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ABORTO: UMA LEGISLAÇÃO EM DEFESA DA VIDA

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Ao contrário do psicanalista ou da psicóloga que se depara com o drama de mulheres que abortaram, como religioso tenho sido solicitado por aquelas que, diante de uma gravidez indesejada, sofrem a atroz angústia da dúvida. E raramente elas chegam acompanhadas por seus parceiros – o que não deixa de ser um preocupante sintoma.

É espantoso que, às portas do século XXI, haja questões tão sérias, como o aborto, que ainda são consideradas tabus indiscutíveis. O capitalismo erotiza a cultura, através da reificação das relações humanas subjugadas aos imperativos do consumo, e por isso mesmo mantém a censura em torno do tema da sexualidade.

Para o sistema, que depende da exacerbação do imaginário coletivo, só é real o que não é racional. Seria inquietante se, por exemplo, os movimentos feministas começassem a questionar o uso da mulher na publicidade. Pelo mesmo motivo, impede-se que nas escolas se trate de questões de gênero e de educação sexual (quando muito, há aulas de higiene corporal para se evitar doenças sexualmente transmissíveis).

Devo acrescentar que lamento as dificuldades que a Igreja impõe à discussão em torno do aborto. Se a Teologia é o esforço de apreensão racional das verdades de fé, o teólogo tem, por dever de ofício, de se manter aberto a todos os temas que dizem respeito à condição humana, mormente quando encerram implicações morais. Aquilo sobre o qual ninguém fala ou escreve, não existe – diz um personagem de Érico Veríssimo em Incidente em Antares.

Por isso mesmo, as instituições autoritárias preferem cobrir de silêncio questões polêmicas que refletem incomensuráveis dramas humanos. A própria Constituinte evitou o tema, preferindo adiá-lo para as leis complementares. Embora eu seja contra o aborto, admito a sua descriminalização e sou plenamente a favor da mais ampla discussão sobre o assunto, pois se trata de um problema real, grave, que afeta a vida de milhares de pessoas. Desconfio, entretanto, que há algo de verdade neste provérbio feminista: Se os homens parissem, o aborto seria um sacramento.

A posição da lei brasileira

Ninguém aborta pelo prazer de fazê-lo. É sempre uma opção difícil, traumática, sob toda sorte de pressões e angústias. Dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), divulgada em 2016 (O Globo, 1.8.2018) indicam que 503 mil mulheres ralizaram aborto no Brasil em 2015. Costuma-se afirmar que, desses milhares de abortos praticados a cada ano no Brasil, a consequência imediata seria a morte de inúmeras mulheres, em geral negras e pobres.

Se infelizmente existem casais – pois o aborto não é uma questão exclusiva da mulher – que comparam o aborto a uma extração de dente, não há dúvida de que ele deixa sequelas físicas, psíquicas e morais em inúmeras pessoas. A atual legislação brasileira (artigos 124 a 128 do Código Penal) o considera crime – tanto da parte da gestante, quanto dos médicos, das enfermeiras e das curiosas que dele participam. A lei faz exceção aos casos de gravidez decorrente de estupro ou agressão sexual, bem como por razões terapêuticas quando há risco de vida para a mãe (cardiopatias e tuberculose, por exemplo).

A posição da Igreja

No decorrer de sua história, a Igreja Católica nunca chegou a uma posição unânime e definitiva. Oscilou entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo em certas fases da gravidez. Atrás dessa diferença de opiniões situava-se a discussão sobre qual o momento em que o feto pode ser considerado um ser humano. Até hoje, nem a ciência, nem a teologia, têm uma resposta exata. A questão permanece em aberto.

Santo Agostinho (sec. IV) dizia que só a partir de 40 dias após a fecundação, quando se pode falar em pessoa (unidade corpo-espírito). Assim mesmo para os fetos masculinos, já que se considerava que a hominização do feto feminino exigia o dobro do tempo…

Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) reafirmou que não se pode reconhecer como humano o embrião que ainda não completou 40 dias, quando então lhe é infundida a “alma racional”. Esta posição virou doutrina oficial da Igreja Católica a partir do Concílio de Trento (encerrado em 1563).

