uma ofensa ao capital, pois este divide a terra em lotes para uso privado, querem um país Agro, global.

Solidariedade não é tolerância, não é inclusão. Solidariedade é entender a perspectiva do outro. É escandaloso que ainda temos que falar disso. Garantir a continuidade da vida é assunto que foge à ordem e lógica do mercado, põe em jogo a ideia colonialista e o projeto religioso para Pindorama. Se acaso criam crises, golpes sem juízo no momento atual, apenas justificam o culto à mercadoria que nos envolve. Há um eclipse mental entre os homens e enterram a sociedade alternativa que tanto queríamos. A ironia é essa prática de ameaçar os diferentes grupos, de tempos em tempos, tal tática terrorista, onde o poder doente quer imprimir sua marca entre tantos diversos grupos e lugares distintos. Terras indígenas, quilombos, reservas extrativistas e áreas de preservação são os únicos lugares onde esse poder doente ainda não imprimiu sua marca.

Solidariedade é entender a perspectiva do outro. Querem domesticar o pensamento, querem configurar a exclusão, somos um arranjo conservador de gente que veio para acampar na América, alerta o índio, o pensador.

Um sol queima nossas faltas, estanca e seca os rios.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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