Mesmo assim, sempre foi contestada por outros teólogos que, baseados na autoridade de Tertuliano (séc. III) e de Santo Alberto Magno (séc. XIII), defendiam a hominização imediata, ou seja, desde a fecundação trata-se de um ser humano em processo.

Santo Afonso de Ligório (+1787) admitia o aborto terapêutico, caso a         vida da mãe corresse risco imediato. Contudo, essa discussão sobre feto “inanimado” (que ainda não teria alma) ou “animado” (já com alma), encerra-se oficialmente com a divulgação da Apostolica Sedis, em 1869, na qual o papa Pio IX condena toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez.

No século XX, introduz-se novamente a discussão entre aborto direto e indireto. Roma passa a admitir o aborto indireto, em caso de gravidez tubária ou de câncer no útero. Mas não admite o aborto direto nem mesmo em caso de estupro. E não fez exceção quando um grupo de freiras do Congo sofreu violação. A posição atual dos teólogos mais qualificados não coincide com a de Roma.

O redentorista Bernhard Haering, um dos mais renomados moralistas católicos, admite o aborto quando se trata de preservar o útero para futuras gestações ou quando o dano moral e psicológico causado pelo estupro impossibilita a mulher de aceitar a gravidez. É o que a Teologia Moral denomina ignorância invencível. Nem a Igreja tem o direito moral de exigir sempre de seus fiéis atitudes heróicas. É o que a ética chama de conflito de valores e deveres. E o próprio papa reconhece que, inclusive na questão do aborto, a responsabilidade moral pertence, em última instância, ao inviolável reduto da consciência humana e só pode ser julgado por Deus.

Limites da posição da Igreja

Roma é contra a descriminalização do aborto, baseada no princípio de         que não se pode legalizar algo que é ilegítimo e imoral: a supressão voluntária de uma vida humana. Mesmo defendendo tal princípio, a história demonstra que nem sempre a Igreja o aplicou com igual rigor a outras esferas do conflito social. Defende a legitimidade da “guerra justa” e da revolução popular em caso de tirania prolongada e inamovível por outros meios. É o princípio tomista do mal menor. Em muitos países, a Igreja aceitava ainda a pena de morte para criminosos comuns e políticos, posição somente agora revogada pelo papa Francisco, até porque se a pena de morte não existisse Jesus não teria sido executado na cruz. E a própria Igreja já patrocinou, na Inquisição, a eliminação física de pessoas consideradas hereges ou inimigas da fé católica.

Embora a Igreja defenda a sacralidade da vida do embrião em potência, a partir da fecundação, jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio e nem prescreveu rituais fúnebres ou batismo in extremis para os fetos abortados.

O direito ao uso do próprio corpo

É preciso encarar com muita seriedade as razões que induzem uma gestante ao aborto. Ao falar do direito ao uso do próprio corpo, nem todas as mulheres são movidas pela racionalização burguesa semelhante à concepção do direito de propriedade, ius utendi et abutendi (direito de uso e abuso). É bem conhecido o resultado de tal concepção…

Assim como o direito de propriedade encerra uma intrínseca função social, o direito sobre o corpo não pode prescindir de sua natureza social. Este é um dos princípios que fundamentam o movimento ecológico, pois homem algum é uma ilha. Não há nada que uma pessoa faça com o seu próprio corpo que não tenha reflexos em seu relacionamento social. Até o modo como o alimentamos ou vestimos influi em nossa postura em relação aos outros. Do ponto de vista moral, não se pode aceitar, como direito, a autodestruição física ou psicológica.

A opção de abortar é moral e política. Pode ser encarada pelo ângulo do poder do mais forte sobre aquele que é completamente frágil. Tão frágil que podem ser encontradas justificativas científicas para negar-lhe o título de humano. Para a genética, o feto é humano a partir da segmentação. Para a ginecologia-obstetrícia, desde a nidação, a implantação no útero. Para a neurofisiologia, só quando se forma o cérebro. E para a psicosociologia, quando há relacionamento personalizado.

Em suma, o fato é que o feto é uma espécie de subproletário biológico. Tão reduzido à sua impotência, que não tem como protestar ou rebelar-se. A Bíblia adverte que a grande tentação do ser humano é querer “fazer de sua força a norma da justiça” (Sabedoria 2, 11). E, em muitos casos de aborto, o feto paga pela rejeição que a mulher tem ao homem que a fecundou ou pelos preconceitos que a atemorizam e a tornam tão escrava de conveniências sociais que, paradoxalmente, ela decide extraí-lo em nome de sua suposta liberdade. Liberdade que ela teme e da qual foge quando se trata de admitir uma relação adúltera, assumir-se como mãe solteira ou exigir de seu parceiro, ainda que casado com outra mulher, que ele seja companheiro e pai face à evidência de uma vida em processo.

Há casos em que o aborto é a culminância de um ciclo desprovido de coerência moral. Vive-se uma ambiguidade que nega o mínimo de respeito à dignidade alheia. A falsidade como cúmplice da conveniência. Homens que na vida social defendem as mais avançadas ideias, quando confrontados com uma inesperada gravidez reagem com uma covardia inominável, como se o problema fosse exclusivo da mulher. E, o que é pior, há mulheres coniventes com a omissão masculina, não raro por se verem tendo que optar entre o feto e o afeto…

Engels, em A Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada, denuncia o mercantilismo que afeta as relações humanas nas classes dominantes, onde as pessoas valem pelo que têm e não pelo que são. Quem se empenha na transformação da sociedade capitalista deve saber que o único capital que jamais pode ser perdido é o moral. Pode-se perder a liberdade e, inclusive, a vida. A perda da moral implica o descrédito da própria causa que se defende e representa, de fato, uma vitória do inimigo.

As situações-limites

Permanece em aberto a discussão sobre o momento em que o feto pode ser considerado humano. Partilho a opinião de que, desde a fecundação, já há vida com destino humano e, portanto, histórico. Sob as óticas cristãs e marxistas, a dignidade de um ser não deriva daquilo que           ele é e sim do que pode vir a ser. Por isso, cristianismo e marxismo defendem os direitos inalienáveis dos que se situam no último degrau da escala humana e social.

É interessante observar que, na história, sempre se pôs em xeque a plena dignidade de pessoas que eram mantidas na opressão: índios, mulheres, negros… Hoje, o debate sobre se o ser embrionário merece ou não o reconhecimento de tal dignidade, não deve induzir ao moralismo intolerante, que ignora o drama de mulheres que optam pelo aborto por razões que não são de mero egoísmo ou conveniência social. Trata-se de mulheres muito pobres, que objetiva e subjetivamente não têm condições de assumir aquele filho, naquele momento; de menores de idade que sofrem violação, como aconteceu no Recife com uma menina de 9 anos; de mulheres mentalmente enfermas, incapacitadas para cuidar de uma criança; ou de mulheres que engravidam involuntariamente após os 40 anos, quando a possibilidade de nascer um filho com sequelas aumenta de 1/2500 para 1/100, sendo de 1/45 para mulheres que já atingiram 45 anos.

Enfim, há uma série de situações humanamente dramáticas, geradas por pobreza, ignorância, opressão social, violência, que não podem ser encaradas sob o olhar altivo do moralismo farisaico.

Em princípio, devemos lutar para que tais situações não se apresentem no futuro, erradicando suas causas sociais. E pouco adiantam os remendos legais que procuram encobrir suas contradições. Por esta via, em breve se discutirá o projeto de lei de eliminação dos mendigos, como hoje se discute a redução da maioridade penal.

Frente à gravidade de inúmeros casos atuais, não basta aguardar aquele futuro em que as mulheres não temerão pelo nascimento de seus filhos e quando o aborto já não será necessário. Não se deve também ceder à hipocrisia da direita, interessada em manter a criminalização do aborto para favorecer as “fábricas de anjinhos” – as clínicas clandestinas que fazem a fortuna da máfia de branco, inclusive fornecendo fetos às indústrias de cosméticos, onde são aproveitados como matéria-prima dos produtos de beleza.

A descriminalização do aborto

É a defesa do sagrado dom da vida que levanta a pergunta se é lícito manter o aborto à margem da lei, pondo em risco também a vida de inúmeras mulheres pobres que, na falta de recursos, tentam provocá-lo com chás, venenos, agulhas ou a ajuda de curiosas, em precárias condições higiênicas e terapêuticas. É possível que uma legislação em favor da vida faça este problema humano emergir das sombras para ser adequadamente tratado à luz do Direito, da Moral e da responsabilidade social do poder público.

Um dos principais especialistas em Teologia Moral e Ética Médica no Brasil, o padre Hubert Lepargneur, admite que “devemos reconhecer, por         desagradável que nos seja, a tendência dos países civilizados em considerar legal a operação, sob restrição de um mais ou menos rigoroso condicionamento, para que se controle um ato grave, individual e socialmente, uma operação que precisa de cuidados sanitários à altura das exigências modernas de saúde” (O aborto voluntário , Paulinas, São Paulo, 1983, p. 47).

O teólogo e jesuíta espanhol González Faus é de opinião que “mais do que o moralista, a existência de situações-limites deve ser contemplada pelo legislador civil, que não está obrigado a assegurar toda a moralidade e sim a convivência pacífica, nem está obrigado a prescrever a heroicidade ou a procurar um “melhor” inimigo do bem, senão que muitas vezes há de contentar-se em evitar o mal maior. E é possível que, nas atuais circunstâncias de nossa sociedade, a descriminalização legal do aborto seja um mal menor, enquanto todos nós não trabalharmos por uma sociedade em que o aborto já não seja necessário” (Este es el hombre, Ed. Cristandad, Madri, 1986, pp. 277-285).

Por que alguns se opõem de maneira tão violenta ao debate sobre a descriminalização do aborto? Não se trata dos mesmos setores que proíbem a educação sexual nas escolas, defendem a “escola sem partido” e a pena capital, e aplaudem a eliminação sumária de supostos bandidos e traficantes? Ora, para tais setores, a descriminalização do aborto poderia trazer à tona o que se passa entre executivos e secretárias, entre patrões e empregadas, além do risco de ter que dividir a herança com o filho bastardo. A morte clandestina no ventre elimina qualquer risco à propriedade e à imagem pública do proprietário. Para este, aliás, não há ilegalidade nesta matéria. Basta embarcar a gestante para um país que não criminaliza o aborto, e tudo estará resolvido de acordo com a lei.

Mas como ficam as mulheres pobres que não podem ter filhos, senão sob o risco de perderem o emprego e deixarem a família na miséria? São inúmeras as mulheres que, para obter um trabalho, se vêem obrigadas a esconder que são casadas e a impedir ou interromper a gravidez.

Se tais setores fossem sinceramente contra o aborto, lutariam para que não se tornasse necessário. Para que todos pudessem nascer em condições sociais seguras, numa sociedade sem profunda desigualdade social, na qual todos pudessem viver com dignidade. Como não estão dispostos a isso, o mais cômodo é exigir que se mantenha a penalização do aborto. Mas como fica a penalização de políticas econômicas que resultam no aumento da mortalidade infantil?

Uma legislação a favor da vida

Está comprovado que a descriminalização, aprovada em vários países, não reduz o número de abortos clandestinos. Muitas mulheres continuam a preferir o anonimato, para evitar danos à sua imagem social e/ou à do parceiro. O que diminuiu foi o número de óbitos de mulheres em consequência do aborto. E inúmeras gestantes que procuraram os serviços sociais de atendimento foram convencidas a ter o filho – o que não ocorreria se vigorasse a criminalização do aborto.

Hoje, muitas opiniões autorizadas na Igreja admitem que não se pode tratar a matéria com intolerância, supondo que numa sociedade culturalmente diversificada, plural e laica, haja valores morais universalmente aceitos.

“No plano dos princípios – declarou monsenhor Duchène, presidente da Comissão Espiscopal Francesa para a Família – lembro que todo aborto é a supressão de um ser humano. Não podemos esquecê-lo. Não quero, porém, substituir-me aos médicos que refletiram demoradamente sobre o assunto em sua alma e consciência e que, confrontados com uma desgraça aparentemente sem remédio, tentam aliviá-la da melhor maneira, com o risco de se enganar” (La Croix, 31/3/79).

E em abril do mesmo ano, o bispo francês manifestou que uma pessoa que aborta “não comete sempre uma culpa grave. Não levamos em conta aquilo que se passa nas consciências de certas pessoas envolvidas em situações aparentemente sem saída” (Le Monde , 25/4/79).

Uma legislação em favor da vida deve obrigar o poder público a promover amplas campanhas sobre o aborto, esclarecendo suas implicações morais, físicas e psicológicas, como ocorre na China; prever severas sanções às empresas e aos empregadores que recusam mulheres casadas ou não dão suficiente apoio às gestantes; criar postos de atendimento às gestantes que pensam em abortar, onde médicos, psicólogos, assistentes sociais e, inclusive, ministros da confissão religiosa da interessada, procurem convencê-la a assumir o filho, demovendo preconceitos e barreiras, como acontece na França; ampliar a rede de Casas da Mãe Solteira (como já existe em São Paulo, por iniciativa particular), de modo a evitar que as gestantes solteiras sejam induzidas ao aborto por desamparo afetivo, moral ou econômico; prever a objeção de consciência do pessoal terapêutico convocado a atuar nos casos de exceção previsto pela lei; garantir o salário maternidade e multiplicar o número de creches; criar o sistema telefônico de atendimento às mulheres angustiadas por gravidez imprevista, como o SOS-Futuras Mães, da França, que dispõe de postos de recepção telefônica; oferecer ajuda financeira às famílias que adotam crianças rejeitadas por suas mães.

Em resumo, deve-se assegurar o direito à vida do embrião e amparo moral, psicológico e econômico à gestante, bem como prescrever medidas concretas que socialmente venham a tornar o aborto desnecessário.

 

Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.

*imagens por Helio Carlos Mello©

 

 

 

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LUTA ANTIRRACISTA PRECISA ACERTAR A ‘CABECINHA’ DE WILSON WITZEL

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Há anos a tática sobre segurança pública no Rio se concentra em operações espetaculares que resultam, de tempos em tempos, em um derramamento de sangue, com direito a traficantes, moradores de comunidades e policiais mortos.

O roteiro todos já conhecem. Unem-se policiais de diversos batalhões, eles invadem determinada localidade com poder de fogo muito superior, e terminam matando principalmente a ponta da cadeia do tráfico, a base da estrutura das facções, enquanto seus líderes comandam tudo de longe ou de dentro dos presídios, e no dia seguinte um novo comando paralelo se instala no mesmo lugar.

É uma máquina de moer gente. Mata-se loucamente, e no dia seguinte é como se nada tivesse mudado.

A situação é esta porque em certos locais do Rio a única chance de um jovem criado em situação de miséria comprar um tênis da moda é segurando uma arma que ele não sabe atirar direito. A parcela da população favelada que sobra do espaço da cidadania, por motivos que vão desde abandono familiar, déficit educacional ou imposição de terceiros, é seduzida por uma rede comércio ilegal que promete dignidade no contexto da extrema exclusão e sacrifica a vida destas pessoas como copos descartáveis.

São quase sempre jovens negros, no tráfico, na polícia ou nas casas vizinhas ao confronto entre eles. E suas mortes não comovem nem de perto tanto quanto o cãozinho morto na porta do Carrefour.

É assim desde que a abolição foi seguida pela recusa em absorver os negros no mercado formal de trabalho e a imigração de estrangeiros brancos para substituí-los. A pobreza se perpetuou a partir da negligência em gerar oportunidades e condições de vida saudável, e nela a criminalidade floresceu desde sempre.

Se soubesse da história do Rio, Wilson Witzel, o novo governador eleito no estado, que repete a palavra matar o tempo todo para agradar os ouvidos de uma classe média tanto preocupada com roubos quanto é racista, adepta de praias segregadas, odienta do funk, do samba e de pagode, faria algo para interromper a espiral macabra que corrói sua sociedade por dentro.

Alteraria o atraso social com políticas públicas inteligentes de ensino integral, cooperativas de trabalho, reforma do sistema penitenciário, investimento em tecnologia da informação e preparo de suas polícias. Enfrentaria o racismo com mais educação e cultura, e não faria coro com privilegiados que gostam de se remeter aos negros com termos tipicamente usados para animais, como “abate”.

Em 2010, o Rio viu Sérgio Cabral vencer Fernando Gabeira aproveitando-se, em parte, da crença de que o adversário era veado e maconheiro. Dali seguiu-se uma bandalheira que resultou, nos últimos anos, no colapso total das contas públicas. Já não há mais espaço de tempo para novos demagogos. E nem a população suporta mais mentiras no lugar de competência. Algo melhor que matar precisa vir à cabeça do novo governador. E eu sugiro que superar o seu racismo entranhado seja o melhor começo.

Por: Rodrigo Veloso – Colaborador dos Jornalistas Livres morador do Rio do Janeiro formado em Relações Internações

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OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

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Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke

 

O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.

Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.

Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.

Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.

Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?

A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.

Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.

Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.

Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.

Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.

 

Rodrigo Janot

Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.

Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.

26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.

A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.

Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.

Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.

Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.

Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.

Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?

Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.

 

Rogério Favreto

Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.

“Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.

Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.

Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.

Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.

Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.

Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

 

Marco Aurélio Mello

Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.

1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.

É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.

Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.

Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.

Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.

2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.

Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.

A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.

Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

 

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Armai-vos uns aos outros

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Por José Barbosa Junior
O presidente da República Fundamentalista de Vera Cruz (antigo Brasil – porque agora nada pode ser vermelho), decretou nesta terça-feira algumas flexibilizações na Lei que regulamentava a posse de armas, o que, na prática, significa que ele liberou geral. A proposta anterior, de no máximo duas armas por cidadão, passou para quatro armas, sendo liberadas outras mais, conforme a necessidade apresentada pelo futuro portador.
Em resumo, a barbárie está liberada oficialmente em nosso país. “Cidadãos de bem” agora vão poder, finalmente, matar os bandidos que lhe atormentam a vida. Por bandidos leia-se pobres, pretos, pardos e párias, que de já tão coisificados, tornaram-se sem valor e pessoalidade em sua existência.
O que mais me choca, porém, é que Bolsonaro foi eleito e é apoiado, inclusive e principalmente nesta questão, por gente que se afirma cristã. Isso mesmo! Gente que diz seguir aquele nazareno marginal que afirmou que “bem-aventurados são os pacificadores, pois eles serão chamados filhos de Deus”, aliás o mesmo que afirmou que “quem vive pela espada, morrerá pela espada”.
Parece estranho. E é.
Mais estranho ainda porque em toda a campanha do atual presidente, ele fez questão de repetir o versículo que diz “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
A verdade é que a liberação de armas só gerará mais violência num país que respira violência.
A verdade é que mais mulheres serão vítimas de feminicídio, já que seus maridos machões agora poderão ter suas armas para suprirem seus outros fracassos.
A verdade é que mais LGBT’s morrerão nas mãos de homofóbicos que disfarçam seus preconceitos em discursos machistas e religiosos.
A verdade é que agora fica mais fácil planejar o suicídio, endêmico numa sociedade cada vez mais doente e adoecedora, refém de um sistema que empurra pessoas à depressão (sem contar as depressões que independem de fatores externos) e num país onde adolescentes cada vez mais se matam por conta de bullying e outras coisas mais. Ah! E sem falar no alto índice de suicídio entre pastores, tema cada vez mais recorrente nos últimos anos.
A verdade é que as brigas de trânsito, de bares, de baladas agora serão resolvidas na base do “quem saca primeiro”, porque com essa liberação a ideia de que o outro possa estar armado será sempre evidente e, entre ele e eu, é melhor que eu saque antes dele.
A verdade é que temos um governo violento, que ampara e incita à violência, que não esconde o prazer na tortura e na morte dos inimigos. Isso legitima e legitimará a barbárie!
Em nome da verdade… no governo mais mentiroso que já temos! E eu aguardo o dia da liberdade! Ela virá… mais cedo ou mais tarde!

*Teólogo e Pastor da Comunidade Batista do Caminho em Belo Horizonte.

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